TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

896 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A imputação de crime diverso não implica que se trate de um bem jurídico diverso, tendo em conta a possibilidade de se salvaguardar o mesmo bem jurídico através de diferentes tipos incriminadores, em função, quer das diversas formas de tutela penal de um certo bem jurídico – veja-se como a vida e a integridade física são salvaguardadas, não apenas através da incriminação do homicídio e da ofensa à integridade física, como pelo crime de participação em rixa previsto e punido pelo artigo 151.º do Código Penal −, quer das diversas declinações da ilicitude criminal – veja-se o caso dos presentes autos, em que a lesão do mesmo bem jurí- dico, a vida humana, pode consubstanciar um crime de homicídio simples ou negligente, consoante as notas típicas do facto. Por outras palavras, os factos a considerar no julgamento do arguido podem bem integrar um tipo incriminador – v. g. , homicídio por negligência – que tem subjacente o mesmo bem jurídico que subjaz ao tipo de crime a que respeitam os factos novos – v. g. , homicídio simples. Nessas situações – decerto as mais comuns −, é impossível distinguir a priori o sacrifício da tutela penal que decorre da impossibilidade de proceder por factos novos que impliquem a imputação de crime diverso das situações de agravamento dos limites máximos da sanção aplicável. É verdade que outras situações haverá em que o regime estabelecido no artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, pode implicar a omissão de tutela penal. Tal sucederá, a título de exemplo, no caso de o arguido vir acusado do crime de furto de determinado objeto, tendo-se provado em audiência de julga- mento que o objeto em causa lhe havia sido confiado pelo proprietário, vindo o arguido posteriormente a apropriar-se do mesmo; neste caso, e segundo o regime vigente, o arguido será absolvido do crime de furto, não podendo vir a ser condenado, nesse ou noutro processo, pelo crime de abuso de confiança. Não parece, em todo o caso, que esta possibilidade seja idónea a modificar o juízo de não inconstitucio- nalidade. Assim é simultaneamente por razões processuais e substanciais. Do ponto de vista processual, sublinhe-se que o objeto do recurso de constitucionalidade é integrado pelo artigo 359.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, na redação da Lei n.º 48/2007, de 29 de agosto, em toda a sua extensão, e não a uma dimensão normativa calibrada em função da possibilidade de o poder público se demitir de efetivar a tutela penal de um determinado bem jurídico e, por via dessa omissão, não cumprir o dever constitucional de proteção. É evidente, aliás, não só que o caso dos autos não se subsume numa dimensão normativa com esse âmbito de aplicação tão estreito, como que as razões invocadas na deci- são recorrida para justificar a recusa de aplicação respeitam a todo o regime que decorre do n.º 1 do artigo 359.º do Código de Processo Penal. Do ponto de vista substancial, note-se que a liberdade de conformação do legislador em matéria de deveres de proteção é mais ampla do que aquela de que goza no domínio dos deveres de abstenção. Com efeito, sempre que a ordem constitucional impõe ao legislador um dever de não agir, proíbe efetivamente – ainda que apenas prima facie ou sob reserva de ponderação – todos os comportamentos que lesam o bem ou interesse que a tal dever subjaz. Pelo contrário, quando decorre da ordem constitucional um dever de agir, o legislador tem discricionariedade para eleger, entre os vários meios que se possam reputar idóneos para a promoção do estado de coisas desejado, um certo meio ou uma certa combinação de meios. Por outras palavras, a proibição do défice ou da insuficiência é tendencialmente menos estrita do que a proibição do excesso, porque quanto àquela o legislador goza, não apenas da margem de apreciação que decorre da necessidade de ponderação ou concordância prática de bens, mas ainda de uma margem adicional que respeita à seleção dos meios de tutela. Ora, a tutela penal corresponde apenas a uma de várias formas possíveis – ao lado, por exemplo, da prevenção policial e da responsabilidade civil – de tutela de bens jurí- dicos com ressonância constitucional, de modo que não se pode concluir, mesmo nas situações em que a norma sindicada implica a omissão de tutela penal, que o poder público se demite do seu dever de proteção de direitos fundamentais. O mais que se pode dizer é que, ceteris paribus , diminui o nível global da proteção dispensada. Acresce que a solução alternativa preconizada na decisão recorrida – em linha com uma das interpre- tações da lei na redação antiga –, para além de prejudicar claramente a celeridade na definição da responsa- bilidade penal do arguido, não assegura que este será efetivamente julgado pelo crime diverso, dado que a

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