TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
290 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A natureza pessoalíssima dos direitos dos filhos, que decorrem da intimidade mais profunda do ser humano e da sua necessidade afetiva e social mais definidora da sua humanidade e personalidade, faz com que, na operação de balanceamento entre posições contrapostas, os direitos dos filhos sejam, na hierarquia axiológica da Constituição em que a dignidade da pessoa humana ocupa o topo (artigo 1.º da CRP), de superior valia em relação aos direitos do investigado. A privacidade do investigado (o direito de não ver exposta a sua esfera sexual e íntima) e da sua famí- lia, bem como a segurança jurídica patrimonial dos herdeiros daquele, não podem sobrepor-se aos direitos pessoalíssimos e inalienáveis do investigante, em termos de provocar a sua extinção pelo decurso do tempo. Por outro lado, não pode sequer afirmar-se que existe um direito do pretenso pai a não se vincular juridica- mente a uma paternidade biologicamente comprovável, num contexto jurídico em que o progenitor tem, pelo contrário, o dever jurídico (e não apenas moral ou de consciência) de perfilhar (cfr. Guilherme de Oliveira, «Caducidade das ações de investigação ou caducidade do dever de perfilhar, a pretexto do Acór- dão n.º 401/11 do Tribunal Constitucional», in Lex Familiae , 2012, n. os 17 e 18, p. 113). O princípio da dignidade da pessoa humana, apesar de não ser fundamento direto de posições jurídicas subjetivas, pode ser usado como critério de interpretação e de ponderação nos conflitos entre direitos (cfr. Benedita Mac Crorie, «O princípio da dignidade da pessoa humana na Constituição da República Portuguesa», in Afonso Vaz et al. (Coord.), Jornada nos Quarenta Anos da Constituição da República Portuguesa – Impacto e Evolução, Univer sidade Católica Editora – Porto, 2017, pp. 104 e seguintes, p. 108. Em consequência, o conflito de direitos em causa no presente processo deve ser analisado e as normas constitucionais interpretadas à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1.º da CRP), não podendo deixar de se entender, num Estado de direito, cujo centro é a pessoa humana, que os direitos de natureza pessoal têm preponderância sobre os direitos patrimoniais, havendo entre ambas as categorias de direitos e de interesses uma diferença qualitativa que deve ser decisiva no juízo de ponderação de interesses, como também se assinalou no Acórdão n.º 23/06, onde se afirmou «(…) que o argumento se situa num plano predominantemente patrimonial, não podendo ser decisivo ante o exercício de uma faculdade personalíssima, constituinte clara da identidade pessoal, como a de averiguar quem é o seu progenitor». O direito de intentar a ação de investigação da paternidade é um direito de personalidade fundamental, e os direitos de personalidade beneficiam de regimes jurídicos especiais que decorrem de normas material- mente constitucionais, que, apesar da sua colocação sistemática em diplomas de direito ordinário, consa- gram direitos fundamentais extraconstitucionais, não formalmente tipificados no texto da Constituição, mas admitidos pela cláusula aberta do artigo 16.º, n.º 1, da CRP. Estas dimensões dos direitos fundamentais contribuem, assim, para salientar a primazia dos direitos de personalidade sobre os direitos patrimoniais, enriquecendo e densificando o conteúdo aberto das normas constitucionais invocadas como parâmetro da apreciação da constitucionalidade do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, atribuindo aos direitos à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade um maior peso quando em confronto com outros bens jurídicos como a segurança jurídica patrimonial dos outros herdeiros do investigado ou a paz familiar, o sossego e a privacidade deste e da sua família. A proteção da vida privada do pretenso pai não pode ser obtida à custa do direito do filho a investigar e a fazer reconhe- cer a filiação, tanto mais que a exposição da privacidade daquele no processo resulta do seu contributo para a procriação e da sua conduta anterior omissiva: se não tinha razões para duvidar da paternidade, devia tê-la assumido; se tinha dúvidas legítimas, devia ter colaborado na averiguação da verdade biológica. Quanto aos casos em que a ação é instaurada depois do falecimento do pretenso pai, não tendo este, em vida, conhe- cimento ou “suspeita” do nascimento, deve entender-se que não gozam, ainda assim, as posições jurídicas subjetivas deste, de merecimento de tutela suficientemente forte para contrabalançar os direitos do inves- tigante, tanto mais que a estes direitos fundamentais correspondem também interesses de ordem pública. Como afirma Joaquim de Sousa Ribeiro ( A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade . 2018, ob. cit. , p. 216): «(…) não vemos como é que a medida do tempo possa
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