TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

661 acórdão n.º 624/19 E note-se, ainda, que as considerações expendidas na fundamentação do Acórdão n.º 275/02, relevantes, nos termos expostos, à luz do princípio da proporcionalidade não dependeram de qualquer tomada de posição na dis- cussão sobre a verdadeira natureza ou função da “indemnização”, “compensação” ou “satisfação” (“ Genugtuung ”) por danos não patrimoniais (nos termos do artigo 496.º, n.º 1, apenas dos que “pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito”), isto é, numa discussão em que, como é sabido, tem também sido defendida, entre outras posi- ções, a da atribuição de uma função sancionatória ou punitiva, ou pelo menos de uma dupla função, compensa- tória e punitiva, a tal “satisfação” – dando nota desta posição, v. António Pinto Monteiro, “Sobre a reparação dos danos morais”, in Revista Portuguesa do Dano Corporal , ano 1.º, 1, 1992, pp. 17-25 (20 e s.); Júlio Gomes, “Uma função punitiva para a responsabilidade civil e uma função reparatória para a responsabilidade penal?”, Revista de Direito e Economia, Coimbra, ano 15, 1989, pp. 105-144 (116 e ss.); recentemente, v. Paula Meira Lourenço, A função punitiva da responsabilidade civil, Coimbra, Coimbra Edição, 2006, pp. 278 e ss., e Mafalda Miranda Bar- bosa, “Reflexões em torno da responsabilidade civil: teleologia e teleonomologia em debate”, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, vol. , 2005, pp. 511-600 (565 e ss., contra o reconhecimento de uma função punitiva). 7. A decisão proferida no Acórdão n.º 275/02 foi objeto de análise sobretudo no plano da comparação entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de facto” com outrem, à luz das normas e princípios constitucionais sobre a família e o casamento. É certo que, como se disse, se aceitou então a relevância, para a noção constitucio- nal de família, também da “família não fundada no casamento”, rejeitando a redução da família à que assenta no matrimónio (contra tal redução à família “matrimonializada”, vide também J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 4.ª edição, Coimbra, Coimbra Edição, 2006, artigo 36.º, anot. II, p. 561), e que se afirmou “um dever de não desproteger, sem uma justificação razoável”. Nos presentes autos, pode reiterar-se este entendimento, que só por si está, porém, longe de implicar qualquer equiparação geral do regime da família fundada no casamento e da família não assente no matrimónio (v. também J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, ob. e loc. cits.). Antes tem mesmo sido defendido entre nós que uma tal equiparação geral esbarraria também com obstáculos jurídico‑constitucionais (v. F. Pereira Coelho/G. de Oliveira, Curso… , cit., p. 106, F. Pereira Coelho, “Casamento e divórcio no ensino de Manuel de Andrade”, in Ciclo de conferências em homenagem póstuma ao Prof. Manuel de Andrade, Coimbra, Almedina, 2002, pp. 55-72, 67 e seguinte, falando de violação do direito de não casar; e N. Salter Cid, ob. cit. , pp. 540 e s.), ou que seria contrariada pela própria ideia de igualdade perante a lei (António Arnaut, Ética e Direito, Coimbra, Livraria Mateus, 1999, p. 26). 8. Mais do que uma comparação “transversal” entre a posição do cônjuge e de quem vive em “união de facto” com outrem, a “revisitação” efetuada à decisão do Tribunal Constitucional que o recorrente invoca, e que o acórdão recor- rido se preocupou em “desqualificar” como precedente, impõe, porém, que se recorde e aprofunde a referência, contida já no Acórdão n .º 275/02, especificamente à ratio da delimitação, pelo n .º 2 do artigo 496 .º , dos titulares de um direito a uma “indemnização” (compensação ou “satisfação”) por danos não patrimoniais por morte da vítima, e em particular no que toca ao problema da exclusão daqueles que de facto, tendo em conta as circunstâncias do caso, eram mais próximos desta. O problema é – contrariamente ao que se poderia pensar – bastante anterior ao reconhecimento legislativo de efeitos jurídicos da “união de facto”, entre nós e lá fora. Adriano Vaz Serra tratou-o assim já em 1959, nos trabalhos prepara- tórios do Código Civil (“Reparação do dano não patrimonial”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 83, pp. 69-111, esp. 96-98), depois de perguntar a quem deve ser reconhecido o direito à compensação em causa (e baseando-se em doutrina alemã e suíça da primeira metade do século XX): «Não parece que deva ser reconhecido aos herdeiros como tais, os quais podem ser estranhos à família, caso em que não terão, em regra, dor moral suficiente para justificar uma compensação. Tal direito deve ser reservado para os familiares da vítima, que são as pessoas nas quais é de presumir a existência de sentimentos de afeição bastante fortes. Mas, por um lado, esses sentimentos podem ser ainda mais fortes da parte de pessoas estranhas à família juridicamente entendida; e, por outro lado, o facto de ser membro da família não implica necessariamente a existência de uma afeição suficiente.

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