ACÓRDÃO Nº 426/2022
Processo n.º 329/2022
1.ª Secção
Relator: Conselheiro José António Teles Pereira
Acordam, em Conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – A Causa
1. A. (o ora reclamante) foi condenado, em primeira instância (processo número 39/21.2GBCCH, do Juízo de Competência Genérica de Coruche), na pena de 6 meses de prisão efetiva, pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal.
1.1. Desta decisão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Évora, que, por acórdão de 09/11/2021, negou provimento ao recurso.
1.1.1. Notificado desse acórdão, o arguido dele apresentou “reclamação”, invocando a respetiva nulidade por falta de fundamentação e “inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência”. Quanto a este desvalor, alegou o seguinte:
“[…]
Da inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência
9. Alegou ainda o Recorrente que não comete qualquer crime há cerca de uma década – v. conclusão 5 – assim lançando mão de mais um argumento contra a execução da pena de prisão.
10. Veio esta Veneranda Relação responder que (transcrição): “o recorrente alega factos – conclusões 5.ª a 8.ª – que sequer se demonstram nos autos. Não está demonstrado que o arguido não comete crimes desde 2012, sobe-se apenas que não é condenado desde 2012”.
11. Ora, sabemos que o Recorrente não comete crimes desde 2012, pois só nessa data que se situa, cronologicamente, a sua última condenação.
12. O argumento de que não se sabe se comete ou não crimes neste hiato temporal, apenas se sabendo que não ó condenado, para além de uma inaceitável especulação, constitui uma violenta afronta ao princípio da presunção de inocência, constante da norma do artigo 32.º, n.º 2, da Constituição.
13. Verifica-se, pois, uma inconstitucionalidade do Acórdão nesta parte, e cumpre expurgar.
[…]”.
1.1.2. Por acórdão de 16/12/2021, a nulidade foi desatendida.
1.1.3. O arguido recorrente requereu, ainda, a aclaração do acórdão, o que viu indeferido, com fundamento no trânsito em julgado da decisão, “[…] pois que pedidos de aclaração não suspendem prazos de recurso ou reclamação […]”, acrescentando que “[…] não há que ‘aclarar’ decisão transitada em julgado”.
1.1.4. O recorrente interpôs, então, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, nos termos seguintes:
“[…]
[Não] se conformando com o Douto Acórdão desta Veneranda Relação de Évora, na parte em que não conheceu da inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, previsto no artigo 32.º, n.º 2, da CRP, vem nos termos dos artigos 70.º, n.ºs 2 e 4, 72.º, n.º 1, alínea b), e 75.º, n.º 1, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, requerer a V.ª Ex.ª que admita a interposição do recurso previsto no artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da Lei Fundamental e no artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da referida Lei Orgânica, pelo seguinte:
1. Perante a Veneranda Relação de Évora, o recorrente invocou, entre o mais, o vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência, na aplicação do artigo 43.º do Código Penal (Regime de Permanência na Habitação) quando se afirma, para afastar aquele regime de cumprimento de pena, que “a inexistência de condenações não permite afirmar a não prática de crimes”.
2. O Recorrente expressamente invocou a referida inconstitucionalidade, embora o Venerando Tribunal da Relação de Évora nada tenha dito neste conspecto.
3. Ademais, ainda a propósito da aplicação do regime previsto no artigo 43.º do Código Penal, no Acórdão proferido podem ser lidas expressões como “suposta pandemia”, “que se assiste a uma pandemia de não vacinados e não uma verdadeira pandemia, que já se transformou numa endemia, mas que se acena como forma de incutir o medo com vários fins, numa evidente nostalgia das sociedades fechadas”, e que a suposta pandemia é mero “obter dictum”,
6. Tendo o recorrente requerido a aclaração do Acórdão proferido quanto à matéria da pandemia – e do perigo que a mesma constitui para o condenado, pessoa com quase 80 anos – a Veneranda Relação de Évora não esclarece se o Venerando Desembargador relator nega a existência da pandemia e se a mesma tem ou não a virtualidade de impor a ponderação do regime de permanência na habitação.
7. No seu ver, e considerando a factualidade em apreço, a decisão proferida viola o dever de fundamentação plasmado no artigo 205.º/1 da CRP a aplicação do artigo 43.º do C. Penal no sentido de não substituir a pena de prisão pelo supra citado regime em que, tendo o condenado invocado perigo para a sua vida, se nega a existência da pandemia – facto científico insofismável.
8. Tal vício foi invocado na sequência da prolação do Acórdão da Veneranda Relação de Évora, que não conheceu do mesmo.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2. No Tribunal da Relação de Évora, o requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional foi objeto de um despacho de não admissão, – que constitui a decisão ora reclamada –, com os fundamentos seguintes:
“[…]
Interposto recurso pelo arguido, por este TRE e por acórdão de 9 de novembro de 2021 foi decidido negar provimento ao recurso interposto e, consequentemente, manter a sentença recorrida.
O mandatário do recorrente foi notificado do acórdão a 10/11/2021.
O recorrente veio reclamar e deduzir uma inconstitucionalidade. Mais propriamente, se declarasse “a nulidade do acórdão por falta de fundamentação” e se julgasse verifica da a “inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, nos termos do artigo 32.º/2 da Constituição”.
Por acórdão de 16 de dezembro de 2021 negou-se provimento à reclamação.
Entretanto o arguido veio reclamar do indeferimento da reclamação, o que foi rejeitado.
Foi lavrada nos autos certidão de trânsito em julgado do acórdão a 25/11/2021.
A 21/01/2022, foi lavrado o seguinte despacho na sequência de segunda “aclaração” apresentada pelo recorrente: […] ‘…não há que aclarar decisão transitada em julgado…’.
Este despacho foi notifica do ao mandatário do recorrente em 24/01/2022.
O processo foi, entretanto, devolvido ao tribunal recorrido, ficando traslado.
Vem agora o arguido – a 08/02/2022 – recorrer para o Tribunal Constitucional (…).
[…]
No entanto o prazo de interposição do recurso esgotou-se.
A reclamação e o pedido de declaração de inconstitucionalidade formulado após prolação de acórdão com o sentido de alterar o decidido não se enquadram na previsão do artigo 380.º do C.P.P., que apenas permite a correção da decisão judicial que “não importe modificação essencial”, não permite a falsa aclaração (reclamação) quando se pretenda inverter o sentido da decisão.
Admitindo embora que o artigo 380.º do C.P.P. permite a reclamação por “omissão de pronúncia”, não permite no entanto que um tribunal cujo poder jurisdicional se esgotou, no dizer do artigo 613.º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil (“Proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa”), atue fora dos apertados limites do disposto no artigo 613.º, n.º 2, do C.P.C. e 380.º do C.P.P. (por aqui não haver recurso à parte final do n.º 2 do preceito dada a inexistência de lacuna a suprir pelo C.P.C.).
O prazo para a interposição o do recurso contava-se, como é óbvio, da data da decisão que continha, no entender do recorrente, uma visão normativa inconstitucional, ou seja, desde a data da decisão de 9 de novembro de 2021 e a notificação da decisão ao mandatário do recorrente ocorreu em 10/11/2021, a que acrescem três dias.
O artigo 75.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, claramente afirma que «o prazo de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional é de 10 dias».
Ou seja, o arguido deveria ter interposto recurso antes de 25/11/2021.
Mesmo a admitir uma tese extrema de que o recorrente podia reclamar pela invocada “omissão de pronúncia” e, após, recorrer para o Tribunal Constitucional, impunha-se-lhe que interpusesse recurso para o Tribunal Constitucional findo tal prazo de dez dias para a reclamação. Ou seja, até 14/12/2021.
O recorrente aguardou e apresento uma segunda reclamação (rejeitada em 21/01/2022) e veio em 08/02/2022 interpor recurso para o Tribunal Constitucional.
[…]
De qualquer forma, existe já – e de há muito – jurisprudência estabilizada sobre a matéria. Assim:
– Acórdão n.º 403/2013 do Tribunal Constitucional: […].
Ora, no caso, em qualquer das perspetivas (com ou sem sucessão de prazos), o prazo de recurso para o Tribunal Constitucional mostra-se ultrapassado. É manifesto que tal recurso é extemporâneo.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2.1. O recorrente apresentou, então, reclamação dirigida ao Tribunal Constitucional, nos termos do artigo 76.º, n.º 4, da LTC, invocando o que se segue:
“[…]
1. Por sentença proferida em 22/03/2021, veio o recorrente condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 6 (seis) meses de prisão efetiva.
2. Desta sentença foi interposto recurso em 09/06/2021.
3. Foi, pela Relação de Évora, proferido Acórdão em 09/11/2021.
4. O Recorrente arguiu nulidades por requerimento apresentado em 23/11/2021, tendo a Relação de Évora proferido novo Acórdão em 16/12/2021.
5. O Recorrente requereu a aclaração do segundo Acórdão proferido – o qual responde a uma arguição de nulidades e não a um pedido de aclaração, como resulta do despacho do Exmo. Desembargador - tendo a mesma sido indeferida por despacho de 21/01/2022, notificado ao arguido em 24/01/2022.
6. O Recurso para o Tribunal Constitucional é interposto, então, no prazo legal de 10 dias, ou seja, dia 08/02/2022.
7. Segundo resulta do despacho da Relação de Évora que rejeitou o recurso, o pedido de aclaração não suspendeu o prazo de interposição de recurso, tendo a decisão transitado em julgado.
8. Contudo, no Acórdão 301/2020, proferido por este Colendo Tribunal Constitucional, pode ler-se “Todavia, os incidentes pós-decisórios só não interrompem o prazo para interposição do recurso para o Tribunal Constitucional quando se apresentem manifestamente anómalos ou o inexistentes (cfr., entre outros, o Acórdão n.º 165/2015), o que não é o caso, em princípio, de meios processuais legalmente tipificados, como a pretendida aclaração de uma ambiguidade (artigo 380.º do Código de Processo Penal), ainda que venha a ser indeferida, devendo salientar-se que o Tribunal da Relação não deu qualquer indicação desse caráter anómalo (o qual não se retira do mero indeferimento)”.
9. Ora, o pedido de aclaração do Acórdão que indeferiu a arguição de nulidades não pode consubstanciar um incidente anómalo, tal como invocado pelo Exmo. Desembargador.
10. Na verdade, no requerimento do Recorrente apresentado em 23/11/2021, não se requer qualquer aclaração, mas apenas e tão só arguir nulidades e inconstitucionalidades, conforme transcrição que segue […].
«Pelo exposto, deve o Acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que:
a) Declare a nulidade do Acórdão por falta de fundamentação;
b) Julgue verificada da inconstitucionalidade por violação do princípio da presunção de inocência, nos termos do artigo 32.º/2 da Constituição.»
11. Não corresponde à verdade que se tenha requerido “a aclaração da aclaração”,
12. Pela simples razão que, no primeiro momento, não se pediu aclaração alguma.
13. Não se tratando de requerimento anómalo, ou inexistente, deverá seguir-se o entendimento do TC acima plasmado.
14. Razão pela qual se conclui que o recurso interposto não deverá ser rejeitado por intempestividade.
Pelo exposto, requer-se que seja concedido provimento à reclamação efetuada, admitindo-se o recurso tempestivamente interposto.
[…]”.
1.2.2. A reclamação foi admitida e, já no Tribunal Constitucional, o Ministério Público apresentou parecer no sentido do respetivo indeferimento, com o seguinte teor:
“[…]
7. Com efeito, sem necessidade de entrar na discussão sobre a tempestividade da interposição do recurso de constitucionalidade por parte do ora reclamante (para a qual seria, aliás, conveniente poder conhecer as datas de todas as peças apresentadas pelo recorrente), podemos sustentar que o reclamante não só não suscitou perante o Tribunal da Relação de Évora, em termos processualmente adequados, uma questão de constitucionalidade, como ainda podemos afirmar que, para além disso, não suscitou em termos processualmente adequados uma questão normativa de constitucionalidade.
8. Na verdade, conforme resulta da leitura, ainda que perfunctória, do requerimento de interposição de recurso, por parte do ora reclamante, para o Tribunal da Relação de Évora, apuramos que o recorrente, em nenhum momento da sua intervenção processual suscitou qualquer questão de constitucionalidade perante aquele tribunal “a quo”, omitindo qualquer referência a matérias relacionadas com a compatibilidade constitucional de normas infraconstitucionais eventualmente aplicadas por tal tribunal.
9. Ou seja, não logrou o ora reclamante colocar perante o Tribunal da Relação de Évora, em termos de este estar, enquanto tribunal “a quo”, obrigado a dela conhecer, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
10. Para além disso, mesmo quando optou por mencionar, processualmente, o tema da inconstitucionalidade, não logrou, o ora reclamante, enunciar, com rigor e precisão, qual a norma ou interpretação normativa cuja constitucionalidade pretendia contestar, isto é, nunca enunciou de forma expressa, direta, clara e percetível qualquer questão de inconstitucionalidade, muito menos em termos de criar para o tribunal recorrido um dever de pronúncia sobre a mesma.
11. Na sua reclamação, limita-se o reclamante a discordar do decidido pelo Venerando Desembargador do Tribunal da Relação de Évora, no que concerne à tempestividade da interposição do recurso, nada dizendo, logicamente, quanto às questões agora suscitadas.
12. Ainda assim, e sem prejuízo da possibilidade que possa vir a ser dada, se necessário, ao reclamante, para se pronunciar, não podemos deixar de sustentar que, não tendo o reclamante suscitado, perante o Tribunal da Relação de Évora, em termos processualmente adequados uma identificável questão de constitucionalidade e não tendo, igualmente, logrado enunciar, com rigor e precisão, qual a norma cuja constitucionalidade pretendia ver questionada, não deverá este Tribunal, em nosso entendimento, prover a sua pretensão.
13. Atentando em tudo o exposto, afigura-se-nos que deverá ser indeferida a presente reclamação.
[…]” (sublinhados acrescentados).
1.2.3. Notificado para, querendo, se pronunciar quanto ao referido parecer do Ministério Público, o reclamante não apresentou resposta.
Cumpre apreciar e decidir a reclamação.
II – Fundamentação
2. Conhecidos os momentos essenciais do processo, cumpre determinar se o reclamante interpôs um recurso de constitucionalidade apto a ser recebido, tendo presente que pretendeu (pretende) recorrer do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09/11/2021 ou do acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 16/12/2021 (visto que não identifica de um modo inequívoco qual deles impugna, o que, todavia, como se verá, é irrelevante para o sentido da decisão), recurso esse para o Tribunal Constitucional que não foi admitido por intempestividade.
2.1. Importa referir, no caso presente, que, para a procedência da reclamação, não basta afastar qualquer argumento de rejeição do recurso afirmado na decisão reclamada. A reclamação será procedente apenas se não se verificarem outros motivos – mesmo que não considerados na decisão reclamada – que sustentem essa mesma decisão.
O objeto da reclamação não tem, pois, uma delimitação temática restrita ao fundamento invocado para não admissão do recurso no despacho contestado. Pelo contrário, estando em causa uma eventual revogação da decisão de não admitir o recurso, ela tem, forçosamente, de se alargar a todas as condições ou pressupostos de cuja verificação depende a admissibilidade do recurso. Como, a tal propósito, se escreveu no Acórdão n.º 276/88 (disponível, tal como outros adiante indicados, em www.tribunalconstitucional.pt):
“[…]
[O] que de todo o modo não parece ser de excluir é a possibilidade de o Tribunal Constitucional alargar […] o objeto da reclamação, quando os autos forneçam os elementos necessários para tanto – ou então, e mais precisamente, a possibilidade de alargá-lo na exata medida em que os elementos constantes dos autos o consintam. Apontam nesse sentido […] evidentes razões de economia processual tudo conjugado com o facto de se estar perante matéria do conhecimento oficioso do Tribunal (cfr. artigo 495.º Cód. Proc. Civil [que corresponde ao artigo 578.º do CPC atual]). E claro que, a ser pelo menos assim, a decisão da reclamação, no caso de deferimento, fará caso julgado, não apenas quanto ao fundamento ou fundamentos de rejeição do recurso invocados no despacho reclamado, mas ainda quanto à verificação de todos os pressupostos de admissibilidade daquele de que o Tribunal tenha efetivamente conhecido.
Nestas condições […], impõe-se na verdade averiguar se, a vista dos elementos oferecidos pelos presentes autos, ocorre algum outro fundamento, para além do já assinalado, que obste a admissibilidade do recurso neles interposto para este Tribunal. E impõe-se isso tanto mais, quanto, no caso, aqueles elementos são de molde a permitir uma indagação completa da verificação dos pressupostos de tal admissibilidade.
[…]”
Tendo presente o que se acabou de expor, considerem-se os requisitos gerais de recorribilidade.
2.2. Preambularmente, importa notar que corresponde a um traço definidor do nosso sistema de controlo da constitucionalidade o respetivo caráter normativo. Com efeito, ao contrário de outros sistemas que consagram a possibilidade de um controlo jurisdicional diretamente dirigido às decisões dos restantes tribunais, no sistema português a fiscalização incide – e só incide – sobre normas, estando excluída a apreciação pelo Tribunal Constitucional de recursos que questionem, mesmo que o façam numa perspetiva de conformidade a regras e princípios constitucionais, os concretos atos de julgamento expressos nas decisões dos outros Tribunais. Com efeito, como refere José Manuel M. Cardoso da Costa, “[s]endo o nosso recurso de constitucionalidade restrito à apreciação de normas jurídicas, segue-se que a tutela ou garantia contenciosa da conformidade constitucional – nomeadamente sob o ponto de vista do respeito pelos direitos fundamentais – de outros atos ou situações jurídicas fica exclusivamente confiada à responsabilidade dos tribunais comuns […]. E será designadamente assim quanto às próprias decisões judiciais em si mesmas consideradas – é dizer, no tocante a essas decisões quando a questão da sua conformidade com a Constituição não tenha a ver e não dependa da constitucionalidade da norma ou normas jurídicas que as suportam ou de que fazem aplicação […]” (“Justiça constitucional e jurisdição comum (cooperação ou antagonismo?)”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Joaquim Gomes Canotilho, vol. II, Coimbra, 2012, p. 203).
É assim que este Tribunal julga, na fase final de controlo concentrado que lhe está cometida, a desconformidade ou não desconformidade, face à Constituição, de normas jurídicas aplicadas no tribunal a quo.
Na indagação que assim importa fazer quanto ao objeto do recurso, não serão absolutamente decisivas a generalidade ou abstração da “norma” construída e enunciada pelo Recorrente, embora a falta destas características venha, frequentemente, associada a uma crítica da operação de subsunção em lugar da norma que foi critério da decisão. Por outro lado, a ligação às incidências do caso concreto pode servir como (mero) indício de ser mais diretamente a solução do caso do que a norma subjacente que se visa no recurso, sendo que de uma a outra das situações vai a distância entre a admissibilidade do recurso e a inadmissibilidade deste. Independentemente do valor indiciário daqueles fatores, o que verdadeiramente interessa para a construção de um objeto idóneo de um recurso de fiscalização concreta como aquele que ora se pretende interpor é que se questione “[…] um juízo que o juiz há de retirar [retirou] de uma norma (isto é, […] um critério heterónomo de decisão) de que [ele, juiz] é apenas o mediador”, e não “[…] um juízo que [o juiz] há de emitir [emitiu] segundo o seu próprio critério (para o qual o legislador devolve – na grande massa das situações, até porque não pode ser de outro modo – e no qual confia)” (cfr. José Manuel M. Cardoso da Costa, “Justiça constitucional e jurisdição comum…”, cit., p. 209, nota 12).
Tendo presente o sentido que o recurso deve adotar, também não se deve perder de vista que a sua adequada delimitação constitui um ónus do Recorrente (cfr. Carlos Lopes do Rego, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Coimbra, 2010, p. 33), sob pena de dele se não tomar conhecimento.
O objeto normativo – com o recorte referido – constitui, pois, a condição primordial do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC. Não se trata, porém, da única condição. Com efeito, neste tipo de recursos, exige-se ainda (e exige-se cumulativamente): i) a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa (com o específico sentido atrás apontado), “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC); e, enfim, ii) a aplicação, na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma tida por inconstitucional pelo recorrente, na concreta interpretação correspondente à dimensão normativa delimitada no requerimento de recurso, pois “[…] só assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão” (Acórdão n.º 372/2015).
2.3. Entende o Ministério Público que a reclamação deve ser indeferida por não ter sido suscitada, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, nos termos do artigo 72.º, n.º 2, da LTC. Tal omissão tem como consequência a ilegitimidade do recorrente.
Efetivamente – desde já se adianta – assim é.
O recorrente aludiu a inconstitucionalidade na “reclamação” transcrita em “1.1.1.”, supra, não o tendo feito anteriormente, nem posteriormente. Todavia, nesse momento (e mesmo abstraindo quer da suscitação tardia, em incidente pós-decisório, quer do eventual caráter processualmente anómalo do segundo incidente pós-decisório, quer do trânsito em julgado declarado pelo tribunal recorrido em despacho não impugnado), não se enuncia qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, sendo antes referida a um “argumento” do tribunal: “[o tribunal afirmou que] não está demonstrado que o arguido não comete crimes desde 2012, sabe-se apenas que não é condenado desde 2012” […] “o argumento de que não se sabe se comete ou não crimes neste hiato temporal, apenas se sabendo que não é condenado, para além de uma inaceitável especulação, constitui uma violenta afronta ao princípio da presunção de inocência”.
Ou seja, ao contrário do que o recorrente afirma no requerimento de interposição do recurso, a questão que enunciou não se reconduz a “[…] vício de inconstitucionalidade, por violação do princípio da presunção de inocência, na aplicação do artigo 43.º do Código Penal”, muito menos a qualquer específica interpretação extraída de tal preceito legal, mas a um argumento usado na fundamentação da decisão, sem dimensão normativa, nem autonomia como critério de decisão. Vale o exposto por dizer que não foi observada a condição de recorribilidade prevista no artigo 72.º, n.º 2, da LTC.
Tanto basta para concluir pela inviabilidade do recurso e, consequentemente, pela confirmação, ainda que por diferente fundamento, do despacho reclamado, que não admitiu o recurso para o Tribunal Constitucional, tornando inútil apreciar a verificação de outras condições de recorribilidade.
2.4. Pelo que antecede, a reclamação será indeferida.
É o que resta afirmar.
III – Decisão
3. Em face do exposto, decide-se confirmar, ainda que com diferente fundamento, a decisão reclamada, mantendo, consequentemente, a decisão não admissão do recurso de constitucionalidade pretendido interpor pelo ora reclamante A..
3.1. Custas a cargo do reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 Unidades de Conta (artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os critérios constantes do artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma).
Lisboa, 7 de junho de 2022 - José Teles Pereira - Pedro Machete - Atesto o voto de conformidade do Conselheiro José João Abrantes que participou por meios telemáticos.
José Teles Pereira