TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

35 acórdão n.º 465/19 da dignidade da pessoa humana (artigos 1.º e 26.º, n.º 1, em conjugação com o artigo 18.º, n.º 2, todos da Cons- tituição). 47. Estas considerações também são aplicáveis no caso da gestante de substituição se afastar do projeto parental dos beneficiários em virtude de querer levar a gravidez até ao fim e assumir um projeto parental próprio. Simples- mente, a existência de um concurso positivo de pretensões quanto à parentalidade da criança que vier a nascer ou já nascida torna as ponderações muito mais complexas, desde logo porque é necessário considerar também o interesse da criança. Com efeito, num tal quadro, a gravidez é levada até ao seu termo, e, uma vez nascida a criança, tanto os beneficiários, como a gestante pretendem assumir responsabilidades parentais quanto à mesma. Uma tal hipótese não é admitida pela lei não só por causa do limite à revogabilidade do consentimento da gestante consagrado no artigo 14.º, n.º 4, da LPMA e já analisado, como também devido à regra especial de esta- belecimento da filiação consagrada no artigo 8.º, n.º 7, da mesma Lei, no pressuposto da existência de um contrato de gestação de substituição válido e eficaz: a «criança que nascer através do recurso à gestação de substituição é tida como filha dos respetivos beneficiários». Tal como anteriormente analisado, estas regras não são inadequadas nem desnecessárias à salvaguarda da posi- ção dos beneficiários. Contudo, as mesmas não têm em atenção que durante a gravidez e até ao parto a única rela- ção que existe com a criança que vai nascer é aquela que se estabelece entre a gestante e o nascituro, com relevância nos planos biológico e epigenético, bem como nos planos afetivo e emocional: a mulher grávida altera a expressão genética de cada embrião e, inversamente, o embrião-feto altera a grávida para sempre; e é durante a gestação que se estabelece uma vinculação afetiva entre o nascituro e a grávida (cfr. supra o n.º 43). As regras em apreço também desconsideram que, a partir do nascimento, o interesse da criança deve ser o principal critério de todas as decisões que sejam tomadas em relação ao destino da mesma (cfr. o artigo 3.º, n.º 1, da Convenção sobre os Direitos da Criança e supra o n.º 33). Para a análise da validade daquelas normas, não é decisivo se a pretensão concorrente da gestante se manifesta antes ou depois do parto. O momento crítico é o do cumprimento da última obrigação essencial do contrato, ou seja, o da entrega da criança aos beneficiários. Com efeito, além de ser nessa altura que a gestante executa a parte que faltava do contrato de gestação de substituição que lhe corresponde, tal ato, sendo praticado voluntariamente, é comparável ao consentimento para adoção (cfr. o 1981.º, n.º 1, do Código Civil). Por conseguinte, o que releva é a revogação pela gestante do seu consentimento inicial antes de entregar voluntariamente a criança que deu à luz ao casal beneficiário. Depois desse momento, estabelece-se uma nova relação entre estes últimos e o recém-nascido, deixando a gestante de ter argumentos que justifiquem voltar atrás (analogamente, quanto à adoção, vide o artigo 1983.º, n.º 1, do Código Civil). Por outro lado, a solução a dar ao problema do concurso de projetos parentais também não é influenciada pela circunstância de ambos os beneficiários serem progenitores genéticos da criança, em virtude de o embrião ter sido formado com gâmetas de ambos, ou só de um deles. Está em causa uma escolha apenas entre o projeto parental dos beneficiários ou o projeto parental assumido pela gestante. Cumpre analisar separadamente as posições da gestante e da criança nascida. Quanto à gestante, valem as considerações feitas supra no n.º 46, a propósito da ponderação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade com o interesse dos beneficiários na defesa do respetivo projeto parental. Só que no caso ora considerado, as razões do afastamento de tal projeto por parte da gestante já não visam somente a proteção de bens pessoais dela (eventualmente, conjugados com a sua perceção sobre o que poderia ser o bem ou mal da criança que viesse a dar à luz) – como sucedia em relação à opção até às 10 semanas, ao perigo de vida ou perigo para a sua saúde física ou psíquica ou risco grave de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de grave doença ou malformação congénita –, mas também a continuação de uma relação com a criança nascida no quadro de um projeto parental que concorre com aquele em função do qual os beneficiários, num momento inicial, contribuíram com o seu material genético para que tal relação se pudesse estabelecer. Decerto que, do lado da gestante, pesam os citados argumentos decorrentes do seu direito ao desenvolvimento da personalidade e das exigências de atualidade do consentimento, por forma a assegurar que o cumprimento das obrigações essenciais do contrato de gestação de substituição traduza uma afirmação da sua liberdade de ação e

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