TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

882 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL e não pôde, por si, exercer qualquer direito, competindo ao Estado, em primeira linha, garantir que o seu decesso não fique impune ou seja alvo de uma decisão ficcionada com base numa realidade diversa da ocorrida. Tal solução distância os tribunais da realidade, da justiça material e não é compreensível para os destinatários da justiça. O povo, a sociedade, todos nós em nome do quem, de acordo com a constituição da República, atuam os tribunais. Uma coisa, reafirma-se, é ao tribunal estar vedado, sem garantir ao arguido que utilize e esgote todos os meios de defesa, que utilize os novos factos e imponha ao arguido uma condenação com base em factos /imputação que o mesmo não teve hipótese de se defender oportunamente e outra, completamente distinta, é obrigar os tribunais a distorcer a realidade e/ou atuar com base contrária à sua convicção e independência condicionada de forma férrea e inultrapassável pela acusação. Neste sentido, p. ex., José Manuel Saporiti Machado da Cruz Bucho, in “Alteração Substancial dos Factos em Processo penal”: “Num golpe de mágica, sem que nada o justificasse, a reforma de 2007 mudou o paradigma: ordena-se o prosseguimento dos autos sem valorar os factos novos. Esta solução não tem paralelo nos ordenamentos jurídicos (alemão e austríaco) que mais influenciaram o Código de 1988. (...) Os ganhos obtidos em nome do acusatório, da celeridade e das garantias de defesa são muito inferiores aos prejuízos para a prossecução da verdade, para a justiça material do caso concreto, para a função preventiva do direito penal e vão, por certo, gerar as maiores incompreensões. (...) Enfim, o legislador não parece ter seguido a velha máxima do Padre António Vieira: As leis não são boas porque se mandam, senão porque bem se guardam” Lapidar, também, Nuno Brandão, citado no estudo referido nota 110, quando afirma que “o novo regime transforma a decisão judicial numa farsa o que não deixará de violentar o próprio juiz e de descredibilizar o exer- cício da ação judicial”. Por outro lado, face à solução adotada na reforma efetuada no preceito em análise, deixa de fazer qualquer sentido permitir ao arguido que aceite o prosseguimento dos autos. Consagra-se uma opção que na verdade não o é e não deveria sequer ser colocada ao arguido. De facto, na redação anterior, ao arguido apresentava-se um de dois caminhos; se aceitava o processo termi- naria com o exercício do contraditório e uma decisão contemplando os novos factos; se não aceitava o processo “regressava” à fase de inquérito. Tal disjuntiva hoje não existe e a opção que se coloca ao arguido é somente se aceita correr o risco de ser con- denado em sanção mais severa ou não. Assim sendo, não faz qualquer sentido permitir ao arguido que aceite. Ao fazê-lo estará manifestamente e sempre a prejudicar-se. Tal aceitação só poderá ocorrer em situações de falta de informação ou manifesto erro da defesa. Na solução atual o tribunal deveria, mais do que comunicar, informar o arguido que se diz que sim poderá ser punido de forma mais severa e se diz que não, não se passa nada e fica tudo na mesma. Se não existe opção, permitir ao arguido que se prejudique de forma voluntária afigura-se manifestamente desadequado e contrário a direito. Veja-se que a lei processual, p. ex., não permite que o arguido confesse de forma falsa, possa negociar a pena ou aceite ser julgado por crimes prescritos. A solução decorrente da lei, art.º 359 n.º 1 na parte que impede a consideração dos novos factos em novo processo e obriga o tribunal a ignorar os factos novos e a decidir apenas com os factos constantes da acusação parece-nos manifestamente inconstitucional. Da inconstitucionalidade.

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