TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

254 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Neste regime geral, a perda das vantagens pressupõe a demonstração de que as mesmas foram obtidas, direta ou indiretamente, como resultado da prática de um facto ilícito, ou seja, exige a prova, no processo, da existência de uma relação de conexão entre o facto ilícito criminal concreto e o correspondente proveito patrimonial obtido. Procurando fazer face às novas exigências colocadas pelo combate à criminalidade organizada e económico- -financeira, cada vez mais sofisticada e geradora de elevados proventos, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, intro- duziu no ordenamento jurídico nacional um regime de perda de vantagens resultantes da prática de determinados ilícitos que não exige a aludida demonstração. Com este regime, em caso de condenação por um dos crimes integrantes do catálogo previsto no seu artigo 1.º, aprecia-se a congruência entre o património do arguido e os seus rendimentos lícitos, sendo declarado perdido em favor do Estado o valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos lícitos, se o arguido não ilidir a presunção de que esse património excessivo resultou da atividade criminosa [cfr., em geral, sobre esta matéria, Augusto Silva Dias, «Criminalidade organizada e combate ao lucro ilícito», in 2.º Congresso de Investigação Criminal, Almedina, Coimbra, 2010, págs. 23 a 47; João Conde Correia, «Da proibição do confisco à perda alargada», Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012; Jorge A. F. Godinho, «Brandos Costumes? O confisco penal com base na inversão do ónus da prova», in Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, págs. 1315-1363; Jorge Dias Duarte, «Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro – Breve comentário aos novos regimes de segredo profissional e de perda de bens a favor do Estado», Revista do Ministério Público , Ano 23, Jan./Mar. 2002, n.º 89, págs. 141-154; José M. Damião da Cunha, «Perda de bens a favor do Estado», in Medidas de Combate à Criminalidade Organizada e Económico- -Financeira , CEJ, Coimbra Editora, 2004, págs. 121-164; Pedro Caeiro, «Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”)», in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, N.º 2, abril-Junho 2011, págs. 267-321). Este propósito do legislador encontra-se expressamente assumido na exposição de motivos constante da Proposta de Lei n.º 94/VIII (que esteve na origem da referida Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro), onde se refere, a esse respeito, que «(…) a eficácia dos meca- nismos repressivos será insuficiente se, havendo uma condenação criminal por um destes crimes [identificados no artigo 1.º], o condenado puder, ainda assim, conservar, no todo ou em parte, os proventos acumulados no decurso de uma carreira criminosa. Ora, o que pode acontecer é que, tratando-se de uma atividade continuada, não se prove no processo a conexão entre os factos criminosos e a totalidade dos respetivos proventos, criando-se, assim, uma situação em que as fortunas de origem ilícita continuam nas mãos dos criminosos, não sendo estes atingidos naquilo que constituiu, por um lado, o móbil do crime, e que pode constituir, por outro, o meio de retomar essa atividade criminosa», acrescentando-se ainda que, com este regime, se prevê que «(…) em caso de condenação por um dos crimes previstos no seu artigo 1.º, se aprecia a congruência entre o património do arguido e os seus rendi- mentos lícitos. O valor do património do arguido que seja excessivo em relação aos seus rendimentos cuja licitude fique provada no processo são declarados perdidos em favor do Estado». (...) Esta tendência tem merecido a atenção no plano do direito internacional e europeu. Desde logo, na Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena, em 20 de dezembro de 1988, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91 e ratifi- cada pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91 (cfr., Diário da República I-A , n.º 205, de 06/09/1991). As partes contratantes desta Convenção acordaram em adotar «as medidas que se mostrem necessárias para permitir a perda: a) De produtos provenientes de infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º ou de bens cujo valor corresponda ao valor desses produtos; b) De estupefacientes, substâncias psicotrópicas, materiais e equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados a serem utilizados, por qualquer forma, na prática das infrações estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º» (cfr. artigo 5.º, n.º 1 da Convenção), podendo, nos termos do n.º 7 deste artigo 5.º «considerar a possibilidade de inverter o ónus da prova no que diz respeito à origem lícita dos presumíveis produtos ou outros bens que possam ser objeto de perda, na medida em que os princípios do respetivo direito interno e a natureza dos procedimentos judiciais e outros o permitam».

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