TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

76 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 9. A tutela constitucional das comunicações intersubjetivas No seu pedido de fiscalização abstrata sucessiva das normas dos artigos 3.º e 4.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, os requerentes invocam a violação do artigo 34.º, n.º 4, da Constituição: «É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal». Recorde-se que foi com base em tal parâmetro que este Tribunal, no Acórdão n.º 403/15, se pronunciou pela inconstitucionalidade do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII da Assembleia da República, que versava justamente sobre o acesso a dados e informações por parte de oficiais do SIS e do SIED, designada- mente a «dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para iden- tificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização». Na ocasião, o Tribunal, atentos os termos do pedido, limitou a sua apreciação aos dados de tráfego, tal como definidos na Diretiva 2002/58 e na Lei n.º 41/2004 (cfr. os respetivos pontos 6 e 9 e supra o ponto 7): dados «que identificam ou permitem identificar a comunicação e, uma vez conservados, possibilitam a identificação das comunicações entre emitente e destinatário, a data, o tempo e a frequência das ligações efetuadas». E foi justamente o acesso não consentido a estes dados – dados das comunicações efetivamente realizadas ou tentadas – fora do âmbito do processo penal que o Tribunal considerou lesivo de direitos fun- damentais das pessoas envolvidas no ato comunicacional. Com efeito, reconheceu o Tribunal, «mesmo que não haja acesso ao conteúdo, a interconexão entre dados de tráfego pode fornecer um perfil complexo e completo da pessoa em questão – com quem mais con- versa, que lugares frequenta, quais os seus horários, etc.», já que, «como refere Costa Andrade, “no seu con- junto, os dados segregados pela comunicação e pelo sistema de telecomunicações se revelam, muitas vezes, mais significativos que o próprio conteúdo da comunicação em si. O que, de resto, bem espelha o interesse com que, reconhecidamente, a investigação criminal procura maximizar a recolha de dados ou circunstâncias da comunicação, também referenciados como dados de tráfego” (cfr. “Bruscamente no verão passado – A Reforma do Código de Processo Penal”, in Revista de Legislação e Jurisprudência , Ano 137.º, julho-agosto 2008, p. 338)» e o ponto 12 do Acórdão n.º 403/15). É, por conseguinte, claro «que a manipulação ilegal ou ilegítima do conteúdo e das circunstâncias da comunicação pode violar a privacidade dos interlocutores intervenientes, atentando ou pondo em risco esferas nucleares das pessoas, das suas vidas, ou dimensões do seu modo de ser e estar. De sorte que a possibilidade de se aceder aos dados das comunicações colide com um conjunto de valores associados à vida privada que fundamentam e legitimam a proteção jurídico- -constitucional» (vide ibidem ). 9.1. É nesse contexto que o Tribunal analisa a liberdade de ação e uma série de direitos relacionados com a esfera íntima e a esfera privada (direito à solidão, direito ao anonimato e direito à autodeterminação infor- macional) como reserva da intimidade da esfera privada e, mais amplamente, do direito ao desenvolvimento da personalidade consagrados no artigo 26.º da Constituição. Ora, uma das dimensões da liberdade de ação inerente ao desenvolvimento da personalidade consiste na liberdade de comunicar, tuteladora da comunicação interpessoal: «a comunicação que se destina a um recetor individual ou a um círculo de destinatários previamente determinado» (Acórdão n.º 403/15, ponto 13). Tal liberdade abrange, deste modo, «a faculdade de comunicar com segurança e confiança e o domínio e autocontrole sobre a comunicação, enquanto expressão e exteriorização da própria pessoa» (vide ibidem ). E é essa mesma liberdade, enquanto refração do direito ao desenvolvimento da personalidade e da tutela da privacidade, que mereceu no texto constitucional um recorte material específico, através da autonomização, no artigo 34.º, do sigilo dos meios de comunicação privada (vide ibidem ).

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