TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

262 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL reação penal alguma, por uma razão singela mas decisiva: a sua causa não é um facto (típico, ilícito e culposo) punível, mas sim um património incongruente acoplado a indícios da prática de certos crimes (a “atividade crimi- nosa”)». Sustenta, por isso, este autor, acompanhando o entendimento de Damião da Cunha, que se trata de uma medida (mas não uma sanção) «de natureza materialmente administrativa aplicada por ocasião de um processo penal». Também Conde Correia ( ob. cit. , pág. 116) afasta a hipótese desta medida ter uma natureza penal. Jorge A. F. Godinho (cfr., ob. cit. , pág. 1349), por sua vez, realçando que a natureza jurídica do confisco de bens previsto na Lei n.º 5/2002 não parece fácil de determinar, uma vez que, por um lado, pressupõe a culpa do agente em relação a um dos crimes do «catálogo», a verdade é que tal é apenas o facto de que o legislador faz depender a aplicabilidade do regime, afigurando-se, por isso, duvidosa a sua qualificação como uma pena, uma vez que na sua aplicação não relevam quaisquer considerações relativas à culpa. Assim, partindo do entendimento de Figueiredo Dias, que considera o confisco de vantagens do crime constante do Código Penal «como uma reação penal análoga a uma medida de segurança» (conceção que assenta no dado político-criminal de que o confisco deve ser decretado independentemente da culpa ou da imputabilidade do agente, dependendo apenas da verificação de um ilícito- -típico que gera vantagens), este autor sustenta que a especificidade do confisco «alargado» reside no facto de que o ilícito-típico a que se dirige não carece de ser provado. A posse de bens de origem injustificada por parte de pes- soas condenadas pela prática de certos crimes é uma conduta suscetível de desencadear a aplicação de uma reação penal, sendo o confisco do valor injustificado a reação aplicável; a reação incide apenas sobre o aspeto patrimonial, prescindindo-se da aplicação de uma pena privativa da liberdade. Tendo presente este debate doutrinal, importa realçar que o estabelecimento da presunção legal cuja consti- tucionalidade é sindicada nos presentes autos não tem em vista a imputação ao arguido da prática de qualquer crime e o consequente sancionamento, mas sim privá-lo de um património, por se ter concluído que o mesmo foi adquirido ilicitamente, assim se restaurando a ordem patrimonial segundo o direito, o que situa a questão em plano diverso do que foi objeto de análise nos Acórdãos 179/12 e 377/15 deste Tribunal (...). É certo que a aplicação da medida de perda a favor do Estado, a par deste objetivo, tem uma finalidade de prevenção criminal, evitando que se crie a ideia que o crime compensa, assim como a sua aplicação tem como pressuposto necessário a condenação por um dos crimes do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro. Contudo, conforme já salientou este Tribunal no referido Acórdão n.º 101/15, só com esta conde- nação pela prática de um dos aludidos crimes é que opera a presunção prevista no artigo 7.º, n.º 1, da mesma Lei, sendo que, no incidente de liquidação, a que se refere o artigo 8.º desta Lei, já não está em causa o apuramento de qualquer responsabilidade penal do arguido, mas tão só a determinação de uma eventual incongruência entre o valor do património do arguido e os seus rendimentos de proveniência lícita, incongruência essa que, uma vez demonstrada de acordo com determinados pressupostos, tem como consequência ser declarado perdido a favor do Estado o valor do património do arguido que se apure ser excessivo em relação aos aludidos rendimentos, caso o arguido não ilida aquela presunção de causalidade. A imputação de um crime de catálogo funciona aqui apenas como pressuposto indiciador que poderão ter-se verificado ganhos patrimoniais de origem ilícita, o que justifica, na ótica do legislador, que, no mesmo processo em que se apure a prática desse crime e, eventualmente se conclua pela respetiva condenação, se averigue a existência desses ganhos, em procedimento enxertado no processo penal, de modo a poder determinar-se a sua perda (sobre as vantagens e desvantagens deste procedimento ocorrer enxertado no processo penal onde se apura a prática do crime que é pressuposto da aplicação da medida de perda de bens, vide Pedro Caeiro, ob. cit. , pág. 311-313, Jorge Godinho, pág. 1360, e Damião da Cunha, pág. 159-160). Embora enxertado naquele processo penal, o que está em causa neste procedimento, repete-se, não é já apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens daí decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, nem num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constata- ção de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=