TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

177 acórdão n.º 464/19 A começar pela satisfação integral das exigências de legalidade e de reserva de lei, a reclamarem, desde logo, autorizações legais vertidas em leis claras e determinadas. Isto é, leis que, à partida, permitam aos seus destinatários identificar com segurança os pressupostos das autorizações: desde o “catálogo” de crimes perti- nentes; à densificação material das situações face às quais é objetivamente razoável um juízo de prognose e de antecipação do perigo; à densificação do limiar de suspeita de envolvimento (das pessoas atingidas pela intro- missão) nas situações de ameaça ou perigo de uma qualquer daquelas manifestações de criminalidade, etc. Resumidamente e como de forma clara e vincada refere o presente Acórdão a propósito da intromissão nos “dados de tráfego que não envolvem comunicação intersubjetiva”, trata-se de levar tão longe quanto possível um exercício de tipificação da fattispecie correspondente à autorização legal de intromissão. A recla- mar, designadamente e no plano da law in books , previsões normativas “face às quais seja possível um juízo materialmente fundado de prognose de ocorrência do perigo para um número circunscrito de bens jurídicos de importância extrema para a comunidade, como a vida, o corpo e a liberdade das pessoas ou a segurança do Estado de direito”. E, por vias disso e reflexamente, previsões normativas que no plano da law in action não franqueiem a porta à “liberdade de escolha (por parte dos oficiais dos serviços de informações) dos pres- supostos que justificam a necessidade da intervenção”. Isto porquanto uma “lei vaga, imprecisa e demasiado abrangente converteria as medidas restritivas em arbítrio, por ausência de critérios objetivos quanto à razão de ser da sua utilização”. 5. Foi por considerar que não satisfaziam estas exigências que – fundada e pertinentemente – o enten- dimento maioritário declarou a inconstitucionalidade da norma que autoriza a intromissão nos dados de tráfego que não suportam comunicações intersubjetivas contida no artigo 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017. Nomeadamente pelo recurso a conceitos de grande abertura e plasticidade, “semanticamente maleáveis e insuficientemente determinados, no âmbito dos quais a incerteza sobre os pressupostos de acesso aos dados de tráfego é bastante grande, atendendo à singularidade de cada caso concreto”. A que acresce a ausência da previsão normativa de mecanismos de reação – a começar pela consagração de formas de notificação ou informação a posteriori – das pessoas concretamente atingidas. Que, apanhadas nas malhas deste paradig- mático meio oculto de investigação, não tem qualquer forma de reagir contra atos arbitrários e ilegais de intromissão e devassa de que não têm conhecimento. Bem podendo, deste modo, multiplicar-se as “situações em que o indivíduo perde o controlo sobre a circulação dos sus dados pessoais e em que claramente pode ser violado o seu direito à autodeterminação informativa, sendo transformado em ‘objeto de informações’”. 6. São estas, em breve síntese, algumas das razões que sustentam a declaração de inconstitucionalidade da norma constante do artigo 4.º e atinente à intromissão nos dados de tráfego (da internet ) não corres- pondentes a atos de comunicação pessoal à distância. Tudo razões que se ajustam como luva à hipótese normativa aqui em exame e atinente aos dados de base e localização, constante do artigo 3.º da mesma Lei. Precisamente porque se reportam a vícios, insuficiências ou lacunas que resultam no inadimplemento das exigências do princípio da legalidade/determinabilidade, e que inquinam em igual medida ambos os regimes – respetivamente, dos dados de tráfego (artigo 4.º) e dos dados de base e de localização (artigo 3.º) –, nesta parte inteiramente coincidentes. Trata-se, noutros termos, de vícios que atingem os momentos de comunicabilidade e “mesmidade” dos dois regimes e não interferem com aspetos específicos suscetíveis de apontar para soluções normativas diferenciadas. Por vias disso e na medida em que suportam a declaração de inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º (relativa aos dados de tráfego que não suportam comunicações intersubjetivas), só podem, por identidade de razões, desencadear em igual medida, a inconstitucionalidade da norma aqui sub judice e constante do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, de 25 de agosto. É por isso que (apenas) nesta precisa e localizada dimensão, não acompanho o entendimento que tem por si o sufrágio maioritário do Tribunal. – Manuel da Costa Andrade.

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