TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

27 acórdão n.º 465/19 conjunto de operações que visam, no final, dar à luz uma criança que seja tida como filha deles (cfr. supra os n. os 24 e 28), o referido consentimento destina-se a garantir que as obrigações assumidas em ordem a permitir alcançar tal finalidade – obrigações essas que interferem com direitos fundamentais da gestante, nomeadamente o direito à integridade física, o direito à saúde e até o direito a constituir família e a ter filhos – não violentam a gestante, ficando salvaguardada a sua dignidade ao longo de todo o processo (cfr. supra os n. os 8, 28 e 29). Com efeito, qualquer uma das obrigações características do contrato de gestação de substituição – a submissão a uma técnica de PMA, a gravidez e o parto suportados no interesse dos beneficiários e a entrega a estes da criança nascida – só é juridicamente admissível porque consentida pela gestante. E este consentimento livre e esclarecido – é essa a razão de ser do estabelecimento de certas garantias procedimentais e organizatórias para a sua prestação –, que a vincula, tem de valer enquanto for condição indispensável à salvaguarda da dignidade da gestante, pois só desse modo pode desempenhar a função específica que lhe compete no âmbito do regime da gestação de substituição. Dada a natureza jurídica do consentimento enquanto negócio jurídico unilateral, não é fácil a sua articulação jurídico-formal com o regime do contrato – um negócio jurídico bilateral. E o modo como a referência expressa ao contrato foi introduzida na lei também não ajuda (cfr. supra o n.º 29). De todo o modo, é seguro que a previsão legal do contrato e o seu regime não pode prejudicar a função própria e específica do consentimento, em particu- lar o da gestante, sob pena de pôr em causa a própria admissibilidade constitucional da gestação de substituição. Recorde-se que uma das condições de admissibilidade do modelo português de gestação de substituição é, pre- cisamente, a consideração de que o mesmo não põe em causa a dignidade da gestante (cfr. supra os n. os 28 e 29). 40. As aludidas dificuldades de articulação jurídico-formal do consentimento e do contrato transparecem, desde logo, na própria LPMA. Não obstante, e como referido, o legislador conservou a respetiva autonomia, assegurando que, pelo menos «até ao início dos processos terapêuticos de PMA», o regime do contrato não pode pôr em causa as garantias legais conexas com a liberdade do consentimento. Com efeito, a aplicabilidade do dis- posto no artigo 14.º, n.º 4, daquele diploma no âmbito da gestação de substituição, tanto aos beneficiários como à gestante – resultando tal aplicabilidade das remissões contidas no artigo 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5 –, significa que, mesmo existindo já contrato assinado entre as partes, qualquer uma delas pode revogar o consentimento previa- mente dado, fazendo desaparecer o pressuposto da celebração do próprio contrato e, consequentemente, determi- nando a sua total ineficácia. O n.º 10 do artigo 8.º da LPMA estatui que a «celebração de negócios jurídicos de gestação de substituição é feita através de contrato escrito estabelecido entre as partes», os beneficiários e a gestante. É nesse acordo, supervi- sionado pelo CNPMA, que devem estar reguladas certas questões («as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez» – n.º 10); por outro lado, o mesmo acordo «não pode impor restrições de comportamentos à gestante de substituição, nem impor nor- mas que atentem contra os seus direitos, liberdade e dignidade» (n.º 11 do mesmo artigo) nem prever pagamentos à gestante que ultrapassem «o valor correspondente às despesas decorrentes do acompanhamento de saúde efeti- vamente prestado, incluindo em transportes, desde que devidamente tituladas em documento próprio» ( ibidem , n.º 5). Em ordem a verificar a observância dos requisitos de legalidade do contrato, este tem de ser previamente autorizado pelo CNPMA ( ibidem , n.º 4). Mas o n.º 8 do mesmo artigo 8.º refere-se expressamente à «validade e eficácia do consentimento das partes», autonomizando-o do «regime dos negócios jurídicos de gestação de substituição», e determinando que a tal maté- ria seja aplicado o disposto no artigo 14.º da LPMA. Este preceito, concebido especificamente para a aplicação das técnicas de PMA, tem como epígrafe «Consentimento» e disciplina as condições, termos e conteúdo de uma declaração negocial desse tipo, que, por natureza é unilateral. Como se referiu supra no n.º 8, o consentimento prestado no quadro da gestação de substituição não se limita a autorizar a aplicação de uma dada técnica de PMA; o mesmo vincula o emitente em relação a todo o processo de gestação de substituição, sendo, por isso, mais com- plexo e abrangente. É mais complexo, porque exige uma declaração de consentimento dos beneficiários e outra da gestante, as quais não se dirigem apenas ao médico responsável, mas também aos próprios interessados: os beneficiários consentem, também perante a gestante, que nesta seja implantado um embrião constituído com recurso a gâmetas de, pelo

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