TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

261 acórdão n.º 498/19 11. Avançando para as questões de constitucionalidade, o primeiro aspeto a abordar diz respeito à natu- reza jurídica do instituto da perda alargada. Embora não exista a este respeito absoluto consenso, afigura-se preponderante a posição segundo a qual o instituto não tem natureza penal ou, sequer, sancionatória. Esta posição foi implicitamente acolhida no Acórdão n.º 101/15 e abertamente secundada – e desenvolvida – no Acórdão n.º 392/15, nos seguintes termos: «No caso dos autos, recorde-se, o Recorrente sustenta que a presunção estabelecida nos artigos 7.º e 9.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, viola os princípios que presidem ao processo penal da presunção de inocência e do direito ao silêncio do arguido, assim como a própria estrutura acusatória do processo penal, consagrados no artigo 32.º da Constituição. O Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se sobre questão idêntica, mais concretamente, sobre a conformidade constitucional da norma constante do n.º 1, do artigo 7.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, ao estabelecer que, no caso de condenação pelo crime de lenocínio, para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, tendo-se pronunciado pela sua não inconstitucionalidade no Acórdão n.º 101/15 (...). Nos autos em questão, a aí Recorrente também havia sustentado ser inconstitucional a referida norma, por entender que a referida «presunção» implica a «consignação da inversão do ónus da prova ou da presunção de inocência», em violação das garantias de processo criminal que são consagradas no artigo 32.º da Constituição, tendo o Tribunal Constitucional entendido não lhe assistir razão, com a seguinte fundamentação: «Na verdade, in casu , a «presunção» contida no n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002 apenas opera após a condenação, em nada contrariando, pois, a presunção de inocência, consagrada no n.º 2 do artigo 32.º da CRP. Além do mais, trata-se de uma presunção ilidível, como são todas as presunções legais exceto quando o legislador disponha em contrário (artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil). O princípio de que parte o legislador ao estabelecê-la – princípio cuja não verificação o recorrente sempre poderia ter demonstrado – é o de que ocorreu no caso um ganho ilegítimo, proveniente da atividade criminosa, compreensivelmente reportada ao rendimento do condenado que exceda o montante do seu rendimento lícito.» Conforme decorre do referido Acórdão n.º 101/15, é importante para a apreciação da conformidade consti- tucional deste tipo de medidas de perda alargada de bens, designadamente, para saber se as mesmas ofendem o princípio da presunção da inocência nas suas diversas dimensões, ter em atenção a sua natureza, matéria sobre a qual a doutrina está longe de ter uma posição unânime. Assim, Augusto Silva Dias (cfr., ob. cit. , págs. 38-40) entende que o confisco de bens, assim concebido, isto é, um regime de confisco ampliado, assente estruturalmente numa presunção e numa inversão do ónus da prova, nos termos previstos pela Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, cumpre finalidades político-criminais idênticas à da perda de bens e vantagens relacionadas com a prática do crime: reforçar na consciência coletiva o lema de que o crime não compensa e evitar que o património obtido de forma criminosa organizada seja utilizado para cometer novos crimes ou para ser “investido” na economia legal. Entende este autor que este confisco tem, assim, uma natureza eminentemente penal, constituindo um efeito patrimonial, não automático, da pena. Damião da Cunha ( ob. cit. , pág. 134), por seu turno, entende que se trata de uma medida de caráter não penal (no sentido de que nada tem a ver com um crime), de caráter análogo a uma medida de segurança (uma sanção suspeita, condicionada à prova de um crime), tratando-se, no fundo, de uma sanção administrativa prejudicada por uma anterior condenação penal. Neste mesmo sentido Pedro Caeiro ( ob. cit. , págs. 308 a 311) afasta as hipóteses de esta medida ser uma pena («porque não é limitada por considerações de culpa»), uma reação análoga a uma medida de segurança (porque lhe «falta a determinação de um pressuposto essencial das medidas de segurança, qual seja, o concreto perigo de as vantagens possuídas pelo condenado servirem para a prática de futuros crimes»), uma sanção penal sui generis , de natureza idêntica à da perda clássica ou um efeito da pena, e acaba por concluir que a mesma não «pode constituir

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