TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

623 acórdão n.º 612/19 Aliás, esta ideia de proteção dos sujeitos vulneráveis, que tem vindo a evidenciar-se no discurso jurídico- -constitucional contemporâneo, constitui um instrumento indispensável de cumprimento daquele mandato constitucional. Ela tem, igualmente, uma conexão intrínseca com a proteção de um conjunto importante de direitos económicos sociais e culturais, cujo gozo efetivo se afigura incontornável para a garantia de um mínimo de bem-estar e qualidade de vida, entre os quais se conta, claro está, o direito à habitação. Por tudo isto, as normas mencionadas não podem ser tomadas, pelo intérprete constitucional, como meramente retó- ricas; pelo contrário, elas constituem elementos essenciais para uma ponderação sistemicamente coerente e adequada de qualquer conflito de direitos fundamentais. Além disso, impõem-se ao legislador, sempre que esteja em causa a conformação ou restrição de direitos constitucionalmente consagrados daquelas categorias de sujeitos, exigindo soluções legislativas específicas, que levem em conta, precisamente, as suas necessidades especiais de proteção. Ora, apesar disto, a norma que possibilita a penhora de imóvel que sirva de habitação própria e permanente do executado e da sua família não prevê quaisquer exigências adicionais no caso de o agregado familiar incluir menores, ou na circunstância de se tratar de famílias em situação de especial fragi- lidade social e económica. Consciente da ampla margem de conformação do legislador nestas matérias, não me parece, porém, que uma leitura que leve a sério todos os direitos fundamentais em conflito, nos termos em que acima foram apresentados, possa aceitar como jusconstitucionalmente conforme a solução de articulação encontrada pelo legislador; creio mesmo que há uma consciência generalizada de que a solução legislativa é, ainda, insufi- ciente, e geradora de desequilíbrios sistémicos, aumento da desigualdade (apesar do mandato constitucional para a combater) e consequências jurídicas, sociais e económicas de imensa relevância, conduzindo, muitas vezes, a resultados que afrontam o sentido de justiça dos cidadãos. Efetivamente, entre a impenhorabilidade quase total e a solução consagrada pela norma analisada, afi- guram-se inúmeros caminhos intermédios que permitiriam uma melhor harmonização entre os direitos fun- damentais à habitação, à proteção do consumidor e à propriedade privada, configurando uma mais lograda e mais adequada concordância prática entre ambos.  Desde logo, creio que se impõe ao legislador – dados os diferentes direitos fundamentais em conflito num e noutro caso, tendo particular relevo a questão da necessidade de proteção do consumidor, enquanto parte evidentemente mais frágil de uma relação contratual entre dois sujeitos muito desiguais – uma distin- ção entre credores profissionais e não profissionais, atentas as significativas diferenças entre a relação jurídico- -privada estabelecida numa e noutra situação, bem como as obrigações das partes (que acima se elencaram) e os interesses jurídico-constitucionalmente relevantes em causa. Impõem-se, pois, regras mais apertadas para a penhora da casa de morada de família em caso de empréstimos bancários, dada a necessidade, por um lado, de combater o crédito indiscriminado e mal avaliado e, por outro, de promover um maior equilíbrio entre as partes. Esta conceção não implica, como já se salientou, a impenhorabilidade total da casa de morada de família neste tipo de situações, regime que a CRP não impõe e ao qual se costuma objetar com a necessi- dade de garantir o acesso ao crédito por parte das pessoas e das famílias. Exige, contudo, a consideração da complexidade da ponderação jusconstitucional a operar, podendo justificar soluções distintas para diferentes tipos de crédito (o crédito à habitação merecerá, possivelmente, regime distinto do crédito pessoal ou do crédito ao consumo) e para diferentes tipos de garantia (designadamente, quando esteja em causa garantia hipotecária).  Nestes termos, o legislador poderia, por exemplo, consagrar, na linha da jurisprudência do TJUE de que acima se deu nota, uma cláusula que permitisse a oposição à penhora e/ou execução da casa de morada de família em caso de caráter abusivo da cláusula contratual que constitui o fundamento da execução ou que permitiu determinar o montante exigível, obrigando a análise pelos órgãos jurisdicionais dos contratos em causa e respetivas condições (análise que, como o presente caso bem exemplifica, nem sempre é levada a cabo). Tal permitiria levar em conta a necessidade de tutela do consumidor, que na análise do Acórdão é totalmente desconsiderada.

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