TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

619 acórdão n.º 612/19 A tarefa do Tribunal Constitucional, enquanto tribunal de normas e não de casos concretos, é perce- ber se o evidente desequilíbrio da solução da causa – que ofenderá o sentido de justiça de muitos – reside na norma jurídica questionada pelo recorrente, e no específico equilíbrio entre direitos fundamentais em conflito que o legislador assim entendeu estabelecer. É meu entender que sim, e que a norma em análise mereceria, por isso, um juízo de inconstitucionalidade. Tenho por pressupostos dogmáticos de análise duas premissas fundamentais: em primeiro lugar uma conceção dos direitos económicos, sociais e culturais nos termos da qual estes “devem considerar-se tão ope- rativos ou tão ideais como os direitos de liberdade” (cfr. Jorge Silva Sampaio, O controlo jurisdicional das poli- ticas públicas de direitos sociais , Coimbra Editora, 2014, pp. 202-225) e à luz da qual, além de uma dimensão positiva, de direitos a prestações por parte do Estado, aqueles direitos têm também uma dimensão negativa, que se impõe às autoridades, e em particular ao legislador: “[a] dimensão principal de dever de abstenção, tanto se aplica aos tradicionais direitos de liberdade, como a qualquer direito fundamental, incluindo, natu- ralmente, os direitos sociais (...). Também relativamente aos direitos sociais o Estado tem uma obrigação de respeitar o acesso individual aos bens protegidos, uma obrigação de não interferir com esse acesso, de não o afetar negativamente, de se abster de intervir nas possibilidades e capacidade de acesso que o particular, por si próprio, ou integrado em instituições ou associações de que faz parte, autonomamente alcançou” (Jorge Reis Novais, Direitos Sociais – Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais, AAFDL Editora, 2.ª edição, 2016, p. 311-312). Em segundo lugar, creio que a interpretação das normas atinentes a direitos económicos, sociais e cul- turais se deve fazer, hoje, tendo em conta não apenas o enquadramento sistémico jurídico-constitucional nacional, mas também o incontornável contexto de interconstitucionalidade e internormatividade em que o aplicador do direito se move, transportando e transpondo, na medida do adequado, o horizonte de signi- ficados e os esforços de densificação operados, em relação a todos direitos em causa mas, muito em especial, ao direito à habitação e à proteção do consumidor, no quadro dos ordenamentos jurídicos internacional, do Conselho da Europa e da União Europeia. Deve, por isso, levar-se em conta toda a construção dogmática operada em torno desses direitos, recordando os desenvolvimentos interpretativos propostos em sede de interpretação do PIDESC - Pacto Internacional dos Direitos Económicos, Sociais e Culturais (artigo 11.º, n.º 1), da Carta Social Europeia Revista (artigos 16.º, 30.º e 31.º), da CEDH - Convenção Europeia dos Direitos do Homem (artigos 2.º, 3.º, 6.º, 8.º, 13.º, 14.º e artigo 1.º do Protocolo 1) e da CDFUE - Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (artigo 34.º, n.º 3, e 38.º). É de mencionar, em particular, que o direito à habitação deve ser interpretado de forma ampla, enquanto manifestação do princípio da dignidade da pessoa humana, de forma a incluir o direito a viver em segurança, paz e dignidade, numa habi- tação adequada às necessidades do agregado familiar, independentemente do rendimento e/ou dos recursos económicos [ Comité dos Direitos Económicos Sociais e Culturais das Nações Unidas, Comentário Geral n.º 4: The Right to Adequate Housing (Artigo 11 (1) of the Covenant )]. O Acórdão desenha a questão de constitucionalidade do presente processo, acima de tudo, como um conflito entre dois direitos de propriedade, o do devedor e o do credor, que é resolvido pelo legislador a favor do segundo, de modo que se considera estar dentro da ampla margem de conformação de que dispõe nestas matérias. Sustenta-se, em suma, no Acórdão que “este regime não constitui uma afetação arbitrária do direito de propriedade do devedor, tendo em conta, conforme referido, o correspondente direito do credor a ver satisfeito o seu crédito”, tendo em mente que “sendo certo que é merecedora de ponderação a circunstância de o imóvel penhorado ser a habitação do executado, a verdade é que, nos termos expostos, tal facto não foi desconsiderado pelo legislador”. Pela minha parte, creio que a norma encerra a solução para um conflito muito mais complexo de direi- tos fundamentais. Além do óbvio conflito entre os direitos de propriedade do devedor (sobre o imóvel) e do credor (sobre o montante da dívida), a questão impõe, desde logo, a ponderação de vários outros conflitos de direitos fundamentais, a saber:

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