TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

620 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL – o conflito de consumo (que o Acórdão completamente omite), ou seja, o conflito entre o direito do credor (um Banco) e o direito à proteção do consumidor do devedor (nos termos do n.º 1 do artigo 60.º da CRP). – o conflito entre o direito de propriedade do credor e o direito à habitação (consagrado no n.º 1 do artigo 65.º da CRP) de todos quantos residam, comprovadamente, no imóvel a penhorar. Ou seja, neste caso concreto, há um conflito entre o direito do credor e oito direitos fundamentais à habitação – tantos direitos subjetivos quantos os moradores no imóvel, como consta dos autos. – o conflito entre o direito de propriedade do credor e as obrigações especiais de proteção, quer dos menores, quer das famílias em situação de especial fragilidade social e económica, que se impõem ao Estado, em virtude de disposições constitucionais [designadamente, as constantes da alínea d) do artigo 9.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 67.º e do n.º 1 do artigo 69.º], e que não podem deixar de ser levadas em conta pelo legislador. Tendo em mente este ponto de partida, é de assinalar que, no específico plano jurídico-constitucional, a CRP não impõe a impenhorabilidade absoluta da casa de morada de família, mas tão-pouco obriga à cedên- cia, em qualquer caso, do direito à habitação perante o direito de propriedade. Cabe, pois, ao legislador, dentro da sua margem de conformação destes direitos, quando conflituantes, encontrar soluções concretas que permitam a concordância prática entre ambos, com as consequências menos restritivas possíveis, em relação a cada um. Ora, na ordem jurídica portuguesa, o direito do credor não prevalece sempre. A lei prevê um conjunto de bens relativamente impenhoráveis ou só parcialmente penhoráveis (veja-se o disposto nos artigos 737.º e 738.º do Código de Processo Civil), que nem sempre serão de reduzido valor (o que é evidente no caso dos bens “imprescindíveis ao exercício da profissão ou atividade” – conceito que pode incluir, por exemplo, hardware informático, sistemas de comunicação, máquinas, etc). Entende-se, nesses casos, que outros direitos fundamen- tais devem prevalecer sobre o direito de propriedade do credor. A questão que se coloca na presente análise é, pois, avaliar se o pequeno conjunto de situações em que a impenhorabilidade se estende à casa de morada de família é suficiente para uma adequada concordância prática dos direitos fundamentais em conflito, ou se se justificaria uma outra solução legislativa, que melhor os compatibilizasse. Vejamos, em primeiro lugar, o conflito de consumo acima referido. Efetivamente, um dos elementos fundamentais de ponderação, no presente juízo de constitucionalidade, reside no facto de estarmos perante um credor profissional (um Banco) e um devedor comum, pessoa singular, sem qualquer formação específica em matéria económica e financeira. Esta situação impõe, por isso, ao legislador, uma ponderação distinta daquela que pode ser feita no caso de dívidas contraídas entre simples particulares, dada a indispensável con- sideração, neste caso, quer da necessidade de proteção do consumidor, em termos constitucionais (n.º 1 do artigo 60.º da CRP), quer da desigualdade inerente à relação entre uma instituição bancária e os seus clientes. Sendo o credor profissional, é inequívoca a desigualdade de posições entre este e o devedor, no que res- peita à obtenção e processamento de informação e à capacidade de cálculo do risco associado a este tipo de contratos. Aliás, o risco de crédito mal parado e de situações de incumprimento é, precisamente, uma dimen- são inultrapassável do objeto de negócio da banca, que é remunerada através do pagamento de juros (no caso em análise, por exemplo, o devedor cumpriu o pagamento das prestações durante mais de um ano; é o facto de serem devidos juros, remuneratórios e moratórios, que justifica que a dívida exequenda seja de montante superior ao empréstimo inicial). É por isso mesmo que as instituições bancárias têm de garantir, na sua con- tabilidade e organização financeira, reservas para lidar com as imparidades – o que demonstra que o risco de default é inseparável da sua atividade e que lhes cabe, de acordo com deveres de prudência e diligência, calcular, de forma séria e realista, esse risco, não concedendo os empréstimos em que ele se afigure elevado. Assim, o mercado tem de ter sinais de que há regras e riscos, para todas as partes. A possibilidade de, ultima ratio , penhorar sempre a morada de família, desde que o montante da dívida exceda metade do valor

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