TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

88 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL leque de direitos e deveres processuais, designadamente, o direito de intervenção no inquérito e na instrução e o direito a recorrer de decisões desfavoráveis. Ora, fora do processo penal nunca há arguido, não estando, assim, assegurado o conjunto de garantias de exercício dos direitos fundamentais associado a esse estatuto. Por isso, e tendo em mente a intrínseca ligação entre processo penal e garantias constitucionais do arguido, é fácil compreender que a simples intervenção, ou intermediação, de um grupo de juízes – ainda que tratando-se de magistrados experientes, provindos do Supremo Tribunal de Justiça – no acesso a dados de comunicação e internet por parte dos oficiais de informação do SIRP não é suficiente para conferir a tal processo natureza criminal, nem mesmo uma natureza materialmente análoga. De facto, aquela intervenção não assegura a possibilidade de defesa dos afetados pela restrição de direitos fundamentais que o acesso aos dados de comunicações necessariamente comporta. Estes afetados desconhecerão, aliás, por completo, na maioria das situações, a existência da intervenção restritiva na sua esfera jurídica individual, uma vez que o poder do executivo é, neste campo, exercido em segredo. Tal circunstância, ainda que possa facilmente justi- ficar-se, aumenta também, de maneira inevitável, o risco de arbitrariedade e de lesão grave daqueles direitos. Em segundo lugar, e se não bastassem as considerações acima tecidas, uma análise mais atenta do pro- cesso de acesso aos dados de tráfego de comunicações pelos serviços de informações permite concluir que, apesar de as novas normas terem, claramente, a pretensão de apertar os mecanismos de controlo em relação ao previsto na legislação anterior, a propalada maior exigência de tais mecanismos parece, afinal, na prática, ainda insuficiente, sobretudo se pretendermos a sua equiparação ao processo criminal. Efetivamente, parte das objeções materiais levantadas por este Tribunal no Acórdão n.º 403/15 podem repetir-se a propósito das normas em análise: (i) Escassa densificação da moldura legislativa Assim, atente-se, desde logo, no n.º 1 do artigo 6.º da Lei Orgânica n.º 4/2017, nos termos do qual só se autorizará aos serviços de informações o acesso aos dados em causa “quando houver razões para crer que a diligência é necessária, adequada e proporcional, nos termos seguintes: a) Para a obtenção de informação sobre um alvo ou um intermediário determinado; ou b) Para a obtenção de informação que seria muito difícil ou impossível de obter de outra forma ou em tempo útil para responder a situação de urgência”. Esta formulação, que se pretende garantista, repete na verdade um elemento que é, por força da Constituição, inerente a toda a atuação do Estado em matéria de direitos fundamentais – o respeito pelo princípio da pro- porcionalidade. Ao mesmo tempo, atribui um amplo poder discricionário de apreciação da possibilidade de intervenções estaduais restritivas de tais direitos, sem uma moldura normativa suficientemente densificada, visto que o recurso a conceitos imprecisos e indeterminados (“muito difícil de obter de outra forma”, “tempo útil”) impossibilita a construção de limites legais prévios e claros à concretização das restrições. Nestes ter- mos, a ponderação quanto à proporcionalidade e legitimidade de uma intervenção restritiva de direitos fundamentais por parte dos oficiais do SIRP não se subordina a qualquer critério minimamente preciso ou determinado de distinção entre intervenções lícitas e ilícitas, de que possam socorrer-se os juízes da formação do STJ para decidir acerca da sua autorização. (ii) Natureza administrativa do processo, apesar da intervenção de magistrados A “formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça”, que fiscaliza o processo não tem, de igual modo, uma natureza jurídica bem definida. Ainda que tratando-se de um conjunto de juízes, este tipo de atuação parece situar-se fora do âmbito jurisdicional, pelo que estamos perante uma atuação de natureza administrativa e não judicial. Contudo, a transferência da discricionariedade decisória em matéria de acesso aos dados, de órgãos do SIRP para magistrados, se bem que represente um passo positivo em termos de garantias dos cidadãos, dada a experiência e a formação dos juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, bem como a sua sensibilidade particular em matéria de direitos fundamentais e de processo penal, não é, contudo, passível de provocar a transmutação de um processo administrativo num processo criminal,

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