TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 106.º Volume \ 2019

974 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 54) Ora, no processo contraordenacional o direito de ação tem uma relevância qualificada, pois a fase adminis- trativa deste é uma fase inquisitória em que a entidade que investiga é a mesma entidade que julga. 55) Assim, considerando que o caráter inquisitório desta fase do processo representa um desvio à matriz acusa- tória que caracteriza os processos sancionatórios no Direito português, impõe-se a criação de um mecanismo que contrabalance a imparcialidade promovida por aquele regime com uma ampla margem para a impugnação judicial de decisões condenatórias. 56) Aliás, muito em especial neste concreto domínio, quaisquer obstáculos levantados nesse primeiro acesso a um julgador imparcial devem estar rodeados de especiais cautelas e devem ser fundados em motivos atendíveis, comprovados e preponderantes, não podendo, em qualquer caso, tais obstáculos esvaziar o conteúdo essencial desse direito (artigo 18.º, n.º 3, CRP). 57) Não é isso que sucede. 58) O regime do efeito suspensivo da impugnação judicial apenas permite ao Arguido escolher entre pagar a coima ou prestar caução equivalente. Estamos, portanto, perante um regime incapaz de atender às circunstâncias do caso concreto. Portanto, 59) Não obstante o legislador goze de uma ampla margem de conformação do sistema de acesso à justiça, este poder de conformação não está, evidentemente, isento do cumprimento de exigências constitucionais, em especial das exigências impostas pelo princípio da proporcionalidade. 60) O exercício do poder de conformação do sistema de acesso à justiça está, nos termos do disposto no artigo 18.º, n.°s 2 e 3, da Constituição, dependente de uma adequada, necessária e proporcional ponderação entre os interesses (públicos) prosseguidos com a intervenção legislativa e o grau de restrição dos direitos, liberdades e garantias daqueles que por ela serão visados. 61) Ora, os interesses prosseguidos com a intervenção legislativa são fundamentalmente interesses que visam prosseguir a ‘’equidade, celeridade e eficiência’’ das impugnações judiciais. 62) No que respeita à equidade, dir-se-á apenas que não se compreende como uma solução que não atende à justiça do caso concreto poderá ser equitativa. A solução preconizada para prosseguir aquele fim é, por isso, ini- dónea. 63) No que respeita à prossecução de fins de celeridade e eficácia, o regime é pura e simplesmente desade- quado. E é desadequado porque procura fazê-lo à custa de um desincentivo a apresentar recursos que com elevada probabilidade poderão ser fundados – circunstância demonstrada pela elevada taxa de decisões revogadas, total ou parcialmente, ou anuladas pelos tribunais ad quem . Mais, 64) O regime do efeito suspensivo da Lei da Concorrência é desnecessário, pois já existem meios de menor ou igual gravidade para evitar impugnações infundadas, nomeadamente o princípio da reformatio in pejus , a possibili- dade de a AdC adotar medidas provisórias destinadas a garantir o efeito útil da decisão final, os prazos de prescrição dilatados, bem como, pela natureza destes processos, os custos de litigância associados à continuação do processo. 65) Por fim, o regime do efeito suspensivo é desproporcional em sentido estrito, ou seja, viola ajusta medida. 66) Assim sucede, por um lado, porque quando não impõe ao visado a execução antecipada da coima, impõe sempre um ónus equivalente ao cumprimento da coima para evitar a antecipação desta, e, por outro lado, porque impõe-lhe um esforço exagerado e moroso para recuperação dos montantes indevidamente pagos de forma anteci- pada, em caso de procedência da impugnação. 67) Assim, e em suma, a norma em crise mais não faz do que prosseguir finalidades de eficiência e celeridade, à custa de uma restrição desproporcional – porquanto desnecessária, desadequada e em violação da justa medida, e, por isso, intolerável – não só do princípio da presunção de inocência mas também do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva, devendo, por isso, ser declarada inconstitucional, por violação dos artigos 18º, n.°s 2 e 3, 20.º, n.º 1, e 268.°, n.º 4, todos da CRP.»

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