TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
77 acórdão n.º 464/19 É com referência a este último que se pode autonomizar o direito à autodeterminação comunicativa, que é simultaneamente um direito negativo (ou de defesa, nomeadamente da reserva da intimidade da vida privada) e um direito a ações positivas (vide ibidem , pontos 13 e 14): «Na vertente de defesa da reserva da intimidade da vida privada, o direito à autodeterminação comunicativa protege a esfera pessoal perante as ingerências públicas ou privadas, ou seja, o interesse das pessoas que comunicam em impedir ou em controlar a tomada de conhecimento, a divulgação e circulação do conteúdo e circunstâncias da comunicação. Neste sentido, os interlocutores intervenientes têm direito a um ato negativo: à não intervenção de terceiros na comunicação e nas circunstâncias que a acompanham. Trata-se de uma garantia de que devem beneficiar, prima facie , todas as comunicações privadas, independentemente de as mesmas dizerem ou não respeito à intimidade dos intervenientes […]. No entanto, o direito à autodeterminação comunicativa abrange ainda esferas de proteção mais amplas que a da simples reserva da vida privada. É que o progresso tecnológico, ao facilitar a acumulação, conservação, circula- ção e interconexão de dados referentes às comunicações, aumentou as possibilidades de devassa. Agora é o próprio domínio de atuação do individuo que é posto em causa, pois já não tem meios para assegurar a confidencialidade da comunicação. A liberdade de, à distância, trocar com os destinatários livremente escolhidos por cada um, infor- mações, notícias, pensamentos e opiniões está comprometida com as inimagináveis possibilidades da sua afronta pelos avanços tecnológicos. Por isso, é necessário assegurar que a comunicação à distância entre privados se processe como se os mesmos se encontrassem presentes, i. e. , que as comunicações entre emissor e recetor, bem como o seu circunstancialismo, se tenham como uma comunicação fechada, em que os sujeitos se autodeterminam quanto à realização da mesma e esperam, legitimamente, que a comunidade proteja o circunstancialismo daquela pretendida comunicação. Ora, como a interação entre pessoas que se encontram à distância tem de ser feita através da media- ção necessária de um terceiro, de um fornecedor de serviços de comunicação, exige-se que esse operador e o Estado regulador também garantam a integridade e confidencialidade dos sistemas de comunicação. Neste contexto, o direito à autodeterminação comunicativa assume-se como um direito de liberdade, de liber- dade para comunicar, sem receio ou constrangimentos de que a comunicação ou as circunstâncias em que a mesma é realizada possam ser investigadas ou divulgadas. Sem essa confiança, o indivíduo sentir-se-á coartado na liberdade de poder comunicar com quem quiser, quando quiser, pelo tempo que quiser e quantas vezes quiser. Trata-se, pois, de permitir um livre desenvolvimento das relações interpessoais e, ao mesmo tempo, de proteger a confiança que os indivíduos depositam nas suas comunicações privadas e no prestador de serviços das mesmas. Como refere Costa Andrade, «a tutela da inviolabilidade das telecomunicações radica assim na “específica situação de perigo” decor- rente do domínio que o terceiro detém – e enquanto detém – sobre a comunicação (conteúdo e dados). Domínio que lhe assegura a possibilidade fáctica de intromissão arbitrária subtraída ao controlo do(s) comunicador(es). Por ser assim, o regime jurídico do sigilo na segurança e reserva dos sistemas apenas visa proteger a confiança na segu- rança e reserva dos sistemas (empresas) de telecomunicações» (cfr. Costa Andrade, ob. cit. , p. 339). Neste sentido, os comunicadores têm direito a ações positivas dos operadores e do Estado que não só assegurem a confidencia- lidade das comunicações e das circunstâncias em que elas se realizam como também lhes permitam controlar os dados produzidos, guardados e transmitidos que respeitem a comunicações já efetuadas. […] 14. A autodeterminação comunicativa é protegida no artigo 34.º da CRP através da inviolabilidade das comu- nicações. A “inviolabilidade de princípio” justifica-se, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, para «limi- tar na maior medida possível a possibilidade de restrições, sujeitando-se estas a pressupostos bastante vinculados» (cfr. ob. cit, Vol. I, p. 540). Nessa inviolabilidade inclui-se, no n.º 4 daquele preceito constitucional, a proibição de ingerência das autoridades públicas nos meios de comunicação, não só as que estão investidas de poderes públicos de autoridade como, mas por maioria de razão, as demais entidades públicas e entidades privadas (n.º 1 do artigo 18.º da CRP). A garantia de não ingerência tem, porém, um sentido mais vasto que o sigilo de comunicações, podendo assu- mir um duplo relevo.
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=