TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

176 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL suportam. Só que é minha convicção que as mesmas razões que sustentam a declaração de inconstituciona- lidade da norma constante do artigo 4.º da mesma Lei Orgânica, e atinente ao acesso a dados de tráfego que não envolvem comunicação intersubjetiva – por violação do disposto nos artigos 26.º, n.º 1 e 35.º, n. os 1 e 4, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Constituição da República –, impõem a mesma conclusão (de inconstitucionalidade) relativamente à norma constante do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, aqui em exame. 2. Resumidamente e por um lado, sobra unívoco que também a intromissão nos dados de base e de localização que não acompanham comunicações intersubjetivas comportam uma específica e inarredável danosidade. Já como atentado à autodeterminação informacional, já como perigo de devassa da esfera de reserva e privacidade das pessoas concretamente atingidas. Não se desconhece que a expressividade destes dados, do ponto de vista do desvelamento da vida privada e familiar, e, por vias disso, o potencial de danosidade da intromissão não consentida – quer como dano quer como perigo – se revelam, por natureza e em princípio, menos drásticos quando comparados com a intro- missão nos dados a que se reporta o artigo 4.º da Lei Orgânica em exame. A saber: por um lado, os dados de tráfego correspondentes a comunicações intersubjetivas e, como tais, pertinentes à categoria, ao estatuto e ao regime dos dados de telecomunicação; e, por outro lado, os dados de tráfego de internet , a sinalizar inter alia os sites visitados, os documentos consultados e a informação procurada. O que permite aos serviços obter conhecimentos sobre estes dados de tráfego, sua frequência, relacionamento entre si, conteúdos, circuns­ tâncias de lugar, tempo e conexões conjunturais, etc. Tudo dados cujo conhecimento e tratamento podem, consoante os casos, revelar-se particularmente significativos relativamente aos gostos, preocupações, planos, compromissos políticos, ideológicos, filosóficos, correntes de pensamento, condução da vida, tendências, afetos, problemas de saúde, etc. Como podem mesmo, no extremo, permitir traçar perfis psicológicos e reconduzir as pessoas atingidas a tipologias de agentes relevantes para as decisões legislativas ou os movimen- tos de acompanhamento e vigilância. Não sendo por isso de excluir que a recolha destes dados de tráfego possa, eventualmente, revelar-se mais invasiva e lesiva do que a própria intromissão nos dados de telecomu- nicação, sc. dos dados de tráfego correspondentes a circunstâncias externas da comunicação intersubjetiva. De todo o modo e como ficou antecipado, sempre a intromissão não consentida nestes dados de tráfego arrastará consigo um potencial de devassa e de ameaça em princípio mais drástico e gravoso do que a recolha e tratamento dos dados de base e de localização que não suportem atos de comunicação intersubjetiva. Isto é, dos dados de que aqui expressamente curamos. 3. Assim, estando aqui em causa atos menos lesivos de intromissão, tal circunstância – ou seja, a menor lesividade – não poderá deixar de ser levada em conta na hora de definir os regimes legais de recolha e trata- mento (não consentidos) levados a cabo em nome da salvaguarda dos bens jurídicos individuais e coletivos, atingidos ou ameaçados pelas manifestações de criminalidade a prevenir. Tudo apontando, por isso, para um regime mais permissivo e um quadro mais alargado das autorizações legais, a legitimar as ações de intro- missão (nestes dados de base e de localização), com vista à prevenção de atos de sabotagem, espionagem, terrorismo, proliferação de armas de destruição maciça e de criminalidade altamente organizada. Ações que, importa não esquecê-lo, embora menos invasivas – quando comparadas com a intromissão nos dados de tráfego (de telecomunicação ou de internet ) a que se reporta o artigo 4.º – comportam sempre um irredutível coeficiente de lesividade do direito à autodeterminação informacional e de perigo para a reserva da vida privada e familiar. 4. Tudo, em definitivo, está no desenho e tipificação das constelações fácticas erigidas em pressupostos das autorizações legais que justificam o sacrifício destes bens jurídicos pessoais, nos termos e à luz das exigên- cias do princípio de proporcionalidade (artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República), na plenitude das implicações normativas em que ele se desdobra.

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=