TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

551 acórdão n.º 572/19 2.1. Os recorrentes apresentaram uma única alegação, que concluía nos seguintes termos: «1.ª) O crime de abuso de poder é um crime específico, é um crime de função e, por isso, um crime próprio, que ocorre quando o funcionário que detém determinados poderes funcionais faz uso de tais poderes para um fim diferente daquele para que a lei os concede. 2.ª) Para que se preencha o tipo objetivo de ilícito é necessário que o funcionário atue na veste de funcionário, que aja nessa qualidade. 3.ª) Tem que existir, necessariamente, uma conexão direta entre os atos (praticados por ação ou por omissão) desse funcionário e a sua condição e qualidade de funcionário. 4.ª) É por isso que o artigo 382.º do Código Penal faz referência ao abuso de poderes ou violação de deveres inerentes às suas funções. 5.ª) Os arguidos A., Contabilista Certificado, e B., empresário, não são funcionários públicos, logo não têm os poderes, as funções ou os deveres que sobre estes impendem. 6.ª) Sendo o crime de abuso de poder um crime que depende das qualidades funcionais do seu agente, logo se extrai que os recorrentes, que não reúnem tal qualidade de funcionário, nunca poderiam ter praticado o tipo ilícito criminal pelo qual foram condenados. 7.ª) Não sendo os recorrentes funcionários também não lhes estavam confiados quaisquer poderes ou deveres funcionais dos quais os mesmos pudessem, aliás por impossibilidade natural, ter abusado, violado ou omitido. 8.ª) A tutela do bem jurídico salvaguardado pelo tipo legal de crime de abuso de poder é confiada a um fun- cionário, razão pela qual o sujeito ativo do tipo de ilícito criminal terá de deter a qualidade de funcionário na sua definição constante do art.º 386.º, do Código Penal. 9.ª) Ainda que à luz do disposto no art.º 28.º, n.º 1, do Código Penal, não é possível que um não funcionário seja co-autor deste tipo objetivo de ilícito na medida em que nunca lhe foram conferidos, confiados ou investidos quaisquer poderes ou deveres de funcionário dos quais possa ter abusado ou violado. 10.ª) Sendo a culpa sempre uma vontade antijurídica individual e intransmissível, um não funcionário, tal como os aqui recorrentes, nunca poderia ter atuado com dolo de violar os deveres ou de abusar dos poderes de funcionário quando não os detinham e nos quais não foram investidos. 11.ª) Não se demonstra preenchido o tipo subjetivo de ilícito exigido pelo art.º 382.º em causa, sendo certo que, e sem conceder quanto ao atrás referido, o art.º 28.º apenas poderá comunicar aos demais a ilicitude do facto e não a culpa específica e inerente à qualidade de funcionário. 12.ª) A conduta dos recorrentes não integra a prática de qualquer tipo legal de crime, nomeadamente o crime de abuso de poder, sendo certo que qualquer outro entendimento, tal como aquele plasmado no Acórdão, não encontra na lei penal qualquer descrição típica alternativa que permita enquadrar penalmente a posição dos argui- dos sem violar o princípio da legalidade que decorre do artigo 1.º do Código Penal e do artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa. 13.ª) É inconstitucional o disposto no artigo 382.º e 28.º do Código Penal, quando interpretado no sentido de que alguém que não seja funcionário, tal como definido no artigo 386.º do Código Penal, pode ser condenado pelo crime de Abuso de Poder, quando essa qualidade – funcionário – se verifique nos seus comparticipantes, podendo ser-lhes estendida. 14.ª) Esta interpretação viola expressamente o Artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa. 15.ª) E viola frontalmente, entre outros, o artigo 2.º da C.R.P., que consagra o princípio fundamental do Estado de Direito, a que estão inerentes as ideias de jurisdicidade, constitucionalidade e direitos fundamentais, concretizado no subprincípio do Estado constitucional ou da constitucionalidade, consagrado no artigo 3.º, n.º 3 da C.R.P.; no subprincípio da independência dos Tribunais e do acesso à justiça, consagrado nos artigos 20.º e 205.º e ss. da C.R.P.; no subprincípio da prevalência da lei; no subprincípio da segurança jurídica e da confiança dos cidadãos; e no subprincípio das garantias processuais e procedimentais ou do justo procedimento. 16.ª) inconstitucionalidade que deve ser declarada.

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