TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

885 acórdão n.º 711/19 outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (artigo 18.º n.º 2 da CRP) – ob. cit. págs. 47 e 54. Entre o direito penal e o processual penal existe uma relação de instrumentalidade necessária, sendo este uma sequência de atos juridicamente preordenados e praticados por certas pessoas legitimamente autorizadas em ordem à decisão sobre se foi praticado algum crime e, em caso afirmativo, sobre as respetivas consequências jurídicas e sua justa aplicação (definição de Figueiredo Dias, adotada por Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal, Verbo, Volume I, 3.ª edição, pág.15). Todavia, não quer isto dizer que o processo penal não tenha interesses próprios a tutelar. A verificação da ocorrência de um crime e a aplicação da correspondente sanção não se pode fazer com recurso a quaisquer meios. Razões de segurança implicam por vezes a renúncia à descoberta da verdade. Disso são exemplo as regras relativas às proibições de prova, proibição da reformatio in pejus , non bis in idem , prescrição do procedimento. Ou seja, a verdade só pode ser procurada «de modo processualmente válido e admissível e, portanto, com o integral respeito dos direitos fundamentais das pessoas que no processo se veem envolvidas» ob. cit. pág. 25. Também as normas relativas à fixação do objeto, cuja fonte é o n.º 5 do artigo 32.º da CRP (estrutura acusatória do processo), visam primacialmente as garantias de defesa do arguido e o direito deste ao contraditório. Em obediência a tal comando constitucional, a autorização legislativa concedida ao Governo para aprovar o Código de Processo Penal (Lei n.º 43/86, de 26 de setembro), dispunha no seu artigo 2.º: «parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa em todos os atos do processo e incrementação da igualdade material de “armas” no processo; estabelecimento da máxima acusa- toriedade do processo penal, temperado com o princípio da investigação (...)». Desde então, e até hoje, temos que o paradigma do CPP, na fase do julgamento, consiste num processo de estrutura acusatória temperado pelo princípio da investigação judicial, de que a expressão máxima é o artigo 340.º. Ora, o princípio da investigação traduz o «poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e defesa, o facto sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão» ob. cit. pág.73. Quer isto dizer que, definido o objeto do processo e do julgamento pela acusação, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, deve procurar por todos os meios processualmente admissíveis alcançar a verdade histórica (verdade material), independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa, não se bastando assim com uma verdade meramente formal – ob. cit. pág.78, 79. Ora, ao atribuir ao julgador tal poder-dever, o legislador previu que daí poderia resultar o apuramento de factos, uma reconstrução histórica diferente daquela que consta na acusação ou na pronúncia. E esses novos factos tanto podem resultar em benefício do arguido (ex. causas de justificação), como podem implicar que este seja confrontado com uma realidade diversa (imputação do mesmo tipo de crime mas numa modalidade mais gravosa ou imputação de um crime diverso). Neste último caso, estamos perante uma alteração substancial dos factos – artigo 1.º f ) do CPP. Ora, se no primeiro caso não existem quaisquer óbices à consideração de tais fac- tos, uma vez que o fim do processo penal (a realização da Justiça) é atingido na sua plenitude, no segundo caso há que encontrar uma solução equilibrada que, por um lado, garanta a tutela efetiva do bem jurídico violado e, por outro, assegure as garantias de defesa do arguido, mormente o respeito pelo contraditório. Deixando de parte as situações de factos autonomizáveis, que não levantam dificuldades, quando de factos não autonomizá- veis se tratou esse equilíbrio foi encontrado pela doutrina e pela jurisprudência, com o “aval” do Tribunal Cons- titucional, ao abrigo da anterior redação do artigo 359.º do CPP – Cf. Acórdão do TC n.º 237/07, publicado no Diário da República , II Série, de 24 de maio de 2007. Efetivamente, a extinção da instância e a comunicação dos novos factos ao MP para que relativamente a eles proceda assegura plenamente tanto o direito do arguido a um processo justo e equitativo como a tutela efetiva do bem jurídico violado. Sucede que tal equilíbrio foi quebrado com a solução adotada pela Lei 48/2007, de 29 de agosto. E isto acontece especialmente nos casos em que da alteração dos factos resulta a imputação de um crime diverso (…) Assim, e por via de tal alteração, entendeu o legislador sobrevalorizar os direitos do arguido, restringindo desnecessária e injustificadamente o direito daqueles que vêm violados os seus direitos fundamentais à pro- teção e tutela efetiva desses mesmos direitos, o que viola claramente o disposto no artigo 18.º n.º 2 da CRP. Paralelamente, acabou por limitar o poder de investigação do juiz, que agora apenas poderá fazer uso dos mecanismos legais ao seu dispor para obter a comprovação dos factos descritos na acusação ou na contestação,

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