TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019
87 acórdão n.º 464/19 nas normas ora em causa, o acesso aos dados se destina, tão-só, e sem qualquer dúvida, à prossecução das atribuições do SIRP, nos termos legalmente definidos; ou seja, a recolha de dados de tráfego não se destina a investigação ou produção de prova no âmbito de um processo penal em curso. Destina-se, sim, como pode ler-se no artigo 1.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, a permitir, sempre que necessário “a prossecução da atividade de produção de informações pelo Sistema de Informações da República Portuguesa (SIRP) relacionadas com a segurança interna, a defesa, a segurança do Estado e a prevenção da espionagem e do terrorismo”. Ora, os Serviços de Informações desempenham, no quadro do ordenamento jurídico-constitucional, uma função própria, manifestamente distinta da polícia ou do Ministério Público, que atuam no âmbito dos processos criminais. Entre o processo criminal e o serviço de informações medeia uma diferença intranspo nível. No processo penal, o Estado reage a um facto passado, recondutível a uma lesão ou a um perigo para bens jurídicos. A atividade do Estado parte da suspeita fundada da prática do facto, tratando-se então de confirmar (ou infirmar) a sua ocorrência, identificar e punir os seus agentes. Diferentemente, os serviços de informações movem-se à margem de qualquer indício ou suspeita da prática de um facto ilícito: atuam no “campo avançado” ( Vorfeld ) de recolha de dados para antecipação de perigos, visando clarificar as áreas ou situações de perigo e eventualmente acompanhar pessoas supostamente perigosas. Não lhes assistindo, para além disso, a prática de quaisquer atos de intromissão ou invasão na esfera de liberdade das pessoas-alvo. Acresce que as instâncias do processo criminal (Ministério Público e órgãos de polícia criminal) agem, em princípio, de forma pública, obedecendo a um princípio de transparência e a um conjunto de signifi- cativas e detalhadas normas legais. Já, diferentemente, aqueles serviços atuam, pela própria natureza da sua missão, em segredo, devendo limitar-se a observar, recolher e processar informações sobre factos que possam implicar risco significativo para os direitos e valores constitucionalmente protegidos. Os serviços de informa- ções operam, assim, apenas em obediência aos princípios fundamentais da ordem jurídica, e não às normas processuais penais (veja-se a distinção traçada, neste mesmo sentido, no acórdão do Tribunal Constitucional Alemão de 24 de abril de 2013, 1 BvR 1215/07). Existe, conforme se concluiu no Acórdão n.º 403/15: «(...) uma distinção radical entre informações e investigação criminal, o que impede os oficiais de informação de intervirem no processo penal. As informações, no sentido de «elementos de conhecimento sistematizado em quadros interpretativos, através de critérios que sobrepõem a estrutura de sentido à relação causal (...) produzidas através de método próprio e preservadas da atenção e conhecimento de terceiros», nisso se traduzindo os «dois traços distintivos essenciais: – um método próprio; – um regime de segredo» (cfr. Arménio Marques Ferreira, “O Sistema de Informações da República Portuguesa”, in Estudos de Direito e Segurança, Almedina, 2007, p. 69), visam a obtenção de um conhecimento específico necessário à tomada de decisões e não a recolha de prova conducente ao exercício da ação penal. Ainda que a recolha e análise de informações possa ser utilizada na investigação criminal e com vista a medidas de prevenção policiais, não deixa de ser uma atividade autónoma e prévia à investigação criminal» (cfr. o ponto 19 do aresto citado). Não pretendendo negar-se as conexões e semelhanças entre a atividade de recolha de informações, a cargo do SIRP, e o exercício da ação penal, no quadro do processo criminal, a verdade é que, inexistindo processo penal, falta um elemento essencial, no quadro constitucional vigente, para o equilíbrio entre, por um lado, a necessidade de acesso do Estado às comunicações privadas, para garantia de direitos e valores constitucionais como a liberdade e a segurança, e por outro, a obrigação de respeito pelos direitos, liberdades e garantias, como é o caso da inviolabilidade do domicílio e da correspondência, plasmadas no artigo 34.º da CRP. Esse elemento consubstancia-se na existência de garantias constitucionais do arguido. É certo que é possível que, em fase inicial, inexista arguido mesmo em sede de processo penal. Contudo, a verificar-se a existência de fundadas suspeitas de crime em relação a uma pessoa, a consequência natural do processo penal será a sua constituição como arguida, nos termos dos artigos 57.º e 58.º do Código de Processo Penal (CPP). Esta posição processual assegura-lhe, à luz dos artigos 60.º e 61.º do dito Código, um importante
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