ACÓRDÃO Nº 435/2022
Processo n.º 153/2022
3ª Secção
Relatora: Conselheira Joana Fernandes Costa
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. No âmbito dos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, foram interpostos dois recursos autónomos, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante, «LTC»), dos acórdãos proferidos por aquele Tribunal em 2 de dezembro de 2021 e em 13 de janeiro de 2022, respetivamente.
Através da Decisão Sumária n.º 126/2022, decidiu-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso.
Tendo o recorrente reclamado de tal decisão, a mesma veio a ser confirmada pela conferência, através do Acórdão n.º 186/2022.
Novamente inconformado, o reclamante arguiu a respetiva nulidade, pretensão que viu indeferida através do Acórdão n.º 323/2022.
2. Notificado deste Acórdão, o reclamante vem arguir a sua nulidade, através de requerimento com o seguinte teor:
«A., Recorrente nos autos acima melhor identificados, notificado do Acórdão n.º 323/2022, de 28/04/2022, vem, muito respeitosamente, expor e requerer o seguinte:
1º- Em 31/03/2022, o Recorrente veio a arguir a nulidade do Acórdão nº 186/2022, de fls., de 17/03/2022, invocando, nomeadamente, os seguintes fundamentos:
“(...)
5º - Mas mais, juntamente com o Acórdão proferido encontrava-se também a resposta apresentada pelo Ministério Público, a qual nunca havia sido notificada ao Recorrente.
6º - Com efeito, no dia 28/02/2022 terá sido junto aos autos, uma resposta do Ministério Público, composta por 4 (quatro) páginas, onde o mesmo vem defender a decisão sumária proferida.
7º - Como tem vindo a ser defendido peio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 6º da C.E.D.H. "qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objetiva (por exemplo, pareceres do Ministério público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar..." A Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Ireneu Cabral Barreto, 2015, 5º Edição, Almedina, pág. 170.
8º - Veja-se a este propósito os Acórdãos de 20 de fevereiro de 1996, R96-I, pág. 206, Vermeulen, da mesma data, R96-I, pág. 234, Niderost-Huber, de 18 de fevereiro de 1997, citados pelo referido autor.
9º - Assim, ao ter sido junto ao processo uma resposta apresentada peio Ministério público, antes de ter sido proferido o Acórdão, estava o Tribuna! obrigado a ordenar a notificação desta resposta ao Recorrente para que o mesmo tivesse conhecimento da mesma.
10º - Acontece, porém, que os Senhores Conselheiros do TRIBUNAL CONSTITUCIONAL, entendem que tal notificação seria uma perca de tempo, motivo pelo qual tal resposta apenas foi apresentada juntamente com o Acórdão proferido.
11º - Impedindo-se, assim, o Arguido não só de tomar conhecimento do requerimento apresentado pelo Ministério público, como de responder ao mesmo.
12º - Assim, ao não ser notificado o requerimento apresentado pelo Ministério Público ao Recorrente foi omitida a prática de um ato legalmente obrigatório."
Termos em que deve o Acórdão proferido em 17 de março de 2022 ser declarado nulo, com as legais consequências, determinando-se em consequência a notificação do Recorrente da resposta apresentada peio Ministério Público em 28/02/2022.".
2º- Em 28/04/2022, os Senhores Conselheiros proferiram a seguinte decisão:
"Em face do exposto, decide-se indeferir a arguição de nulidade do Acórdão n.º 186/2022.
Custas devidas pelo requerente, fíxando-se a taxa de justiça em 10 UC's, NOS TERMOS DO ARTIGO 7o DO Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro, ponderados os critérios estabelecidos no respectivo artigo 9o."
3º- Consta do referido Acórdão a seguinte fundamentação:
"6. Constitui jurisprudência reiterada e uniforme deste Tribunal que a audição prévia do recorrente ou reclamante sobre o parecer do Ministério Público apenas se impõe caso a posição aí assumida contenha questões novas, que sejam relevantes para o sentido da decisão a proferir (v., entre outro, os Acórdão n.ºs 354/2016, 218/2016, 117/2014, 696/2013, 354/2016, 604/2017 e 442/2018).
Não é essa, todavia, a hipótese vertente.
No parecer emitido nos presentes autos, o Ministério Público iimitou-se a secundar o juízo formulado na decisão então reclamada quanto à falta de preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso, demonstrando a razão pela qual não lhe eram oponíveis os argumentos invocados pelo reclamante. Uma vez que o Ministério Público mais não fez do que tomar posição sobre as objeções formuladas na reclamação, também no presente caso «[n] ada de novo foi invocado que pudesse surpreender o reclamante ou prejudicara defesa do arguido. E sendo assim, nenhuma omissão ocorreu de um ato prescrito por lei capaz de influir no exame ou decisão da causa (Acórdão n.º 364/2013)».
Assim, não tendo o Ministério Público aduzido fundamentos novos; a circunstância de o reclamante não ter sido notificado do respetivo parecer em nada influiu na apreciação do mérito da reclamação, pelo que não se impunha a observância prévia do princípio do contraditório.
Consequentemente, não foi omitido qualquer ato que devesse ter sido praticado antes da prolação do Acórdão n.º 186/2022, não padecendo tal aresto da nulidade que lhe é apontada.
Ao contrário do que é sugerido pelo reclamante, tal entendimento não viola o direito a um processo equitativo Como pode ler-se no Acórdão n.º 696/2013:
«[NJo que diz respeito à inconstitucionalidade referida que se reporta a uma interpretação extraída do n.º 2 do artigo 77.º da LTC, no sentido de que um parecer do Ministério Público, em sede de vista de autos de reclamação, não carece de ser notificado ao reclamante, quando o mesmo não envolva a adoção de uma decisão com fundamento distinto do que consta de despacho de não admissão que foi reclamado, sempre importaria recordar a jurisprudência consolidada e constante no Tribunal Constitucional. Isto porque tem sido recorrentemente entendido que só se verifica uma violação do direito ao contraditório caso as partes processuais fiquem impossibilitadas de responder a peças processuais apresentadas pelo Ministério Público quando estas não se limitem a apreciar questões já abordadas em momentos processuais anteriores e, portanto, discutam questões novas (nesse sentido, ver, entre muitos outros, os Acórdãos n.º 185/2001; n.º 342/2009; n.º 5/2010; e n.º 68/2011, todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/).»
É quanto basta para concluir pelo indeferimento da pretensão do reclamante.”
4º- Os Senhores Juízes Conselheiros fundamentam a sua Decisão apenas com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional.
5º- Sucede que, o Recorrente quando invocou a nulidade do Acórdão n.º 186/2022, alegou o artigo 6º, sob a epigrafe "Direito a um processo equitativo" da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
6º- Ora, verte o artigo 8º, sob a epigrafe "Direito internacional" da Constituição da República Portuguesa:
1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.
2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.
3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.
4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático."(Negrito nosso).
7º- Por outro lado, nos termos do artigo 3º da Constituição da República Portuguesa:
”1. A soberania, una e indivisível, reside no povo, que a exerce segundo as formas previstas na Constituição.
2. O Estado subordina-se à Constituição e funda-se na legalidade democrática.
3. A validade das leis e dos demais atos do Estado, das regiões autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas depende da sua conformidade com a Constituição." (Negrito nosso).
8º- O artigo 8º da Constituição da República Portuguesa reconhece as normas emanadas das organizações internacionais na ordem jurídica interna e regula também a aplicabilidade das disposições dos tratados que regem a União Europeia e das normas emanadas das suas instituições.
9º- Como esclarecem JJ. Gomes Canotilho e Vital Moreira: "O n.º 1 estabelece um regime de «receção automática», das normas e princípios de direito internacional geral que assim beneficiam de uma cláusula geral de receção plena, sendo tal direito incorporado como «parte integrante do direito português», sem necessidade de observância das regras ou formas constitucionais especificas de vinculação estadual ao direito internacional (aprovação, ratificação, publicação). Basta que se trate efetivamente de regras de direito internacional e que sejam gerais e comuns.” (in "Constituição da república Portuguesa Anotada" 2007, 4o Edição revista, Coimbra Editora, pág. 254).
10º- A Convenção Europeia dos Direitos do Homem é um tratado internacional que se aplica internamente nos Estados Membros que a ratificam, regulando as relações entre os Estados Membros e as pessoas sujeitas à sua jurisdição, visando garantir- Ihes uma série de direitos e garantias fundamentais.
11º- Ou seja, as normas da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, tem aplicabilidade direta no nosso ordenamento jurídico, incluindo para as decisões do Tribunal Constitucional.
12º - Como resultou, aliás, da interpretação efetuada no mediático Acórdão proferido no âmbito do processo n.º 828/2019.
13º - Assim, considerando que tem vindo a ser defendido pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nos termos do artigo 6º da C.E.D.H. "qualquer elemento oferecido por uma entidade independente e objectiva (por exemplo, pareceres do Ministério público) deve ser comunicado às partes a quem deve ser concedida a oportunidade de sobre ele se pronunciar..." requer-se a V.Exa. que se digne esclarecer, considerando o que ficou escrito na fundamentação do referido Acórdão, se o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem ou não aplicabilidade imediata no nosso ordenamento jurídico.
É que, a não ser assim foram violados os artigos 3º e 8º da Constituição da República Portuguesa.
Sendo certo que, por dever de patrocínio, desde já se argui a Nulidade do Acórdão n.º 323/2022, por omissão de pronúncia.»
3. O Ministério Público pronunciou-se pelo desatendimento da pretensão formulada pelo reclamante nos termos que se seguem:
«1.º
Pela douto Acórdão n.º 186/2022, foi indeferida a reclamação para a conferência apresentada por A., nos termos do disposto no n.º 3, do artigo 78.º-A da LTC, incidente sobre a Decisão Sumária n.º 126/2022, proferida pela Exm.ª Sr.ª Conselheira relatora, em 10 de Fevereiro de 2022, que decidiu não conhecer do objeto dos dois recursos interpostos pelo ora requerente.
2.º
Entendeu-se naquele douto aresto, confirmando a decisão prolatada pela Exm.ª Sr.ª Conselheira relatora, que se verificava a inutilidade do recurso interposto do Acórdão de 2 de Dezembro de 2021 e, concomitantemente, a inidoneidade do objeto e a inutilidade da sua apreciação, no que concerne ao recurso interposto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 13 de Dezembro de 2021, pressupostos cuja omissão se revelava insuprível.
3.º
De tal aresto, veio o reclamante arguir a nulidade, reafirmando a tese expendida sobre a substância das suas anteriores intervenções processuais, requerimento sobre a qual recaiu o douto Acórdão n.º 323/2022 - que indeferiu a arguição de nulidade do mencionado Acórdão n.º 186/2022 – do qual, uma vez mais, invoca o recorrente a nulidade.
4.º
Culminando a sua arguição de nulidade, requer o arguido aos decisores “que se digne[m] esclarecer, considerando o que ficou escrito na fundamentação do referido Acórdão, se o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem ou não aplicabilidade imediata no nosso ordenamento jurídico”, acabando por arguir a nulidade do Acórdão n.º 323/2022 por omissão de pronúncia.
5.º
Ora, resulta com evidência do requerido, que o pedido formulado pelo arguido extravasa a competência do Tribunal Constitucional, na qual não se compreende a dimensão consultiva nem o papel de conselheiro das partes processuais, não lhe cabendo a incumbência de responder, em sede de fiscalização concreta da constitucionalidade, a questões que, abstrata e genericamente, lhe sejam colocadas.
6.º
Na verdade, a questão suscitada pelo requerente é estranha ao objeto do recurso interposto, bem como ao dos incidentes pós-decisórios suscitados, razão pela qual não deverá a pretensão manifestada merecer provimento.
7.º
Acresce, ainda, que o comportamento processual do, ora, requerente e a argumentação aduzida, estranha, como apontámos, ao objeto das decisões contestadas e insuscetível de produzir os efeitos jurídico-processuais pretendidos, procura, evidentemente, impedir a baixa do processo e, por essa via, obstar ao trânsito em julgado da decisão impugnada.
8.º
Perante tal constatação, afigura-se-nos, não só, que o requerido não deverá, em nosso entender, ser deferido como, atento o comportamento processual supra-descrito, dele deverá o Tribunal Constitucional retirar as necessárias ilações.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
4. No âmbito dos presentes autos foi proferida a Decisão Sumária n.º 126/2022, através da qual se decidiu, ao abrigo do disposto no artigo 78.º-A, n.º 1, da LTC, não tomar conhecimento do objeto do recurso de constitucionalidade interposto pelo recorrente.
Tendo o recorrente reclamado de tal decisão, a mesma veio a ser confirmada pela conferência, através do Acórdão n.º 186/2022.
Novamente inconformado, o reclamante veio arguir a respetiva nulidade, pretensão que viu indeferida através do Acórdão n.º 323/2022.
Notificado deste Acórdão, o reclamante invocou a sua nulidade por omissão de pronúncia, vício cuja sanação considera impor-se através da seguinte clarificação: «considerando o que ficou escrito na fundamentação do referido Acórdão», deverá esclarecer-se «se o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem tem ou não aplicabilidade imediata no nosso ordenamento jurídico», já que, «a não ser assim foram violados os artigos 3º e 8º da Constituição da República Portuguesa».
O reclamante dá assim início a um segundo incidente pós-decisório, solicitando esclarecimentos jurídicos sobre a aplicabilidade de norma da Convenção Europeia dos Direitos do Homem a propósito de questão – violação do direito a um processo equitativo – que foi apreciada de forma expressa no Acórdão n.º 323/2022. Aresto que, julgando improcedente a nulidade imputada ao Acórdão n.º 186/2022, considerou não ter sido violado o direito do reclamante a um processo equitativo pelo facto de o parecer emitido pelo Ministério Público, que se limitou a secundar o juízo formulado na decisão então reclamada quanto à falta de preenchimento dos pressupostos de admissibilidade do recurso, não lhe ter sido previamente notificado.
Tratando-se da dedução de um incidente pós-decisório manifestamente infundado, o Tribunal deve obstar a que a respetiva apreciação conduza ao protelamento indevido do trânsito em julgado do Acórdão n.º 569/2021 e consequente baixa do processo, nos termos previstos no artigo 84.º, n.º 8, da LTC.
Assim, tendo em conta a conduta processual do reclamante, que consistiu na utilização de um expediente processual anómalo para forçar uma nova pronúncia do Tribunal, determinar-se-á a extração de traslado e a consequente remessa imediata dos autos ao tribunal recorrido, considerando-se transitado em julgado nesta data o Acórdão n.º 186/2022 (cf. artigos 84.º, n.º 8, da LTC, e 670.º, n.ºs 3 e 5, do CPC).
Qualquer decisão a proferir futuramente no traslado apenas o será depois de contadas as custas e de se mostrar efetuado o respetivo pagamento pelo reclamante (cf. artigos 84.º, n.º 8, da LTC e 670.º, n.º 4, do CPC).
III – Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Considerar transitado em julgado, na presente data, o Acórdão n.º 186/2022;
b) Ordenar que seja extraído traslado do presente processo a partir de fls. 3, bem como do presente acórdão; e
c) Determinar que, após contadas as custas e extraído o traslado, se remetam os autos, de imediato, ao tribunal recorrido, para ali prosseguirem os seus termos.
Lisboa, 9 de junho de 2022 - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - João Pedro Caupers