TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

888 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL de justificar a incriminação encontra ainda o mínimo de proteção penal, sendo apenas escamoteados alguns concretos fatores de intensificação dessa proteção. Ora, no Estado de direito democrático, a busca da verdade material e a realização do programa punitivo constante das normas incriminadoras só pode ter lugar com respeito pelas regras e princípios do processo penal. Mesmo que se entenda, como no Acórdão n.º 237/07 se entendeu, que ainda seria compatível com as exi- gências constitucionais decorrentes do princípio do acusatório e da proibição do princípio ne bis in idem uma solução normativa que, perante o impasse decorrente da oposição do arguido à extensão do objeto do processo aos factos novos não autonomizáveis, permitisse a extinção da instância e o retomar do processo, de modo a possibilitar a submissão do arguido a julgamento pela totalidade da conduta penalmente relevante, sempre caberá na discricionariedade legislativa a opção pela solução mais exigente para a acusação ou mais protetora da segurança ou da paz jurídica do arguido, que é também aquela que realiza de modo mais intenso os princípios inscritos no n.º 5 do artigo 29.º e no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição. Efetivamente, o problema central do objeto do processo penal é o da procura do equilíbrio entre o inte- resse público da aplicação do direito criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito impostergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa. Assim, “a identidade do objeto do processo não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficien- temente amplo e adequado da infração imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá também ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a defi- nição do objeto do processo se propõe justamente realizar” (Castanheira Neves, Sumários Criminais, apud M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código de Processo Penal, II vol., pag. 413). Ora, ao privilegiar as máximas da identidade (o objeto do processo deve manter-se idêntico da acusação à sentença definitiva) e da consunção (a decisão sobre o objeto do processo deve considerar-se como tendo definido jurídico-criminalmente a situa- ção em tudo o que podia e devia ser conhecido) e a celeridade, sobrelevando a segurança e a paz jurídica do arguido relativamente à busca da verdade material, o legislador ordinário não rompeu de modo manifesto esse equilíbrio, movendo-se no espaço de discricionariedade legislativa constitucionalmente consentido. Aliás, importa notar que só poderia colocar-se de modo sustentável a hipótese de a norma em causa ser censurada por violação das normas constitucionais invocadas no despacho recorrido, designadamente dos arti- gos 17.º, 18.º e 62.º da Constituição, se da Constituição decorresse, não só uma imposição de criminalização que tutele penalmente o direito de propriedade, mas também uma imposição de assegurar a punição agravada em função das circunstâncias qualificativas do ilícito correspondente. Violação ainda assim indireta, pois que a desproteção não resultaria do direito substantivo mas do regime processual relativo a anomalias ou vicissitudes que conduzam à não realização integral do programa punitivo por aquele definido. Ora, mesmo para quem entenda que, do princípio do Estado de direito ou, mais imediatamente, do dever de proteção dos direitos e liberdades fundamentais como tarefa fundamental do Estado [alínea b) do artigo 9.º da Constituição], pode decorrer a imposição de criminalização daquelas condutas que atentem contra os valores essenciais à ordem comunitária constitucionalmente estabelecida, sempre haverá uma ampla margem de liberdade na concretização dessa tutela penal pelo legislador e na conformação dos instrumentos processuais para lhe assegurar efetividade. O âmbito da legitimidade criminalizadora e o de imposição de criminaliza- ção, embora sendo questões relacionadas e tendo que decorrer dos mesmos princípios constitucionais, não se sobrepõem. Os deveres de proteção são sempre mediatizados pela lei, tendo o legislador uma larga margem de liberdade de avaliação, de modo que só casos de “más avaliações patentes” podem ser alvo de censura pelos tribunais (Maria Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e Crime» – Uma Perspetiva da Criminalização e da Descriminalização, pág. 299). E, como salienta o Ministério Público, no contexto da decisão recorrida não poderá dizer-se que a norma recusada implicaria ausência total de tutela penal do direito de propriedade uma vez que sempre subsistiria a possibilidade de condenação pela prática do furto simples, forma menos grave mas mesmo assim protetora do aludido direito. Por outro lado, também não pode afirmar-se que, com a solução normativa em causa, a “qualificação de um dado comportamento criminoso fica dependente de uma decisão unilateral de um órgão do Estado (o

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