TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

34 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL podem, assim, deixar de estar cientes de que o caráter voluntário das obrigações características do contrato de ges- tação de substituição é essencial ao respetivo cumprimento. Por força das características próprias da gravidez, enquanto fenómeno biológico, psicológico e potencialmente afetivo com caráter dinâmico e imprevisível quanto a diversas vicissitudes, não se pode ter como certo que a von- tade inicialmente manifestada pela gestante seja totalmente esclarecida e insuscetível de sofrer modificações em virtude de desenvolvimentos não previstos ocorridos durante o próprio processo gestacional (cfr. supra o n.º 43). Consequentemente, as obrigações contratualmente assumidas e consentidas a priori, podem a partir de um dado momento deixar de corresponder à vontade da gestante, de modo tal que o respetivo cumprimento deixe de tra- duzir uma afirmação da sua liberdade de ação e autodeterminação. O consentimento inicial deixa, assim, de ser atual, por razões atendíveis. Nestas circunstâncias, forçar o cumprimento de tais obrigações – no caso ora considerado, condicionar de algum modo o abandono do projeto parental que deixou de ser partilhado pela gestante com o objetivo de que o mesmo seja levado até ao parto – implicaria instrumentalizar a gestante ao mesmo projeto parental, interferindo gravemente com a sua capacidade de autodeterminação e, em última análise, com a sua dignidade pessoal. O quadro em que a gestante, no exercício do seu direito ao desenvolvimento da personalidade, consentiu na gestação de substituição mostra-se alterado em termos tais, que a prossecução da mesma gestação já não traduz uma mani- festação de tal direito. Porém, e como referido, esse é o pressuposto fundamental da legitimidade da intervenção e participação da gestante de substituição: na ausência de vontade positiva atual, a sua participação degrada-se em instrumento ao serviço da vontade dos beneficiários. Daí a importância de acautelar a permanência de tal vontade ao longo de todo o processo, o que só é possível mediante a admissão da livre revogabilidade do consentimento da gestante até ao cumprimento integral de todas as obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição. Do lado dos beneficiários, a admissão de tal revogação implica subordinar o destino do projeto parental por eles concebido – e para o qual também contribuíram decisivamente fornecendo gâmetas essenciais à formação do embrião transferido para o útero da gestante – a uma disposição de vontade da gestante, frustrando, desse modo, expectativas legítimas quanto à possibilidade de ter uma família com filhos seus. Mas, a verdade é que o projeto em causa depende desde o início da solidariedade ativa da gestante; nunca é autónomo. Com se referiu acima, o mesmo até é, em certo sentido, partilhado pelos beneficiários e pela gestante (cfr. supra os n. os 8 e 24). Sendo certo, por outro lado, que tal partilha fundada na solidariedade ativa se mantém ao longo de todo o processo. De acordo com esta perspetiva – a única que permite legitimar o projeto parental dos beneficiários à luz do princípio da dignidade humana da gestante (cfr. supra o n.º 28) –, a revogação do consenti- mento no caso de a mencionada solidariedade desaparecer não constitui um elemento estranho ao próprio projeto parental, sendo antes uma possibilidade ineliminável que o mesmo necessariamente integra. Acresce que, num quadro como o descrito, o afastamento da gestante do projeto parental a que inicialmente aderira, designadamente a vontade de não levar a gestação até ao fim em qualquer uma das situações em que a lei geral não pune a IVG, é motivado por razões ponderosas e atendíveis, de resto assim consideradas por essa mesma lei, pelo que a gravidade da decisão da gestante não pode ser desvalorizada nem ignorada. Confrontando o peso das expectativas dos beneficiários protegidas pela irrevogabilidade do consentimento da gestante, com o sacrifício, momentaneamente quase total, do direito fundamental ao desenvolvimento da perso- nalidade desta última determinado por tal irrevogabilidade, sempre que estejam em causa as citadas situações, a desproporção é manifesta. Os inconvenientes e frustrações dos primeiros não justificam a instrumentalização da segunda em ordem a evitá-los. A verificar-se tal instrumentalização, seria violado o dito direito fundamental da gestante, interpretado à luz do princípio da dignidade da pessoa humana. E, a única garantia de que tal não suceda, é, como referido anteriormente, salvaguardar a possibilidade de a gestante revogar o seu consentimento para além do início dos processos terapêuticos de PMA. Deste modo, a limitação à revogabilidade do consentimento da gestante estabelecida em consequência das remissões dos artigos 8.º, n.º 8, e 14.º, n.º 5, da LPMA para o n.º 4 deste último, é inconstitucional por restringir desproporcionadamente o respetivo direito ao desenvolvimento da personalidade, interpretado à luz do princípio

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