TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

557 acórdão n.º 572/19 o mais pormenorizadamente possível a conduta que qualifica como crime. Só assim o cidadão poderá saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser qualificado criminoso, com a consequência de lhe vir a ser apli- cada uma pena ou uma medida de segurança. Daqui resulta a proibição de o legislador utilizar cláusulas gerais na definição dos crimes, a necessidade de reduzir ao mínimo possível o recurso a conceitos indeterminados, e o imperativo de não recorrer às chamadas “normas penais em branco”, salvo quando tal recurso se apresente como manifestamente indispensável e a norma para que é feita a remissão seja clara na descrição da conduta punível. Esta exigência, decorrente da razão de garantia do princípio da legalidade penal, é denominada por princípio da tipicidade, traduzido pela conhecida formulação latina nullum crimen sine lege certa .»” Por conseguinte, como já se afirmou no Acórdão n.º 168/99 (e se repetiu nos Acórdãos n. os 383/00, 93/01, 352/05, 20/07 e 76/16), «averiguar da existência de uma violação do princípio da tipicidade, enquanto expressão do princípio constitucional da legalidade, equivale a apreciar da conformidade da norma penal aplicada com o grau de determinação exigível para que ela possa cumprir a sua função específica, a de orientar condutas humanas, prevenindo a lesão de relevantes bens jurídicos. Se a norma incriminadora se revela incapaz de definir com suficiente clareza o que é ou não objeto de punição, torna-se constitucio- nalmente ilegítima». Precisando, assinala o Acórdão n.º 606/18, que o artigo 29.º, n.º 1, da Constituição encerra a exigência de que «a caracterização do ilícito típico seja levada a um tal ponto que torne possível aos destinatários da norma incriminadora conhecer os elementos, objetivos e subjetivos, que integram a infração e, através da apreensão, por essa forma, do elenco tanto dos valores protegidos como dos comportamentos proibidos pelo ordenamento jurídico-penal, exercerem, de forma consciente e esclarecida, a respetiva liber- dade de autodeterminação». No mesmo sentido, diz Taipa de Carvalho ( Direito Penal, Parte Geral, 3.ª edição, 2016, p. 177) que o «texto legal constitui, porém, um limite às conclusões interpretativas teleológicas, no sentido de impedir a aplicação da norma a uma situação que não esteja abrangida pelo teor literal da norma, isto é, por um ou vários significados da(s) palavra(s) do texto legal. Poder-se-á dizer que, assim, ficarão, por vezes, fora do âmbito jurídico-penal situações tão ou mais graves do que as expressamente abrangidas pela norma legal […]. Responde-se que assim é, e tem de ser quer em nome da tal garantia política do cidadão quer na linha do carácter fragmentário do direito penal». Os corolários do princípio da legalidade, em relação à formulação das normas penais, estendem-se, também, às dimensões normativas acolhidas pelos tribunais comuns, para o que compete ao Tribunal Cons- titucional, no âmbito das suas competências, sindicar e assegurar que um conteúdo normativo definidor da responsabilidade penal, aplicado na decisão recorrida, é compatível com a letra da lei da qual é extraído (cfr. Acórdão n.º 183/08, cuja posição foi reiterada nos Acórdãos n. os 128/10, 324/13, 587/14, 106/17): «Nos Estados de Direito democráticos, o Direito penal apresenta uma série de limites garantísticos que são, de facto, verdadeiras “entorses” à eficácia do sistema penal; são reais obstáculos ao desempenho da função punitiva do Estado. É o que sucede, por exemplo, com o princípio da culpa, com o princípio da presunção de inocência, com o direito ao silêncio e, também, com o princípio da legalidade ( nullum crimen sine lege certa ). Estes princípios e direitos parecem não ter qualquer cabimento na lógica da prossecução dos interesses político-criminais que o sistema penal serve. Estão, todavia, carregados de sentido: são a mais categórica afirmação que, para o Direito, a liberdade pessoal tem sempre um especial valor mesmo em face das prementes exigências comunitárias que justi- ficam o poder punitivo. Não se pense, pois, que estamos perante um princípio axiologicamente neutro ou de uma fria indiferença ética, que não seja portador de qualquer valor substancial. O facto de o princípio da legalidade exigir que num momento inicial do processo de aplicação se abstraia de qualquer fim ou valor decorre de uma opção “axiológica” de fundo que é a de, nas situações legalmente imprevistas, colocar a liberdade dos cidadãos acima das exigências do poder punitivo.

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