TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

559 acórdão n.º 572/19 destinatários da norma conhecer os comportamentos que nela são tipificados como crime e capacitando-os, portanto, para orientar a sua conduta em conformidade com a lei. Ademais, encontram-se descritos na lei, de forma precisa, todos os elementos que constituem o tipo de ilícito em causa. Além disso, da simples leitura do artigo 28.º, n.º 1, do CP, em conjugação com o artigo 382.º do mesmo diploma, resulta, sem grau de incerteza ou de indeterminação, que a qualidade de funcionário é, em regra, estendida aos demais comparticipantes, permitindo-se, com isso, ao cidadão a quem a lei penal é dirigida, apreender e interiorizar a comunicabilidade de uma qualidade do agente de um crime – in casu , de funcio- nário [na aceção do artigo 386.º, n.º 1, alínea b) , do CP] – a um comparticipante, para efeitos de eventual punição. O cidadão dispõe, assim, de elementos para saber que ações e omissões deve evitar, sob pena de vir a ser condenado por um determinado crime e a sofrer uma determinada pena ou medida de segurança. Como é sabido, no plano infraconstitucional, a propósito deste preceito, a doutrina distingue os deno- minados crimes específicos próprios (em que a qualidade ou relação do agente funda a ilicitude, estabele- cendo a lei que determinados crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas às quais pertence uma certa qualidade ou sobre as quais recai um dever especial: o devedor, o médico, o funcionário) e os crimes específicos impróprios (em que a qualidade ou relação do agente agrava a ilicitude). As qualidades ou relações que se verifiquem num comparticipante ( intraneus ) são, assim, nos termos da lei, comunicáveis aos comparticipantes em quem não se verificam ( extranei ), exceto se for outra a intenção da norma. Não incumbe, porém, e como já referido, a este Tribunal sindicar o mérito da decisão relativamente à aplicação ou não dessa ressalva, inscrita no enunciado linguístico do n.º 1 do artigo 28.º do CP, ao tipo penal de abuso de poder, na modalidade de comissão por funcionário com a qualidade de agente administrativo. Com efeito, a determinação da intencionalidade da norma, para efeitos dessa ressalva, releva essencial- mente da interpretação do tipo incriminador e/ou das normas que o completem ou integrem (Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª edição, p. 853). Entendeu o tribunal a quo que, sendo intenção do legislador tutelar através do crime previsto no artigo 382.º do Código Penal a inte- gridade do exercício das funções cometidas ao funcionário, na aceção penal, e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outras pessoas, não havia fundamento para aplicar essa ressalva. Esse juízo impõe-se no presente recurso de constitucionalidade como um dado. Finalmente, é incontroverso que os preceitos, que encerram os elementos que consentem a punição da conduta dos agentes, se encontravam legalmente consagrados no CP em momento anterior à prática dos factos – que remontam ao ano de 2009 –, sendo a sua aplicação perfeitamente previsível: o artigo 28.º, n.º 1, do CP estava em vigor à data da prática dos factos, na redação proveniente do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março; e o artigo 382.º do CP, com referência ao disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 386.º, ambos do CP, estavam em vigor na redação da Lei n.º 59/2007, de 4 de setembro. Em síntese, não se vislumbra a violação, na dimensão normativa questionada, de nenhuma das manifes- tações em que o princípio constitucional da legalidade da lei penal se traduz, tal como vem sendo densificado pela jurisprudência constitucional acima convocada. Inexiste, por isso, violação do princípio constitucional de legalidade de lei penal ínsito no artigo 29.º, n.º 1, da Constituição. III – Decisão Pelo exposto, decide-se: a) Não julgar inconstitucional os artigos 382.º e 28.º, n.º 1, ambos do Código Penal, na interpretação segundo a qual alguém que não seja funcionário, tal como definido na alínea b) do n.º 1 do artigo 386.º do Código Penal, pode ser condenado pelo crime de abuso de poder, quando essa qualidade de funcionário se verifique nos seus comparticipantes e lhe seja estendida; e em consequência, b) Negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

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