TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

622 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Sabendo-se que o legislador goza de uma margem muito ampla de conformação no domínio dos direi- tos económicos, sociais e culturais (catálogo integrado quer pelo direito à habitação, quer pelo direito de propriedade, nos termos da CRP), e que isso mesmo tem sido repetidamente afirmado pela jurisprudência do Tribunal Constitucional, creio, porém, que existe um conteúdo mínimo do direito fundamental à habi- tação, correspondente ao direito a ter uma habitação permanente (independentemente do título de proprie- dade ou de posse do imóvel que a alberga), adequada às necessidades do titular do direito e da sua família, que permita uma vida com segurança e dignidade, em consonância com os padrões interconstitucionais de interpretação de que acima se deu conta. Nestes termos, e ainda que a dimensão positiva do direito levante dificuldades de determinação e aplicação, a sua dimensão negativa – no caso, a não interferência do Estado, designadamente em termos ablativos, na habitação a que o titular do direito legitimamente acedeu, por ato próprio ou de terceiros – impõe a redução ao mínimo das intervenções legislativas neste sentido, apenas estando justificadas as restrições proporcionais e para salvaguarda de outros direitos ou interesses constitu- cionalmente protegidos. Não basta, pois, que o direito à habitação tenha sido considerado, levado em conta, pelo legislador, na resolução de conflitos de direitos fundamentais. É indispensável que a conformação dos direitos para assegurar a concordância prática entre eles tenha sido configurada da maneira menos gravosa possível para cada um dos direitos fundamentais, ponderando adequadamente as consequências da solução legislativa em cada uma das esferas de jusfundamentalidade. É verdade que a legislação relevante tem vindo a evoluir, em regra, em sentido progressivamente mais tutelador do direito à habitação. É de destacar, desde logo, a Lei n.º 13/2016, de 23 de maio, que protege a casa de morada de família no âmbito de processos de execução fiscal, tendo introduzido alterações no Código de Procedimento e de Processo Tributário (n.º 5 do artigo 219.º e n.º 2 do artigo 244.º), nos termos das quais a penhora sobre bem imóvel com finalidade de habitação própria e permanente, do devedor ou do seu agregado familiar, está sujeita a condições, desde logo, a impossibilidade de realização da venda. Cabe, porém, mencionar de igual modo as mudanças trazidas pela Lei n.º 117/2019, de 13 de setem- bro, que alterou os n. os  3 e 4 do artigo 751.º do Código de Processo Civil (aqui em questão), passando a prever-se a possibilidade de penhora da habitação própria e permanente do executado (mantém-se a omissão de qualquer referência ao agregado familiar, ao contrário do que sucede nos processos de execução fiscal), em execução de valor igual ou inferior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 30 meses e em execu- ção de valor superior ao dobro do valor da alçada do tribunal de 1.ª instância, se a penhora de outros bens presumivelmente não permitir a satisfação integral do credor no prazo de 12 meses. Assim, para as execuções de valor inferior a, aproximadamente, 10 000 Euros, só se permite penhora se não houver bens suficientes para satisfação do crédito no prazo de 30 meses. Mas para valores superiores, como no caso em apreço, o prazo em questão reduz-se para 12 meses, o que implica, na prática, para situações como a que analisamos – em que o valor do imóvel excede significativamente o valor da penhora, ainda que a dívida exceda o dobro do valor da alçada da 1.ª instância, e em que o mesmo imóvel serve de habitação permanente ao executado e seu agregado familiar – uma redução de tutela no que respeita ao direito à habitação. Neste quadro, as medidas legislativas adotadas em matéria de proteção da casa de morada de família, em caso de penhora, afiguram-se ainda como insuficientes para proteção adequada do direito à habitação, em casos como o que originou o presente Acórdão. Disso mesmo deu, aliás, nota o Presidente da República quando, ao promulgar a Lei n.º 13/2016 (a 10 de maio de 2016), afirmou que o fazia “apesar de não tomar em consideração situações paralelas de execução judicial de créditos, nem garantir a proteção adequada no caso de a penhora pela administração tributária não ser a primeira realizada”. Por fim, cabe recordar que a CRP estabelece como tarefa fundamental do Estado promover o “bem- -estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais” e impõe a especial proteção de certas categorias, em especial dos menores e das famílias em situação de especial fragilidade social e económica, [atente-se nas já referidas disposições da alínea d) do artigo 9.º, da alínea a) do n.º 2 do artigo 67.º e do n.º 1 do artigo 69.º].

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