TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

32 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL proceder à sua entrega após o parto – cujo cumprimento já não corresponde à sua vontade mais profunda e antes constitua, para si, uma violência. Ora, o consentimento que lhe é exigido para participar num processo de gestação de substituição visa também prevenir tal tipo de situações, uma vez que as mesmas convertem – e degradam – o que foi concebido como ato de solidariedade ativa numa instrumentalização atentatória da sua dignidade pessoal. O artigo 14.º, n.º 4, da LPMA, aplicável à gestante por remissão do artigo 8.º, n.º 8, daquela Lei, e confirmada pelo disposto no n.º 5 do mesmo artigo 14.º («o disposto nos números anteriores é aplicável à gestante»), só admite a livre revogação do seu consentimento «até ao início dos processos terapêuticos de PMA». Neste caso, está em causa a defesa dos interesses dos beneficiários perante uma eventual “mudança de ideias” ou o “arrependimento” da gestante, que se traduz na vontade de a mesma se afastar do projeto parental daqueles e no qual se dispusera a participar (cfr. supra os n. os 24 e 28). 44. A gestante pode afastar-se do projeto parental dos beneficiários por não querer levar a gestação até ao fim, realizando uma interrupção voluntária da gravidez, ou por, inversamente, querer levar a gravidez até ao fim e assumir um projeto parental próprio. Em razão do exposto, cumpre analisar se – e em que casos – a proibição de revogação do seu consentimento estatuída no citado artigo 14.º, n.º 4, da LPMA é legítima ou excessiva, atentos os interesses em causa. Naturalmente que também os beneficiários podem querer afastar-se, por razões supervenientes, do seu próprio projeto parental (nomeadamente, em hipótese de divórcio, de doença incurável ou mesmo da morte de um deles, mas também de malformações do feto ou de doenças fetais entretanto detetadas). Simplesmente, a aludida assime- tria das obrigações assumidas pelos beneficiários e pela gestante no âmbito da gestação de substituição (cfr. supra o n.º 42), bem como a circunstância de nenhuma mulher poder ser obrigada a realizar uma interrupção voluntária da gravidez contra a sua vontade, ainda que se encontrem reunidos os pressupostos legais para o efeito, tem como consequência que, depois da transferência uterina, isto é, da implantação do embrião no útero da gestante, os primeiros já não possam voltar atrás nem exigir à gestante que o faça, mesmo no caso desta não querer assumir um projeto parental próprio relativamente ao nascituro que traga no seu ventre. A única solução, nesses casos, será, portanto, a entrega pelos beneficiários da criança nascida na sequência do recurso a gestação de substituição – e que é sua filha, nos termos do n.º 7 do artigo 8.º da LPMA – para adoção (cfr., sobre as questões suscitadas pelas várias hipóteses de arrependimento das partes no contrato de gestação de substituição, Vera Lúcia Raposo, “Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação (mas o legislador teve medo de responder)” in Revista do Ministério Público , n.º 149 (janeiro-março de 2017), pp. 9 e ss., em especial, pp. 15 e ss. e 31 e ss.). Haveria ainda a considerar a possibilidade de as partes quererem revogar por acordo o contrato de gestação de substituição, já depois de realizada a transferência uterina – hipótese não expressamente prevista e que poderia suscitar dificuldades em virtude de o mesmo não ser inteiramente livre, uma vez que tem de ser previamente auto- rizado. Contudo, bem vistas as coisas, tal possibilidade acaba por se reconduzir à situação em que a gestante revoga o seu consentimento, seja por não querer levar a gestação até ao fim, seja por querer assumir um projeto parental próprio. A única diferença consiste em tal revogação ocorrer numa situação em que não existe qualquer conflito com a vontade dos beneficiários. 45. No que se refere ao afastamento da gestante relativamente ao projeto parental dos beneficiários em virtude de não querer levar a gravidez até ao fim, poderia pensar-se que os mesmos são objeto de disciplina legal no artigo 8.º, n.º 10 da LPMA. Contudo este preceito limita-se a estabelecer que do contrato de gestação de substituição «devem constar obrigatoriamente, em conformidade com a legislação em vigor, as disposições a observar em caso de ocorrência de malformações ou doenças fetais e em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez». Ou seja, na sua letra, o mesmo preceito não assegura à gestante a possibilidade de, por si só, e sem consequências indemnizatórias, decidir realizar uma interrupção voluntária da gravidez (“IVG”) nas situações em que a mesma se encontra legalmente garantida, conforme previsto no artigo 142.º do Código Penal e na Lei n.º 16/2007, de 17 de abril. Tal interpretação é confirmada pelo Decreto Regulamentar n.º 6/2017, que, em todo o caso, ressalva a possi- bilidade de realização de IVG, por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas de gravidez [cfr. o artigo 4.º, com referência à alínea e) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal]. Para as demais situações legalmente previstas, vale

RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=