TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

799 acórdão n.º 680/19 auto-composição, o que constitui um indicador seguro de que nos encontramos fora do âmbito do chamado «núcleo duro da função jurisdicional» (assim é designado por J. C. Vieira de Andrade, in A reserva do…, cit. , p. 224), isto é, daquele em que, por força da Constituição, ao juiz haverá de pertencer tanto a primeira como a última palavra quanto à conformação da posição jurídica dos particulares. A disciplina legal do processo de inventário aprovada pela Lei n.º 23/2013, de 5 de março, assenta numa divisão das tarefas cometidas ao notário e ao Juiz, sendo que a este último foi atribuída uma dupla competência, na medida em que tanto actua no exercício de competências próprias, como actua como decisor em sede de recurso. Com efeito, a par da competência para a prática de determinados atos do processo de inventário, o juiz tem ainda competência para sindicar as decisões proferidas pelo notário sempre que delas couber recurso para o Tribunal. A este propósito, pode ler-se no Acórdão n.º 843/17 deste Tribunal Constitucional, «sendo os direitos exercidos através do processo de inventário disponíveis por natureza – trata-se de direitos alienáveis ou por qualquer forma transmissíveis pelo respetivo titular –, encontramo-nos, ao invés, no domínio da reserva relativa da jursidictio , ou seja, daquele em que, ocorrendo razões de interesse público constitucionalmente rel- evantes, o legislador ordinário se encontra constitucionalmente autorizado a atribuir a um órgão não jurisdicio- nal competência para, através da definição do direito aplicável aos factos previamente estabelecidos, intervir na resolução dos diferendos que possam suscitar-se entre os interessados, reservando aos tribunais a faculdade de, por via do reexame judicial do pleito, fixar, em definitivo, o sentido da composição do litígio.» Para o que ora releva, verifica-se que o novo regime cindiu em dois a conferência de interessados, pre- vendo, agora, primeiramente, a conferência preparatória (artigos 47.º e 48.º do RJPI), destinada às delibe- rações relativas à forma de composição dos quinhões (por escolha, sorteio ou venda), aprovação do passivo e forma de cumprimento dos legados, seguida, ulteriormente, da conferência de interessados propriamente dita, cuja finalidade exclusiva é a adjudicação dos bens. A conferência preparatória é designada pelo notário, uma vez resolvidas as questões suscitadas que sejam suscetíveis de influir na partilha e determinados os bens a partilhar (artigo 47.º do RJPI) e o despacho sobre a forma da partilha proferido é suscetível de impugnação judicial, provocando a intervenção do Juiz (a res- peito dos actos do notário judicialmente impugnáveis cfr. Eduardo Sousa Paiva/ Helena Cabrita, Manual do processo de inventário, à luz do novo regime , Coimbra Editora, 2013, p. 20). Neste enquadramento, o artigo 48.º, número 1 do RJPI introduziu uma significativa inovação, pois que, enquanto no regime pretérito a lei exigia a regra da unanimidade dos interessados para a deliberação sobre a composição dos quinhões, sorteio das verbas e venda dos bens da herança, presentemente, contenta- -se com a aprovação de tais matérias por maioria de dois terços dos titulares da herança e independentemente da proporção de cada quota. Sobre esta evolução, assinala o Professor Jorge Duarte Pinheiro, em parecer junto aos autos, que «a licitação em inventário era desconhecida no nosso Direito até ao Decreto de 18 de maio de 1832, que a introduziu. Mas cedo se apontaram inconvenientes a este mecanismo, que atribuía aos co-herdeiros com maior poder económico a faculdade de condicionar o resultado da partilha e até de reduzir substancialmente o valor das quotas dos outros. Para diminuir a frequência do uso das licitações, veio a consagra-se a licitação só quando os herdeiros não tivessem deliberado por unanimidade a composição dos quinhões. Contudo, a necessidade de unanimidade conferia ao herdeiro interessado na licitação um direito de veto, que viabilizava a sai intenção de licitar, mesmo contra a vontade de todo os restantes co-herdeiros (e ainda que fossem dez, todos com quotas iguais, por exemplo).» É neste conspecto que, nos presentes autos, se questiona a conformidade constitucional do número 1, do artigo 48.º do RJPI, com o princípio do direito a um processo equitativo, na vertente de direito ao con- traditório, previsto no n.º 4 do artigo 20.º da Constituição. 12. O artigo 20.º da Constituição garante a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos (n.º 1), impondo ainda que esse direito se efetive através de um processo equitativo (n.º 4).

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