TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

33 acórdão n.º 465/19 a determinação de que o contrato-tipo contenha cláusulas tendo por objeto as «disposições a observar em caso de eventual interrupção voluntária da gravidez em conformidade com a legislação em vigor» [vide ibidem , artigo 3.º, n.º 3, alínea h) ]. No contrato-tipo já aprovado, aquela ressalva também se encontra prevista, a título de «revogação do contrato», sem prejuízo da obrigação de reembolsar o casal beneficiário das despesas realizadas (cfr. a cláusula 8.ª). Admite-se também a «resolução do contrato por qualquer das partes, sem que haja lugar ao pagamento de qualquer indemni- zação», em caso de IVG realizada ao abrigo das alíneas a) ou b) do n.º 1 do artigo 142.º do Código Penal: remoção ou prevenção do perigo de morte ou de grave e irreversível (ou duradoura) lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida. Porém, já no que se refere às situações previstas na alínea c) do mesmo preceito do Código Penal (existência de «seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, excecionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo»), a cláusula 9.ª estabelece que a decisão da con- cretização da IVG «caberá em conjunto ao casal beneficiário e à gestante» (itálico aditado). E, se a gestante, « contra a vontade declarada do casal beneficiário » (itálico aditado), não concretizar a IVG nessas mesmas situações, fica obrigada a indemnizar os danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos pelo casal beneficiário em consequência do nascimento de uma criança naquelas condições (cfr. a cláusula 10.ª). Em suma, as referências às disposições sobre IVG contidas no referido artigo 8.º, n.º 10, da LPMA não permi- tem assegurar que em todas as circunstâncias que, de acordo com a lei vigente, excluem a ilicitude da IVG realizada por escolha da mulher grávida [deixando de lado, por não relevante  in casu , a situação prevista na alínea d) do artigo 142.º, n.º 1, do Código Penal – gravidez resultante de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual], a gestante também o possa fazer, sozinha e sem penalizações, num estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido. Deste modo, a limitação à revogabilidade do seu consentimento estatuída no artigo 14.º, n.º 4, da mesma Lei, aplicável por força das remissões constantes dos seus artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, abre espaço para uma intervenção condicionadora dos beneficiários neste domínio. A anterior análise de algumas cláusulas do contrato-tipo comprova isso mesmo. Mais importante ainda é verificar que todas as situações de facto antes consideradas em que a IVG não é punível – opção da mulher grávida até às 10 semanas, perigo de vida ou perigo para a saúde física ou psíquica da mulher grávida ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malfor- mação congénita – representam circunstâncias atendíveis e justificativas de uma mudança de ideias da gestante de substituição quanto à sua gravidez, designadamente no sentido de não querer levá-la até ao fim. No quadro da gestação de substituição, dir-se-á que a opção de realizar uma IVG, nos casos e nos termos em que a lei geral a admite, corresponde a uma garantia essencial da efetividade do direito ao desenvolvimento da personalidade da gestante. Mas essa opção, devido à impossibilidade de revogação do consentimento, não se encontra salvaguardada em toda a sua amplitude (desde logo, por exemplo, no que se refere à exclusão de penalizações – cfr., no sentido da responsabilização da gestante em caso de abortamento voluntário, Vera Lúcia Raposo, “ Tudo aquilo que você sempre quis saber sobre contratos de gestação… ” cit., pp. 33-34). 46. Ora, tal limite à revogação do consentimento, não se revelando inadequado nem desnecessário à proteção do projeto parental dos beneficiários e dos seus interesses e expectativas, apresenta-se, todavia, excessivo, pelo sacri- fício que impõe a um direito fundamental da gestante de substituição. Recorde-se que é esta quem, no exercício da sua autonomia pessoal, aceita participar no projeto parental dos beneficiários, viabilizando-o (cfr. supra os n. os 24 e 28). Estes últimos apenas gozam da faculdade legal (cfr. supra o n.º 27) de, por via da gestação de substituição, tentarem concretizar um projeto parental próprio, que, todavia, depende da disponibilidade de alguém que, por razões exclusivamente altruístas, se disponha a assumir obrigações pessoais que, não fora o reconhecimento desse altruísmo enquanto exteriorização livre da respetiva personalidade, representariam uma instrumentalização inadmissível da sua pessoa. Ou seja: o projeto parental em causa não assenta exclusivamente no desejo de parentalidade dos beneficiários; não menos essencial é a vontade da gestante de que os mesmos sejam pais da criança que esta vier a dar à luz. Os beneficiários e a gestante de substituição não

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