TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

719 acórdão n.º 661/19 O acórdão do Tribunal da Relação, ao decidir nos termos decididos, violou princípios e direitos fundamentais consignados na Constituição da República Portuguesa, desde logo, o princípio da não discriminação no acesso ao direito e aos tribunais. Mais, o artigo em causa é materialmente inconstitucional por, ao arrepio do artigo 13.º, n.º 2, da Constituição, conduzir na prática a um tratamento desigual em razão da sua situação económica. Por outro lado, este preceito é inválido por se recusar o direito fundamental ao duplo grau de jurisdição, con- cedido pelo artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e violar o princípio constitucional da proteção jurisdicional efetiva, conduzindo, assim. a uma denegação da justiça por insuficiência de meios económicos. Todos os cidadãos são iguais perante a lei, a todos sendo assegurado o acesso ao direito e aos Tribunais, para defesa dos seus interesses legítimos. A ordem jurídica é uma só, pelo que fica sem justificação plausível o facto de se reconhecer o duplo grau de jurisdição penal e recusá-lo na jurisdição cível. A previsão de uma ordem de tribunais ou hierarquia dos tribunais judiciais. impõe a existência de pelo menos um recurso dentro dessa hierarquia. Não podemos consentir, em qual- quer caso, que possa haver um qualquer obstáculo de natureza económica, que inviabilize o direito de recorrer. Acresce que, o acórdão proferido viola, ainda, o princípio do Estado de Direito, plasmado no artigo 2.º da C.R.P., a interpretação da lei ordinária que não permite um recurso jurisdicional de reação contra «erros judiciá- rios» ou contra violações jurisdicionais dos direitos fundamentais; Ora. A matéria em questão continua a ser regulada por portaria, concretamente a Portaria n.º 419-A/2009. Cabendo a matéria em discussão na esfera de competência exclusiva da Assembleia da República, decorrente da alínea b) do n.º l, do artigo 165.º da Constituição, em conjugação com o respetivo artigo 20.º, n.º 1, dificilmente se entende que a matéria das custas de parte continue a ser regulada pela sobredita portaria. De facto, possuindo a temática das custas de parte uma natureza restritiva do direito fundamental de acesso aos tribunais e tendo em conta o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência nacionais como sendo este um direito análogo a um direito, liberdade e garantia (nomeadamente. Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I. 2.ª ed. Wolters Kluwer, Coimbra Editora, 2010, p. 304 e Acórdão do Tribunal Consti- tucional n.º 237/90, de 3 de julho de 1990, disponível em http://www.tribunalconstitucional.ptltc/acordaos ) será de concluir pela aplicação do regime jurídico a estes aplicável, pelo que a matéria em apreço deve ser regulada por lei da Assembleia da República ou por decreto-lei autorizado, por força do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) , da CRP, e, além disso, ainda deve respeitar a reserva de lei, constante do artigo 18.º, n.º 2, da CRP – “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar- -se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.” É consabido que o legislador pode remeter para portaria a regulamentação de aspetos não restritivos de direitos, liberdades e garantias ou outros aspetos, desde que os mesmos se encontrem devidamente balizados pela respetiva lei habilitante. Contudo, do Regulamento das Custas Processuais não consta qualquer norma habilitante que per- mita a regulamentação da matéria das custas de parte pelo que, estando em causa uma limitação a um direito fun- damental como é o caso do acesso ao direito e aos tribunais, a norma em apreço padece de inconstitucionalidade orgânica, por violação do princípio da competência reservada da Assembleia da República, conforme o disposto no artigo 165.º, n.º 1, alínea b) da CRP em conjugação com o artigo 20.º, n.º 1 do mesmo diploma legal. A questão em análise não é a relação entre a competência legislativa da Assembleia da República e a compe- tência legislativa do Governo, mas sim a distinção entre a função legislativa e o exercício da função administrativa. Nestes termos, o objeto de análise é a constitucionalidade do exercício da função administrativa, através de ato regulamentar em face da reserva relativa de competência da Assembleia da República e, nessa sequência, da reserva de lei prevista no artigo 18.º, n.º 2 da CRP, razão pela qual, estando em causa a regulação apenas por portaria da reclamação da conta de custas de parte terá, forçosamente, de se concluir pela inconstitucionalidade do exercício da função administrativa por violação da reserva relativa de competência da Assembleia da República em conjugação com o direito de acesso aos tribunais.

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