TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

558 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Assim se justifica que nem mesmo os erros e falhas do legislador possam ser corrigidos pelo intérprete contra o arguido. […] A amplitude do processo hermenêutico e argumentativo de aplicação da lei penal encontra aqui, na moldura semân- tica do texto, uma barreira intransponível − uma barreira que apenas se explica pela preferência civilizacional que o Direito concede à liberdade pessoal sobre a necessária realização das finalidades político‑criminais que justificam a instituição do sistema penal e que está na base da especial força normativa que a nossa Constituição concede à garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, ao inclui-la no catálogo dos direitos, liberdades e garantias (artigo 29.º, n.º 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa) » (itálico acrescentado). Importa dizer que esse controlo não deve ser confundido com o problema de saber se um facto concreto com todo o seu circunstancialismo, se pode incluir no âmbito da norma. A essa pergunta, como referido no mesmo Acórdão n.º 183/08, não pode o Tribunal Constitucional responder. 8. Dispõe o artigo 382.º do CP: «Abuso de poder O funcionário que, fora dos casos previstos nos artigos anteriores, abusar de poderes ou violar deveres inerentes às suas funções, com intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pes- soa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.» Por seu turno, a alínea b) do n.º 1 do artigo 386.º do mesmo diploma dispõe que, para efeito da lei penal, a expressão funcionário abrange o agente administrativo. E, sob a epígrafe «Ilicitude na comparticipação», estabelece o artigo 28.º, n.º 1, do Código Penal que: «Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respetiva, que essas qualidades ou relações se verifi- quem em qualquer deles, exceto se outra for a intenção da norma incriminadora.»  O citado artigo 382.º delimita o círculo dos possíveis autores da ação delituosa em função de uma determinada qualidade: o “funcionário”. Este tipo legal de crime é classificado pela doutrina e pela juris- prudência como um crime especial próprio, crime próprio ou crime específico próprio, na medida em que uma determinada qualidade – aqui, ser funcionário – é pressuposto do tipo de ilícito. A violação de deveres funcionais tipicamente relevante é a ação ou omissão do funcionário que fere os deveres a que está adstrito pelo exercício da sua função, desde que dominado por uma especial intenção – obter para si ou para terceiro benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. 9. Entendem os recorrentes que a norma daquele preceito, que fundamenta a comunicabilidade ou a extensão da qualidade de funcionário, elemento objetivo do tipo legal de crime de abuso de poder, aos coautores não funcionários, viola o princípio da legalidade, na medida em que não é possível a um sujeito não funcionário ser coautor de um tipo objetivo de ilícito, que pressupõe uma qualidade pessoal que eles não detêm. Contudo, da concatenação do artigo 382.º com o artigo 28.º, n.º 1, ambos do CP, não se descortina violação do artigo 29.º, n.º 1, da Constituição, na dimensão normativa aqui questionada. Desde logo, transpondo para o caso a orientação desenvolvida na jurisprudência do Tribunal Consti- tucional quanto ao alcance do princípio da legalidade, verifica-se que os citados preceitos se caracterizam pelo emprego de uma linguagem clara e concreta, sem recurso a expressões vagas e difusas, permitindo aos

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