TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

665 acórdão n.º 624/19 Ora, não pode deixar de reconhecer-se ao legislador – diversamente da administração –, legitimado para tomar as medidas em questão e determinar as suas finalidades, uma “prerrogativa de avaliação”, como que um “crédito de confiança”, na apreciação, por vezes difícil e complexa, das relações empíricas entre o estado que é criado através de uma determinada medida e aquele que dela resulta e que considera correspondente, em maior ou menor medida, à consecução dos objetivos visados com a medida (que, como se disse, dentro dos quadros constitucionais, ele próprio também pode definir). Tal prerrogativa da competência do legislador na definição dos objetivos e nessa avaliação (com o referido “crédito de confiança” – falando de um Vertrauensvorsprung , vide Bodo Pieroth/Bernhard Schlink, Grundrechte. Staatsrecht II , 14.ª edição, Heidelberg, 1998, n. os  282 e 287) afigura-se importante sobretudo em casos duvidosos, ou em que a relação medida-objetivo é social ou economicamente complexa, e a objetividade dos juízos que se podem fazer (ou suas hipotéticas alternativas) difícil de estabelecer. Significa isto, pois, que, em casos destes, em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação da relação, social e economicamente complexa, entre o teor e os efeitos das medidas, à que é efetuada pelo legisla- dor, e que as controvérsias geradoras de dúvida sobre tal relação não devem, salvo erro manifesto de apreciação – como é, designadamente (mas não só), o caso de as medidas não serem sequer compatíveis com a finalidade prosseguida –, ser resolvidas contra a posição do legislador. Contra isto não vale, evidentemente, o argumento de que, perante o caso concreto, e à luz do princípio da proporcionalidade, ou existe violação – e a decisão deve ser de inconstitucionalidade – ou não existe – e a norma é constitucionalmente conforme. Tal objeção, segundo a qual apenas poderia existir “uma resposta certa” do legislador, conduz a eliminar a liberdade de conformação legislativa, por lhe escapar o essencial: a própria averiguação jurisdicional da existência de uma inconstitucionalidade, por violação do princípio da proporcionalidade por uma determinada norma, depende justamente de se poder detetar um erro manifesto de apreciação da relação entre a medida e seus efeitos, pois aquém desse erro deve deixar-se na competência do legislador a avaliação de tal relação, social e economicamente complexa.» As considerações que precedem afiguram-se relevantes no caso dos autos: o legislador goza de uma considerável mar- gem de discricionariedade na delimitação, no artigo 496 .º , n .º 2, do círculo das pessoas que podem pedir indemnização por morte da vítima. E a apreciação da conformidade com o princípio da proporcionalidade, nos termos referidos, não deve, tam- bém, deixar de tomar em conta – sobretudo em fiscalização concreta e incidental da constitucionalidade – as particularidades da dimensão normativa ora em apreciação, e o diverso recorte do caso a que foi aplicada (pelo que é de acompanhar o Acórdão recorrido, quando salienta a “faceta de casuísmo” que, para a referida apreciação, teve de impregnar também o Acórdão n.º 275/02). E há, ainda, que recordar que, como este Tribunal tem repetidamente afirmado, não está em causa, no controlo da constitucionalidade a que procede, a qualificação do “melhor direito” (e a “desqualificação” do “pior direito”) em si mesmo, isto é, o juízo sobre qual seria a solução mais conveniente ou que melhor concilia todos os interesses em presença. Tal é missão do legislador. Ao Tribunal Constitucional compete apenas um controlo de constitu- cionalidade, ou seja, ajuizar sobre a questão de saber se uma solução ou dimensão normativa viola normas ou princípios constitucionais: não, neste sentido, avaliar o “melhor direito”, mas apenas dizer o “não direito”, porque incompatível com a Constituição da República (cfr. os seus artigos 3.º, n.º 3, 204.º, 223.º, n.º 1, e 277.º, n.º 1). 12. Ora, entende-se que o confronto, que levou no citado aresto de 2002 a afirmar a “violação do artigo 36 .º , n .º 1, da Constituição conjugado com o princípio da proporcionalidade” , entre a justificação da delimitação operada no artigo 496 .º , n .º 2, e a dimensão normativa em análise no presente recurso conduz a resultados diversos dos alcançados naquele aresto. Falta, pois, identidade substancial, neste aspeto constitucionalmente relevante, entre as normas ou dimensões nor- mativas em apreciação nos dois casos (podendo, também aqui, concordar‑se com a decisão recorrida quando não qualifica o Acórdão n .º  275/02 como “precedente” a seguir pelo tribunal a quo no caso dos autos).

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