TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

269 acórdão n.º 498/19 Relativamente ao primeiro elemento, deve sublinhar-se que a aplicação da perda alargada não pode ser desencadeada por uma condenação pela prática de qualquer tipo legal de crime, mas apenas por determina- dos tipos legais de crime previstos em legislação aprovada para fazer face a modalidades específicas de crimi- nalidade. Poderá sempre discutir-se se o catálogo de crimes a que o instituto se aplica deveria ser estreitado. No entanto, a limitação do instituto a um determinado e relativamente coerente conjunto de crimes denota logo um cuidado por parte do legislador em assegurar a consistência da presunção – e, para quem rejeite a teoria dos limites imanentes, a proporcionalidade da restrição do direito de propriedade causada pelo ins- tituto da perda alargada –, já que, em teoria, muitos outros crimes (ou mesmo a generalidade dos crimes) são aptos a gerar vantagens económicas ou financeiras. O legislador, todavia, cingiu a perda alargada a tipos de crime que se perfilam como mais suscetíveis de gerar vantagens daquela natureza e/ou cujos agentes são mais tipicamente movidos por esse objetivo – numa expressão, à criminalidade reditícia. Daí que alguns dos crimes do catálogo previsto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002 – mais especificamente, o lenocínio, o contrabando e o tráfico e viciação de veículos furtados –, crimes a que aquelas características são porventura menos intrínsecas ou intensas, apenas possam dar lugar à aplicação da perda alargada se se verificar concreta- mente que foram praticados de forma organizada (vide o n.º 2 do referido artigo 1.º). É que, como se lê na Proposta de Lei n.º 94/VIII, que esteve na base da Lei n.º 5/2002, «só assim eles são abrangidos pela ratio desta proposta, que não visa a pequena criminalidade». Por outro lado, se a finalidade da perda alargada é prevenir a prática de crimes – conforme decorre tam- bém exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 94/VIII –, não pode deixar de salientar-se que a sua conse- quência é apenas a de colocar o sujeito na situação em que o mesmo se encontraria não fosse a obtenção das vantagens indevidas. É restabelecer o status quo ante; repor a situação patrimonial anterior, sem ultrapassá-la – i. e. , sem colocar o sujeito numa situação pior do que aquela em que anteriormente se encontrava. Ora, na medida em que não piora a situação patrimonial anteriormente existente, a perda alargada não se expõe, também por aqui, ao conflito com o direito de propriedade: apenas são confiscadas vantagens. Neste sentido, vejam-se os já citados acórdãos Phillips (parágrafos 48 e seguintes) e Gogitidze (sobretudo os parágrafos 101 e seguintes), onde o TEDH concluiu pela não violação do direito de propriedade consagrado no artigo 1.º do Protocolo n.º 1 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Já em G. I. e.M. , o TEDH identificou uma violação do direito de propriedade, porque o instituto aí em causa – a também já referida confisca urbanística – não se limitava a repor a situação patrimonial prévia, mas antes a degradava (vide sobretudo o parágrafo 301). De resto, a circunstância de a situação patrimonial prévia constituir o limite da consequência da perda alargada regulada na Lei n.º 5/2002 robustece a ideia de que este instituto não apresenta natureza sanciona- tória, pelo menos para efeitos de aplicação de garantias que a Constituição da República Portuguesa reserva a âmbitos normativos dessa natureza. III – Decisão Pelo exposto, decide-se: a) Não julgar inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n. os 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro; e, em consequência, b) Negar provimento ao recurso. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie, fixando-se a taxa de justiça em 25 unidades de conta. Lisboa, 26 de setembro de 2019. – Lino Rodrigues Ribeiro – Gonçalo Almeida Ribeiro – Maria José Rangel de Mesquita – Joana Fernandes Costa – João Pedro Caupers

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