TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

763 acórdão n.º 669/19 O simples benefício da maior certeza sobre qual o universo de pessoas consideradas incapazes de prestarem declarações em processo penal, devido a sofrerem de anomalia psíquica, que pode ser invocado em favor desta solu- ção, revela-se manifestamente desproporcionado como justificação para a adoção pelo legislador ordinário de um critério que discrimina os deficientes, por anomalia psíquica, interditos, dos demais cidadãos, incluindo as pessoas que sofrendo também de anomalia psíquica não se encontrem interditos. As razões para as discriminações admissíveis neste domínio devem residir numa incapacidade efetiva para o exercício concreto dos direitos em causa, e não numa incapacidade ficcionada a partir de um julgamento que apura da capacidade geral da pessoa para reger a sua pessoa e os seus bens, com a finalidade de facilitar uma definição de quem tem capacidade para depor. Daí que tratar toda e qualquer pessoa que esteja interdita por anomalia psíquica como sendo inábil para depor em audiência de julgamento seja descriminá-la, sem fundamento bastante, dos demais cidadãos, pelo que esse tratamento viola o princípio constitucional da igualdade. [D]o direito a um processo equitativo O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4). A jurisprudência do Tribunal Constitucional tem entendido que o direito de acesso aos tribunais ou à tutela jurisdicional implica a garantia de uma proteção jurisdicional eficaz ou de uma tutela judicial efetiva, cujo âmbito normativo abrange, nomeadamente, o direito de agir em juízo através de um processo equitativo, o qual deve ser entendido não só como um processo justo na sua conformação legislativa, mas também como um processo mate- rialmente informado pelos princípios materiais da justiça nos vários momentos processuais. A exigência de um processo equitativo, consagrada no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, não afasta a liberdade de conformação do legislador na concreta modelação do processo. Contudo, impõe, no seu núcleo essencial, que os regimes adjetivos proporcionem aos interessados meios efetivos de defesa dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, bem como uma efetiva igualdade de armas entre as partes no processo, não estando o legislador auto- rizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efetiva. A jurisprudência e a doutrina têm procurado densificar o conceito de processo equitativo essencialmente atra- vés da formulação de princípios, entre os quais se contam o direito à prova, isto é, à apresentação de provas destina- das a demonstrar os factos alegados, e o direito a um processo orientado para a justiça material, em que a descoberta da verdade, assume especial importância (…). Tem-se entendido que a observância destes princípios não implica necessariamente a admissibilidade de todos os meios de prova, não se excluindo a possibilidade do legislador consagrar limitações e proibições neste domínio, desde que não sejam arbitrárias ou desproporcionadas. Ora, a proibição do ofendido em processo penal, constituído assistente, prestar declarações em audiência sobre a factualidade em julgamento livremente valoráveis pelo julgador, quando se encontre interdito por anomalia psíquica, não encontra uma justificação bastante nas vantagens da adoção de um método objetivo de determinação das pessoas que, sofrendo de anomalia psíquica, podem prestar depoimentos credíveis em audiência, uma vez que, pelas razões acima explicadas, o critério adotado revela-se inadequado para se obter uma escolha com o mínimo de rigor. Assim, a circunstância da vítima de um crime que sofra de anomalia psíquica ter sido objeto de uma medida judicial de interdição, que tem por finalidade a sua proteção, não pode servir como fundamento para lhe retirar direitos de intervenção no processo criminal. Seria acentuar a desproteção da vítima, que já se encontra numa situação de especial vulnerabilidade pela sua deficiência, paradoxalmente justificada por esta ter sido colocada, por decisão judicial, sob um determinado regime destinado a assegurar a sua proteção. Daí que a limitação probatória resultante da norma sindicada se revele desproporcionada, sacrificando injusti- ficadamente o direito à prova e o direito a um processo orientado para a justiça material. Por esse motivo, se entende que a norma sindicada além de infringir o princípio da igualdade, na vertente da proibição de descriminação, também viola o direito a um processo equitativo, consagrado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, devendo, por isso ser julgado improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.»

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