TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 103.º volume \ 2018
87 acórdão n.º 595/18 recurso. É à luz desta autonomia que se deve entender o sentido da jurisprudência constitucional anterior ao Acórdão n.º 429/16: «[O] que tem sido afirmado relativamente ao direito ao recurso previsto no artigo 32.º, n.º 1, da Constitui- ção – foi-o, designadamente, no Acórdão n.º 49/03 – é que, por razões de ordem sistémica, se tem de entender, como garantia constitucional mínima do direito de defesa do arguido, a possibilidade de recorrer de uma qualquer decisão condenatória proferida pelos tribunais de primeira instância (cfr. o artigo 210.º, n.º 3, da Constituição). Cumprido esse mínimo, compete ao legislador zelar pelo equilíbrio entre os valores da defesa do arguido, da racio- nalidade processual e da funcionalidade do sistema judiciário e, consequentemente, definir os termos do eventual acesso a um terceiro grau de jurisdição, sempre com respeito pelos princípios constitucionais próprios de um Estado de direito» (v. a minha declaração junta ao Acórdão n.º 429/16). 2. Na verdade, a Constituição consagra expressamente o direito ao recurso sem nada referir quanto aos graus de jurisdição exigíveis para o concretizar (artigo 32.º, n.º 1). E também é exato que o duplo grau de jurisdição constitui uma condição necessária, mas não suficiente, de tal direito (cfr. o n.º 14, in fine , do presente Acórdão), visto que este último corresponde, ele próprio, a uma garantia de defesa do arguido. Nesse sentido, tal garantia constitui um limite externo à liberdade de conformação do legislador, porquanto o regime legal tem de permitir uma efetiva defesa do arguido, incluindo por via do exercício do direito ao recurso. Simplesmente, o legislador pode fazê-lo por diversos modos, sendo a consagração de um 3.º grau de jurisdição apenas um dos modos possíveis. Ora, não é a modificação do “contexto normativo” infraconstitucional – cfr. os n. os 7 a 9 do Acórdão – que altera o sentido e alcance do parâmetro constitucional nem, mesmo, uma dada interpretação juris- prudencial – cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/16 referido no n.º 19 da decisão – que o pode impor. Diferentemente, a possibilidade de aceder ao tribunal supremo da ordem dos tribunais judiciais para resolver o problema específico da reversão, em via de recurso, de uma absolvição em condenação (em pena privativa da liberdade ou em qualquer outra pena), constitui, a meu ver, uma opção político-legislativa, e não uma consequência necessária da garantia constitucional do direito ao recurso, porquanto a defesa do arguido – objetivo último de tal garantia – pode ser satisfeita por outras vias (designadamente, pelo reenvio do processo para o tribunal de 1.ª instância para apreciação das questões novas a decidir e da matéria de facto conexa, não apreciada pela decisão então recorrida). Valem, por isso, aqui – até reforçadamente, atenta a natureza abstrata do presente processo de fiscalização da constitucionalidade – as seguintes considerações feitas pela Conselheira Maria Lúcia Amaral: «Se, na verdade, o estado atual do direito infraconstitucional leva a supor que o recurso para uma segunda instância não salvaguarda todas as garantias de defesa do arguido em processo penal, que, por causa desse deficit da regulação de direito ordinário, pode vir a ser «surpreendido» por uma condenação por tribunal superior que reverte anterior absolvição e face à qual não teve hipótese de se defender, o problema de constitucionalidade existe e é grave. Contudo, tal problema tem como objeto, não a norma que consagra a irrecorribilidade das decisões de segunda instância, mas o conjunto de normas que, alterando um sistema antes presumivelmente harmonioso, diminuíram as possibilidades de defesa do arguido no recurso da decisão de primeira instância. Se o estado atual do direito infraconstitucional tornou ineficaz, para uma integral garantia dos direitos fundamentais consagrados, não apenas no artigo 32.º, mas também no artigo 20.º da CRP, a existência do duplo grau de jurisdição, o problema reside, evidentemente, na modelação dada pela legislação ordinária à forma como esse duplo grau se processa e não em qualquer outro lado. Pensar que o aniquilamento das garantias dadas por esse duplo grau, tornado pelo legislador ordinário não significativo ou irrelevante, se resolve pela conclusão segundo a qual a Constituição por- tuguesa imporá a existência de um terceiro grau – para substituir o segundo, que já não serve – não é apenas um erro de perspetiva. É um verdadeiro non sequitur lógico, que tem a consequência, a meu ver grave, de sacrificar
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