TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

49 acórdão n.º 464/19 XV - Não se ignora que esta é uma matéria na qual, tal como na questão mais lata da interferência nas comunicações privadas em sede de processo penal, e por maioria de razão, se impõe a considera- ção do dever estadual de garantir a segurança, que decorre do n.º 1 do artigo 27.º da Constituição, contudo, o Tribunal Constitucional é o garante de um determinado parâmetro constitucional, não lhe cabendo, no quadro de um Estado de direito democrático, substituir-se-lhe, pelo que deve, na questão ora em análise, respeitar-se a operação de concordância prática realizada pelo legislador e consagrada no n.º 4 do artigo 34.º da Constituição, porque foi esta a opção do poder constituinte democraticamente legitimado. XVI - Quanto ao segmento ideal do artigo 4.º, que se refere ao acesso aos dados de tráfego que não envolvem uma comunicação intersubjetiva, não obstante aqueles dados não se reportarem a con- cretas e efetivas comunicações realizadas ou tentadas entre pessoas, mas apenas entre pessoas e máquinas ou até mesmo entre máquinas ( machine-to-machine communications ) proporcionadas por “agentes de software ”, a verdade é que podem assentar nos mesmos dados de base dos segundos e, tal como estes, possibilitar a monitorização, vigilância e controlo de movimentos de pessoas, assim como a construção de perfis de utilizadores que comportam riscos evidentes de perda de privacidade; daí que, face à semelhança dos valores e interesses afetados pelo tratamento não con- sentido de ambas as categorias de dados de internet e ao equivalente grau de danosidade que ele pode causar ao utilizador, também aqui o que está em causa é assegurar o livre desenvolvimento da personalidade e a privacidade de cada um através da utilização da internet à margem da publi- cidade, tendo a densidade de escrutínio que ser tanto maior quanto mais evidente, ou manifesta, for a inexistência de fundamento para um regime diferenciado de intromissões com referência aos dados de internet . XVII - Embora a Constituição consagre um regime diferenciado de intromissão nos dados de internet – de acordo com a previsão do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição, os dados de tráfego relativos a comunicações entre pessoas estão abrangidos pela área de tutela da inviolabilidade das teleco- municações, existindo uma autorização constitucional especial para a ingerência das autoridades públicas nesse domínio, circunscrita apenas a matéria de investigação criminal; já os dados de tráfego na internet que não envolvam comunicações interpessoais, na medida em que permitem identificar o nome, morada e outros dados de identificação do utilizador, são considerados “dados pessoais” protegidos apenas pelas normas gerais do artigo 35.º da Constituição, que admitem res- trições em domínios que podem extravasar o âmbito da investigação criminal –, não há dúvida de que, no que concerne aos dados de tráfego no âmbito das comunicações intersubjetivas, incluindo os dados de internet , a tutela especial da autodeterminação comunicativa afasta ou dispensa a tutela geral da autodeterminação informativa; e quanto aos dados de tráfego de internet fora desse âmbito, é convocável apenas esta última tutela geral. XVIII - Contudo, daqui não decorre que as dimensões da privacidade e da proteção de dados pessoais dos utilizadores eventualmente em causa tenham menor merecimento constitucional do que aquelas que também podem ser lesadas no âmbito das comunicações interpessoais, não podendo a inten- sidade de escrutínio exigida, apesar da diferença dos parâmetros constitucionais em causa, deixar de ser similar ou equivalente; a razão de ser da legitimidade constitucional da ingerência relativa aos dados de trafego não estará tanto na diferente categoria de dados – pressuporem ou não um ato de comunicação intersubjetiva –, mas sobretudo nas especificidades em termos de interesse público e de garantias próprias do domínio em que a restrição pode atuar: a investigação criminal.

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