TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

40 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Para além disso, ao erigir a certeza e a segurança jurídicas como o fundamento determinante da sua pro- núncia, esta decisão atribui ao Tribunal Constitucional um predomínio sobre o legislador que a Constituição não lhe reconhece. A circunstância de no caso serem apenas «dezoito meses que mediaram entre a anterior pronúncia do Tribunal e o momento presente» (ponto 10 do Acórdão), não justifica a recusa de reabertura da discussão. Não cabe ao Tribunal Constitucional definir o prazo para a Assembleia da República voltar a legislar sobre a mesma matéria. 3. Inegável é que, apesar da minha discordância com estes elementos da fundamentação adotada, sub- siste sempre a interdição de aprovação de normas inconstitucionais. Assim, a inconstitucionalidade da nova norma não resulta diretamente do facto de constituir uma reedição de uma norma já julgada inconstitucio- nal, antes da persistência da sua desconformidade com a Constituição. Esta é a consequência que compreensivelmente se anuncia para o legislador que não presta a devida atenção às decisões do Tribunal. – Maria de Fátima Mata-Mouros. DECLARAÇÃO DE VOTO Votei favoravelmente a decisão. Não tendo integrado a composição do Tribunal que proferiu o Acórdão n.º 225/18, este é, para mim, um juízo de ponderação inteiramente novo. Como é natural, o sentido da juris- prudência constitucional anterior, em particular de uma decisão tão recente, não pode deixar de ser tomado em consideração, enquanto elemento valorativo, atenta a necessidade de estabilidade da jurisprudência dos tribunais superiores, por razões de segurança jurídica e igualdade de tratamento dos seus destinatários. Todavia, em qualquer caso, sempre relevariam, acima de tudo, e no meu entender, os fundamentos jurídico-constitucionais que sustentam quer o juízo de inconstitucionalidade do Acórdão n.º 225/18, quer a presente decisão. A solução legislativa ora reiterada, ao não admitir a revogação do consentimento da ges- tante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, configura uma lesão inadmissível dos seus direitos fundamentais ao desenvolvimento da personalidade, interpretado de acordo com o princípio da dignidade da pessoa humana, e a constituir família, conforme decorre da conjugação do artigo 18.º, n.º 2, respetivamente, com os artigos 1.º e 26.º, n.º 1, por um lado, e com o artigo 36.º, n.º 1, da Constituição. A gestação de substituição, tal como foi concebida pelo legislador, funda-se num dom: na doação, voluntária e generosa, por parte da gestante, do seu corpo e de um período significativo de vida, com todos os incómodos e riscos inerentes à vivência de uma gravidez, sem que nada lhe seja dado em troca, além da satisfação de contribuir para a realização do projeto de parentalidade de outrem. Nestes termos, e não se ignorando a necessidade de tutela jurídica dos interesses dos beneficiários, entendo que no centro da solução jurídico-constitucional terão de estar, necessariamente, a dignidade da mulher gestante, a proteção da gravi- dez e o interesse do nascituro. A questão do consentimento, nos termos em que agora se coloca, tem tido escassa relevância prática, como demonstram os trabalhos de direito comparado. Contudo, a sua solução, além de ter inegável importância autónoma, é também ponto de partida para a indispensável concordância prática entre direitos e valores em conflito que se colocarão, no futuro, em situações intermédias, e que exigirão soluções novas e ponderadas, quer do legislador, quer dos tribunais. Assim, a dignidade aqui jusconstitucionalmente tutelada não deve ser uma dignidade entendida de forma abstrata, essencialística, que transforme a gestante em seu objeto. Deve, sim, ser compreendida como a dignidade concreta de cada mulher gestante, refletida nas suas vivências de liberdade e autodeterminação. A mulher só pode ser sujeito – e o sujeito central – da gestação de substituição. Por isso, e ainda que a gestação de substituição tenha, inelutavelmente, de ser uma vivência partilhada entre gestante e beneficiários, um percurso interpessoal, mais do que a execução de um contrato jurídico ou a aplicação de uma técnica médica, parece-me inaceitável, do ponto de vista constitucional, uma solução que

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