TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

893 acórdão n.º 711/19 legislativa a opção pela solução mais exigente para a acusação ou mais protetora da segurança ou da paz jurídica do arguido, que é também aquela que realiza de modo mais intenso os princípios inscritos no n.º 5 do artigo 29.º e no n.º 5 do artigo 32.º da Constituição. Efetivamente, o problema central do objeto do processo penal é o da procura do equilíbrio entre o interesse público da aplicação do direito criminal, mediante a eficaz perseguição dos delitos cometidos, e o direito impos- tergável do arguido a um processo penal que assegure todas as garantias de defesa. Assim, “a identidade do objeto do processo não poderá definir-se tão rígida e estreitamente que impeça um esclarecimento suficientemente amplo e adequado da infração imputada e da correlativa responsabilidade, mas não deverá também ter limites tão largos ou tão indeterminados que anule a garantia implicada pelo princípio acusatório e que a definição do objeto do processo se propõe justamente realizar” (Castanheira Neves,  Sumários Criminais,  apud M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Código de Processo Penal,  II vol., pag. 413). Ora, ao privilegiar as máximas da identidade (o objeto do processo deve manter-se idêntico da acusação à sentença definitiva) e da consunção (a decisão sobre o objeto do processo deve considerar-se como tendo definido jurídico-criminalmente a situação em tudo o que podia e devia ser conhecido) e a celeridade, sobrelevando a segurança e a paz jurídica do arguido relativamente à busca da verdade material, o legislador ordinário não rompeu de modo manifesto esse equilíbrio, movendo-se no espaço de discri- cionariedade legislativa constitucionalmente consentido. Aliás, importa notar que só poderia colocar-se de modo sustentável a hipótese de a norma em causa ser censu- rada por violação das normas constitucionais invocadas no despacho recorrido, designadamente dos artigos 17.º, 18.º e 62.º da Constituição, se da Constituição decorresse, não só uma imposição de criminalização que tutele penalmente o direito de propriedade, mas também uma imposição de assegurar a punição agravada em função das circunstâncias qualificativas do ilícito correspondente. Violação ainda assim indireta, pois que a desproteção não resultaria do direito substantivo mas do regime processual relativo a anomalias ou vicissitudes que conduzam à não realização integral do programa punitivo por aquele definido. Ora, mesmo para quem entenda que, do princípio do Estado de direito ou, mais imediatamente, do dever de proteção dos direitos e liberdades fundamentais como tarefa fundamental do Estado [alínea b) do artigo 9.º da Constituição], pode decorrer a imposição de criminalização daquelas condutas que atentem contra os valores essenciais à ordem comunitária constitucionalmente estabelecida, sempre haverá uma ampla margem de liberdade na concretização dessa tutela penal pelo legislador e na conformação dos instrumentos processuais para lhe asse- gurar efetividade. O âmbito da legitimidade criminalizadora e o de imposição de criminalização, embora sendo questões relacionadas e tendo que decorrer dos mesmos princípios constitucionais, não se sobrepõem. Os deveres de proteção são sempre mediatizados pela lei, tendo o legislador uma larga margem de liberdade de avaliação, de modo que só casos de “más avaliações patentes” podem ser alvo de censura pelos tribunais (Maria Conceição Ferreira da Cunha, «Constituição e Crime» – Uma Perspetiva da Criminalização e da Descriminalização,  p. 299). E, como salienta o Ministério Público, no contexto da decisão recorrida não poderá dizer-se que a norma recusada implicaria ausência total de tutela penal do direito de propriedade uma vez que sempre subsistiria a possibilidade de condenação pela prática do furto simples, forma menos grave mas mesmo assim protetora do aludido direito. Por outro lado, também não pode afirmar-se que, com a solução normativa em causa, a “qualificação de um dado comportamento criminoso fica dependente de uma decisão unilateral de um órgão do Estado (o Ministério Público) ou, o que é particularmente grave, do mero acaso”. Pelo menos, essa será uma contingência inerente ao sistema processual penal que não se vê que normas ou princípios constitucionais viole. A circunstância de os factos novos não autonomizáveis surgirem para o processo apenas na fase de julgamento tanto poderá resultar de opção ou de incúria do titular da ação penal ou dos órgãos de polícia criminal, como de vicissitudes da investigação que estes não tenham podido dominar (confissão do arguido, novas declarações de testemunhas ou do ofendido, meios de prova até então desconhecidos, etc.). O inexorável sacrifício parcial do conhecimento da verdade material que daí decorre é consequência comportável – embora não necessária ou ine- vitável – da “orientação para a defesa” do processo penal e da posição diferenciada dos sujeitos processuais, desig- nadamente a que decorre da estrutura acusatória do processo. Que o consequente deficit de realização do direito penal substantivo seja o resultado de opções ou contingências da atuação do Ministério Público (e dos órgãos de

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