TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

973 acórdão n.º 776/19 38) Assim sucede no plano criminal mas também, por força do que acima se disse, no Direito das Contraorde- nações da Concorrência, desde logo por força da sua evidente identidade estrutural. 39) Logo, a opção do legislador por um regime sancionatório contraordenacional não pode servir de pretexto para uma degradação das garantias dos Arguidos quando tal regime prevê consequências mais gravosas do que aquelas que resultariam da responsabilidade penal. 40) O que, por sua vez, leva a concluir que o tipo de censura dirigido ao agente de uma contraordenação da Concorrência está substancialmente próximo do juízo de censura ao agente de um crime económico-financeiro, servindo igualmente para tutelar bens jurídicos que não de mera admonição. 41) Daí que a sua execução imediata comporte já um significado idêntico ao da execução antecipada de uma sanção criminal por factos não transitados em julgado. 42) Isso mesmo foi já reconhecido nos dois outros países europeus que têm um Direito Contraordenacional de matriz penal: a Alemanha e a Áustria. 43) De facto, no regime alemão, no qual o legislador português declaradamente se inspirou para criar a figura das contraordenações, a única solução possível no que concerne a coimas em matéria de concorrência é precisa- mente a do efeito suspensivo até ao trânsito em julgado da respetiva decisão de aplicação. 44) O mesmo sucede com o regime austríaco, no qual o legislador foi inclusivamente mais longe, proibindo também a aplicação direta de coimas pela AdC, sem decisão judicial prévia, conferindo efeito suspensivo às coimas até ao trânsito em jugado e proibindo a reformatio in pejus . 45) O motivo é evidente: sendo modelos de Direito Contraordenacional de matriz penal, em especial num contexto de “grandes” contraordenações, a única solução constitucionalmente admissível tem de passar pela atri- buição de garantias adequadas à natureza dos ilícitos. 46) O legislador português, por seu turno, não só previu a reformatio in pejus também como medida dissuasora de eventuais recursos inúteis, como previu o efeito meramente devolutivo da impugnação, conferindo executorie- dade imediata ao que constitui uma mera acusação de acordo com o artigo 62.º, n.º 1, do RGCO (aplicável ex vi artigo 13.º, n.º 1, da Lei da Concorrência). 47) E fê-lo sem qualquer válvula de escape que não a demonstração da eventual verificação de um prejuízo considerável com a execução imediata da coima, caso em que sempre terá o visado de pagar por outra forma, prestando caução. 48) O regime português é, por isso, cego quanto à concreta necessidade de efeito devolutivo da decisão conde- natória no caso, deixando margem (de resto, fictícia) ao julgador apenas para impor o pagamento de uma caução ao visado, caso este demonstre um prejuízo considerável na execução antecipada da coima. 49) Ora, a eventual verificação de um prejuízo considerável não é fundamento válido para uma maior ou menor compressão do princípio da presunção de inocência. Isto porque o princípio é igualmente válido para todos os presumíveis inocentes, independentemente do prejuízo que a sanção lhes provoque. 50) O ponto está na circunstância de a solução legal, ao invés de presumir a parcialidade da entidade que investiga e decide, presumir a culpa daquele que se defende perante ela num processo sem “freios e contrapesos”. 51) Por tudo quando se referiu, ao restringir desproporcionalmente a presunção da inocência, impondo um regime de impugnação ao qual apenas excecionalmente se atribui efeito suspensivo, sem que o julgador possa decidir quais os casos em que tal efeito se justifica, a norma viola de forma grosseira e intolerável o princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32.º, n.º 2, em conjugação com o disposto nos artigos 32.º, n.º 10, 18.º, n.º 2 e 2.°, todos da CRP. Por outro lado, VI. A violação do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva 52) Como bem assinalou o Tribunal a quo, a norma viola ainda o direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva. Senão veja-se: 53) A impugnação de decisões condenatórias da AdC não é, em rigor, um recurso, mas um exercício do direito de ação, cujo conteúdo essencial pressupõe a possibilidade de evitar os efeitos da decisão impugnada.

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