TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

263 acórdão n.º 498/19 lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e consolidação dos ganhos ilegítimos. Em suma, a presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, antes, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada, e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei 5/2002 de 11 de janeiro tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens. Tendo em conta o aqui exposto, nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as normas cons- titucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido, invocadas pelo Recorrente. Já no que respeita ao procedimento criminal pela prática dos factos integradores de algum dos crimes referidos no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, o arguido beneficia de todas as garantias de defesa em processo penal, não havendo qualquer alteração às regras da prova ou qualquer outra especificidade resultante do regime de perda de bens previsto na aludida Lei. Significa isto que, no caso de haver condenação pela prática de tal crime, embora a presunção de inocência tenha sido tida em atenção no respetivo procedimento criminal que manteve a sua estrutura acusatória, a mesma veio a ser afastada pela prova produzida (e daí a condenação). Acresce ainda que, na hipótese de tal condenação não chegar a transitar em julgado e vier a ser revogada, faltará um dos pressupostos para a perda de bens. Em suma, só haverá perda de bens em favor do Estado desde que exista condenação do arguido, transitada em julgado, por um dos crimes referidos no artigo 1.º do diploma.» 12. A óbvia e inevitável consequência de o instituto português do confisco alargado não constituir uma reação contra a prática de um crime, nem uma reação sancionatória tout court , é a de não se lhe aplicarem as garantias constitucionais de estrita incidência em âmbitos normativos sancionatórios, como o princípio da presunção de inocência e as suas várias manifestações. Essa posição foi a acolhida nos Acórdãos n. os 101/15 e 392/15. Neste último afirmou-se liminarmente que «nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as normas constitucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido». Mais desenvolvidamente: «Ora, no regime previsto nas normas questionadas nos presentes autos que regulam o incidente de perda de bens enxertado no processo penal, a necessidade de o arguido carrear para o processo a prova de que a eventual incongruência do seu património tem uma justificação, demonstrando que os rendimentos que deram origem a tal património têm uma origem lícita, não coloca em causa a presunção de inocência que o mesmo beneficia quanto ao cometimento do crime que lhe é imputado naquele processo, nem de qualquer outro de onde possa ter resultado o enriquecimento. E também não inviabiliza o direito ao silêncio ao arguido, não se vislumbrando em que medida da demonstração da origem lícita de determinados rendimentos possa resultar uma autoincriminação relativamente ao ilícito penal que lhe é imputado nesse processo, e muito menos um desvio à estrutura acusatória do processo penal. Não se descortina, pois, que exista um perigo real daquela presunção, que opera num incidente de perda de bens tramitado no processo penal respeitante ao crime cuja condenação é pressuposto da aplicação desta medida, contaminar a produção de prova relativa à prática desse crime. Por estas razões se conclui que a presunção legal estabelecida nos artigos 7.º e 9.º, n. os 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, não viola o princípio da presunção de inocência, nem o direito do arguido ao silêncio, nem a estrutura acusatória do processo penal.» Esta posição reúne também significativo suporte doutrinário: e. g. , Pedro Caeiro, “Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriqueci- mento «ilícito»)”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal 21 (2011), pp. 311 e seguintes; João Conde Cor- reia, Da proibição do confisco à perda alargada , Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2012, pp. 113 e seguintes; e Francisco Borges, “Perda Alargada de Bens: Alguns Problemas de Constitucionalidade”, in José

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