ACÓRDÃO Nº 440/2022
Processo n.º 425/22
3.ª Secção
Relator: Lino Rodrigues Ribeiro
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Guimarães, em que é recorrente A. e recorrido o Ministério Público, o primeiro veio interpor recurso de constitucionalidade, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro (LTC).
Depois de várias vicissitudes processuais, o ora recorrente foi condenado na 1.ª instância numa pena de multa 150 (cento e cinquenta) dias à razão diária de € 6 (seis), perfazendo um total de € 900 (novecentos), pela prática de um crime de burla, p. e p. pelo disposto no artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal, bem como no pagamento de uma indemnização civil no valor de € 1.902 (mil novecentos e dois).
Interpôs recurso para o Tribunal da Relação, que, por acórdão datado de 10 de janeiro de 2022, declarou extinto o procedimento criminal e confirmou a sentença recorrida na parte relativa à indemnização civil.
Requereu então a reforma e a aclaração desse acórdão, requerimento que foi julgado totalmente improcedente pelo mesmo Tribunal da Relação, por acórdão datado de 21 de março de 2022.
2. O recorrente vem então interpor recurso de constitucionalidade, nos seguintes termos:
«A., melhor identificado nos termos do processo em título em que é Recorrente,
vem, pelo presente e perante V. Exa., aduzir do Acórdão promanado de 10/1/2022 aclarado pelo Acórdão de 21/3/2022),
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
A decisão recorrida é agora irrecorrível em termos ordinários;
Donde, não mais resta do que ao aqui Recorrente interpor da mesma RECURSO para o Tribunal Constitucional ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei Constitucional e com fundamento na inconstitucionalidade da:
a) interpretação do artigo 412.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPP, no sentido de ser considerado incumprimento do ónus de impugnação especificada em razão de nas conclusões o Recorrente apenas remeter para os suportes técnicos e para a totalidade das declarações prestadas, sem os concretos e precisos locais da gravação apesar destes estarem indicados no corpo das alegações e transcritos, por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade;
b) interpretação do artigo 412.º do CPP por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade, no sentido de não cumprir o ónus de impugnação especificada o Recorrente que, nas suas alegações, transcreve os trechos dos depoimentos gravados por referência aos tempos dos mesmos, apesar de não os indicar nas Conclusões;
c) interpretação normativa do artigo 412.º do CPP, que importa a decisão de incumprimento dos ónus que nele se preveem, sem que ao Recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detetado, por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade;
d) interpretação normativa do artigo 412.º do CPP no sentido que não se tem cumprido o ónus de impugnação especificada em razão de nas conclusões, o Recorrente apenas remeter para os suportes técnicos e para a totalidade das declarações prestadas, sem os concretos e precisos locais da gravação apesar destes estarem indicados no corpo das alegações e sem que seja proferido despacho de aperfeiçoamento, por violação os princípios da proporcionalidade, defesa e equidade;
Estas interpretações são, aliás, confessadas pela decisão aclaradora de 21/3/2022;
Em não se considerando estas interpretações inconstitucionais, fere-se o núcleo essencial do direito ao recurso enquanto garantia de defesa e equidade em processo criminal, consagrado nos artigos 32.º n.º 1 e 20.º, n.º 4 da Constituição conjugado com o artigo 18.º, n.º 2 desta lei fundamental, porquanto se nega ao Recorrente a plena apreciação dos fundamentos que o mesmo legitimamente carreou para a instância de recurso, numa interpretação desproporcionada.
Na verdade, para além de não ter havido qualquer convite ao aperfeiçoamento, o Recorrente indicou os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e as provas que devem ser renovadas, mais tendo indicado nas conclusões os depoimentos por referência aos registos gravados e, ao longo do corpo das alegações, as concretas passagens da prova gravada em audiência de julgamento em que funda a sua impugnação e acrescentou, adicionalmente, a sua transcrição.
Inconstitucionalidade invocada na peça processual de Esclarecimento/Reclamação.»
3. Através da Decisão Sumária n.º 339/2022, foi decidido não conhecer o objeto desse recurso, com base na ausência de suscitação prévia das questões de constitucionalidade e, de todo o modo, com base no princípio da instrumentalidade dos recursos de fiscalização concreta, por se ter entendido que um eventual juízo de inconstitucionalidade não se poderia projetar sobre a solução a dar ao caso, uma vez que a decisão recorrida assentou numa suficiente fundamentação alternativa que sempre ditaria o mesmo sentido decisório.
Foi a seguinte a fundamentação apresentada:
«4. No requerimento de interposição de recurso, indica-se que o mesmo vem interposto «do Acórdão promanado de 10/1/2022 aclarado pelo Acórdão de 21/3/2022». Admitindo que a decisão recorrida seria o primeiro de tais acórdãos, prontamente se concluiria pela impossibilidade de conhecer o objeto do presente recurso, desde logo porque as questões de constitucionalidade dele constantes não foram suscitadas previamente à prolação desse acórdão, mas apenas – como de resto se nota no próprio requerimento de interposição de recurso – «na peça processual de Esclarecimento/Reclamação». Isso significa, em face o disposto no artigo 72.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, da LTC, que o recorrente careceria de legitimidade para interpor recurso dessa decisão para este Tribunal Constitucional.
5. De facto, as questões de constitucionalidade aqui em causa apenas foram colocadas ao tribunal recorrido no requerimento que está na origem da prolação do acórdão de 21 de março e apenas neste acórdão foram consideradas.
Apesar disso, o objeto do recurso não pode ser conhecido. Esse objeto – recorde-se – é integrado pelas seguintes questões:
«a) interpretação do artigo 412.º, n.ºs 2, 3 e 4 do CPP, no sentido de ser considerado incumprimento do ónus de impugnação especificada em razão de nas conclusões o Recorrente apenas remeter para os suportes técnicos e para a totalidade das declarações prestadas, sem os concretos e precisos locais da gravação apesar destes estarem indicados no corpo das alegações e transcritos, por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade;
b) interpretação do artigo 412.º do CPP por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade, no sentido de não cumprir o ónus de impugnação especificada o Recorrente que, nas suas alegações, transcreve os trechos dos depoimentos gravados por referência aos tempos dos mesmos, apesar de não os indicar nas Conclusões;
c) interpretação normativa do artigo 412.º do CPP, que importa a decisão de incumprimento dos ónus que nele se preveem, sem que ao Recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detetado, por violação dos princípios da proporcionalidade, defesa e equidade;
d) interpretação normativa do artigo 412.º do CPP no sentido que não se tem cumprido o ónus de impugnação especificada em razão de nas conclusões, o Recorrente apenas remeter para os suportes técnicos e para a totalidade das declarações prestadas, sem os concretos e precisos locais da gravação apesar destes estarem indicados no corpo das alegações e sem que seja proferido despacho de aperfeiçoamento, por violação os princípios da proporcionalidade, defesa e equidade»
Ora, para além de nem todas as questões apresentadas revestirem o necessário caráter normativo, referindo-se antes ao concreto exercício subsuntivo realizado pelo tribunal a quo, que não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional, uma circunstância se verifica que obsta ao conhecimento de todas elas, e que se relaciona com o princípio da instrumentalidade dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: no caso em apreço, uma eventual pronúncia por parte do Tribunal Constitucional não poderia repercutir-se sobre a decisão recorrida em termos de impor a sua reforma.
Esta condição constitui uma decorrência do caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade conforme concebidos no nosso ordenamento jurídico: embora tais recursos se restrinjam à questão da invalidade de uma norma, a decisão que no seu âmbito for proferida não pode deixar de ter efeitos sobre a decisão recorrida, sob pena de não apresentar a referida instrumentalidade. Ora, um eventual juízo de inconstitucionalidade só pode repercutir-se na solução a dar a um caso se, para além de haver coincidência entre o enunciado normativo cuja inconstitucionalidade o recorrente invoca e a ratio decidendi da decisão recorrida, esta decisão não tenha assentado numa suficiente fundamentação alternativa. Ou seja, quando, apesar de ter sido aplicada pelo tribunal recorrido a norma que o recorrente reputa de inconstitucional, esse tribunal tenha concomitantemente aplicado outra norma que, autónoma e necessariamente, conduziria a uma decisão com o mesmo sentido. De facto, também neste caso o conhecimento do objeto do recurso por parte do Tribunal Constitucional não assumirá qualquer utilidade, por ser insuscetível de conduzir a uma modificação da decisão recorrida. É o que ocorre nos presentes autos.
Como já se sugeriu, o tribunal a quo de facto abordou as inconstitucionalidades invocadas pelo recorrente. Porém, acolheu concomitantemente um entendimento que sempre levaria ao mesmo resultado de indeferimento da pretensão apresentada pelo recorrente. Senão atente-se na seguinte passagem da decisão recorrida:
«(...)
O requerente considera, também, que o acórdão objeto do presente pedido de reforma / aclaração é obscuro na parte em que, chamado a pronunciar-se sobre o julgamento da matéria de facto, afirma, por um lado, que não foi cumprido o ónus de alegação previsto no artigo 412° n°s 3 e 4 do Código de Processo Penal, para depois, se pronunciar sobre aspetos da matéria de facto, voltando, contudo, a fazê-lo de forma insuficiente "nada se depreende que tenha apurado, analisado e ponderado", afirma.
Conhecendo.
O reclamante coloca, nesta parte, em crise, o acórdão (se bem percebemos) em duas vertentes:
a) - Por um lado, caberá esclarecer por que razão o Tribunal acabou por se pronunciar sobre a decisão de facto, se considerou que o recorrente não cumpriu o disposto no artigo 412° n°s 3 e 4 do Código de Processo Penal, sendo certo que, deveria, de acordo com o disposto no n°3 do artigo 417° do mesmo código, convidar o recorrente a completar as conclusões, tanto mais que esse convite foi feito para que o recorrente corrigisse as conclusões no sentido de estas não serem mera repetição das alegações. Não o tendo feito, ocorre nulidade nos termos do disposto no artigo 195° n°l do Código de Processo Civil e 417° n°3 do Código de Processo Penal.
b) - Por outro lado, a interpretação que o Tribunal fez do artigo 412° do Código de Processo Penal, tanto na vertente de considerar não cumprido o ónus de impugnação, como na vertente de não ter procedido ao convite para aperfeiçoamento das conclusões é inconstitucional, por violar os princípios da proporcionalidade, da defesa e da equidade.
Efetivamente, considerou-se no acórdão em crise que o recorrente não cumpriu o ónus de incluir nas conclusões do recurso, e no que à impugnação do juízo sobre a matéria de facto concerne, as concretas provas que impunham decisão diferente, fazendo-o por remessa para as concretas passagens da respetiva gravação.
Quanto a este aspeto, não há dúvidas que assim é, mesmo quando é feita referência apenas ao início e fim das gravações de depoimentos, como pensamos que o que vem referido no acórdão esclarece, sendo também citada jurisprudência variada que suporta esse entendimento - Cfr. ponto 3.1.4., parágrafos 1º a 20°.
É este o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência, não importando esta interpretação do artigo 412° do Código de Processo Penal, qualquer inconstitucionalidade por violação dos princípios da defesa, da equidade e da proporcionalidade, muito embora o requerente não especifique, em que medida se mostrariam violados tais princípios e as concretas normas constitucionais que estariam em causa, bem como, em que medida a interpretação que aponta os viola, o que também constitui seu ónus quando se trata de matéria de direito como é a invocação de inconstitucionalidades.
O requerente diz não compreender porque é que, se o Tribunal considerou incumprido tal ónus, veio a conhecer das questões colocadas sobre a matéria de facto.
Um posicionamento mais formal e alheio à necessidade de dar expressão ao princípio da celeridade processual, legitimaria, talvez, outro tipo de decisão, mas não foi assim que o Tribunal entendeu abordar a questão.
O Tribunal, apesar de reconhecer a existência de motivo para não conhecer da matéria de facto, verificando que o recorrente tinha procedido à indicação das concretas passagens, transcrevendo-as (o que não é exigível) em sede de alegações, não quis deixar de se pronunciar sobre essa matéria, tanto mais que, como assinala o requerente, e bem, não havia sido convidado a completar as conclusões nesta vertente. Pretendeu, assim, o Tribunal decidir a questão, sem mais delongas (evitando que os autos se continuem a arrastar no tempo), tendo em conta o princípio da celeridade processual, a merecer especial atenção no que aos presentes autos concerne, atentas as vicissitudes por que têm passado.
Assim, o Tribunal acabou por apreciar as questões colocadas no acórdão, à luz daquilo que também é entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência e que é que: "A decisão objeto de apreciação apenas será de alterar se for evidente que as provas produzidas e tidas em conta pelo tribunal não podiam conduzir a essa decisão ou, dito de outro modo, quando os elementos de prova imponham uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão. Fê-lo e concluiu que "não existe erro de julgamento, não se alterando a matéria de facto provada e não provada constante da sentença em recurso".
Na verdade, o Tribunal produziu um juízo sobre cada um dos pontos da matéria de facto que o recorrente considerava incorretamente julgados, sendo certo que, por considerar que o recorrente apenas faz uma interpretação de depoimentos e declarações diferente da que foi levada a cabo pelo Tribunal a quo, mas que não estava demonstrado que impusessem uma decisão diferente, decidiu, em conformidade com o que acima se referiu, não alterar a matéria de facto em causa - [Cfr. ponto 3.1.4., parágrafos 21° a 48°].
Mais, porque não resultava claro, quer das alegações, quer das conclusões do recurso, se a impugnação era feita ao abrigo do disposto no artigo 412° ou do artigo 410° n° 2 alínea c) do Código de Processo Penal, o Tribunal (por ser vício de conhecimento oficioso) não deixou de apreciar a decisão sobre a matéria de facto à luz deste último preceito, concluindo não existir qualquer erro notório na apreciação da matéria de facto [Cfr. ponto 3.1.4., parágrafos 49° a 61°].
Invoca o requerente que, por não ter o Tribunal proferido despacho de aperfeiçoamento das conclusões, violou o seu dever de cooperação, o que se traduz em irregularidade, a qual importa nulidade nos termos do disposto nos artigos 195° n°l do Código de Processo Civil e 417° n°3 do código de Processo Penal.
O Código de Processo Penal estabelece o regime de nulidades e irregularidades em processo penal nos seus artigos 118° a 123°, não se estabelecendo, nessa matéria, como noutras, que se aplica subsidiariamente o Código de Processo Civil. Por outro lado, não ocorre lacuna, nem o reclamante a identifica, que, nos termos do disposto no artigo 4º do mesmo código, convoque a aplicação das normas do Processo Civil.
Assim, não se compreende, nem pode proceder a invocada nulidade, decorrente do disposto no artigo 195° n° l do Código de Processo Civil.
Atento tudo o exposto e na convicção de ter esclarecido todos os pontos que o requerente considera não serem claros, julgam-se improcedentes as arguidas nulidades e inverificadas as invocadas inconstitucionalidades.»
Ou seja, independentemente das interpretações normativas aplicadas pelo tribunal a quo e que o conduziram às conclusões de que o ónus de impugnação não fora cumprido e de que não se impunha convite ao aperfeiçoamento das conclusões, a pretensão do recorrente nunca poderia proceder, uma vez que, apesar disso, a decisão cuja reforma / aclaração se apreciava na decisão recorrida se pronunciou, ainda assim, «sobre cada um dos pontos da matéria de facto que o recorrente considerava incorretamente julgados, sendo certo que, por considerar que o recorrente apenas faz uma interpretação de depoimentos e declarações diferente da que foi levada a cabo pelo Tribunal a quo, mas que não estava demonstrado que impusessem uma decisão diferente, decidiu, em conformidade com o que acima se referiu, não alterar a matéria de facto em causa». Assim, nenhuma das questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente no recurso de constitucionalidade poderia conduzir a uma modificação da decisão recorrida, em virtude destas distintas e autónomas razões na mesma consignadas.»
4. Inconformado, o recorrente vem agora reclamar para a conferência, o que faz nos seguintes termos:
«(...)
1 - Diz-se na decisão reclamada que inexistiria legitimidade que levaria ao não conhecimento do objeto do recurso;
2 - Isto em razão das questões de inconstitucionalidade não terem sido suscita[da]s previamente à prolação do Acórdão de 10/1/2022;
3 - É, de facto, verdade que assim sucedeu, mas não poderia ter a consequência que se aventa;
4 - Pela simples razão que não seria exigível ao Recorrente um tal juízo de prognose aquando do seu recurso e que antecedeu aquela decisão;
5 - A questão de constitucionalidade apenas surge e é cognoscível aquando da prolação daquela, pelo que apenas em sede de Esclarecimento/Reclamação ou até mesmo no próprio recurso para este Tribunal é que se imporia a invocação.
Da repercussão de uma futura decisão:
6 - É certo que a decisão do Tribunal recorrido se pronuncia sobre matéria de facto, mas não nos termos que o faria (e deveria fazer) se assumisse como cumprido pelo Recorrente o ónus da impugnação especificada;
7 - Uma coisa é produzir um juízo sobre cada um dos pontos da matéria de facto assinalados como incorretamente julgados;
8 - Outra bem diferente é fazê-lo à luz de cada uma das provas tidas pelo Recorrente como impondo uma decisão diversa, mormente através dos trechos dos depoimentos gravados e indicados;
9 - Crer-se que o Tribunal a quo o fez apenas por dizer que analisou a matéria de facto, quando o mesmo diz não ter o Recorrente cumprido o seu dever processual, é aceitar-se uma contradição própria da decisão;
10 - A qual não faria sentido, designadamente de quem chamou à colação até o princípio da celeridade;
11 - Na verdade, o Tribunal a quo refere ter apreciado as questões suscitadas, mas em momento algum se logra apreender que o tenha feito nas provas e gravações concretizadas e apresentadas;
12 - Por essa razão não se refere a qualquer prova, parte de transcrição ou concretiza a ponderação e crítica que lhe impôs a rejeição do alegado pelo Recorrente, limitando-se juízos gerais e referências à decisão que aí estava em recurso;
13 - A título de exemplo quanto à matéria de facto reportada ao preço de venda o Tribunal a quo não apresenta - porque afastou face a análise das provas concretas apresentadas - como supera as contradições apontadas, mormente entre uma testemunha com as declarações prestadas em inquérito;
14 - O Tribunal a quo limita-se a falar em credibilidade e a apontar partes da Sentença sem, porém, ter alguma vez descido aos pontos especificados e provas apresentadas, bem assim as contradições apontadas concretas;
15 - Exatamente porque entendeu que o Recorrente as não impugnou nos termos que considera;
16 - Doutra forma o Tribunal não se debruçou sobre os concretos pontos de facto e das passagens de gravações que se indicou como caucionando a impugnação decisória;
17 - Na verdade, o Acórdão embora se pronunciando sobre algumas questões, fá-lo sem concretizar e reproduzindo excertos apenas da Sentença, mormente nada se depreende que tenha apurado, analisado e ponderado, por contraponto à prova gravada e aos pontos concretos desta, que foram transcritos e se indicou sempre o momento do trecho inicial daqueles.
NESTES TERMOS,
Deve considerar-se procedente a presente "Reclamação", conhecendo-se do objeto do recurso interposto, assim se fazendo inteira
JUSTIÇA!»
5. O Ministério Público pronuncia-se pelo indeferimento da reclamação, o que faz nos seguintes termos:
«(...)
1.º
Pela Decisão Sumária n.º 339/2021, não se conheceu do objeto do recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A., ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro.
2.º
Consignou-se nessa Decisão Sumária, além do mais, o seguinte:
“(…) Ora, para além de nem todas as questões apresentadas revestirem o necessário caráter normativo, referindo-se antes ao concreto exercício subsuntivo realizado pelo tribunal a quo, que não pode ser sindicado pelo Tribunal Constitucional, uma circunstância se verifica que obsta ao conhecimento de todas elas, e que se relaciona com o princípio da instrumentalidade dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade: no caso em apreço, uma eventual pronúncia por parte do Tribunal Constitucional não poderia repercutir-se sobre a decisão recorrida em termos de impor a sua reforma.
Esta condição constitui uma decorrência do caráter instrumental dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade conforme concebidos no nosso ordenamento jurídico: embora tais recursos se restrinjam à questão da invalidade de uma norma, a decisão que no seu âmbito for proferida não pode deixar de ter efeitos sobre a decisão recorrida, sob pena de não apresentar a referida instrumentalidade. Ora, um eventual juízo de inconstitucionalidade só pode repercutir-se na solução a dar a um caso se, para além de haver coincidência entre o enunciado normativo cuja inconstitucionalidade o recorrente invoca e a ratio decidendi da decisão recorrida, esta decisão não tenha assentado numa suficiente fundamentação alternativa. Ou seja, quando, apesar de ter sido aplicada pelo tribunal recorrido a norma que o recorrente reputa de inconstitucional, esse tribunal tenha concomitantemente aplicado outra norma que, autónoma e necessariamente, conduziria a uma decisão com o mesmo sentido. De facto, também neste caso o conhecimento do objeto do recurso por parte do Tribunal Constitucional não assumirá qualquer utilidade, por ser insuscetível de conduzir a uma modificação da decisão recorrida. É o que ocorre nos presentes autos.”
3.º
Na sua reclamação de fls. 1127 a 1128, o recorrente - ora reclamante - impugna essa douta decisão, argumentando, por um lado, que lhe não seria «exigível (…) um tal juízo de prognose aquando do seu recurso» e isto apesar das «questões de constitucionalidade não terem sido suscitadas previamente à prolação do Acórdão [recorrido] de 10/1/2022»,
4.º
E, por outro lado, que o Tribunal a quo «se pronuncia sobre matéria de facto mas não nos termos que o faria (e deveria fazer) se assumisse como cumprido pelo Recorrente o ónus da impugnação especificada».
5.º
Todavia, e como bem se refere na reclamada decisão, «(…) independentemente das interpretações normativas aplicadas pelo tribunal a quo e que o conduziram às conclusões de que o ónus de impugnação não fora cumprido e de que não se impunha convite ao aperfeiçoamento das conclusões, a pretensão do recorrente nunca poderia proceder, uma vez que, apesar disso, a decisão cuja reforma/aclaração se apreciava na decisão recorrida se pronunciou, ainda assim, «sobre cada um dos pontos da matéria de facto que o recorrente considerava incorretamente julgados, sendo certo que, por considerar que o recorrente apenas faz uma interpretação de depoimentos e declarações diferente da que foi levada a cabo pelo Tribunal a quo, mas que não estava demonstrado que impusessem uma decisão diferente, decidiu, em conformidade com o que acima se referiu, não alterar a matéria de facto em causa». Assim, nenhuma das questões de constitucionalidade colocadas pelo recorrente no recurso de constitucionalidade poderia conduzir a uma modificação da decisão recorrida, em virtude destas distintas e autónomas razões na mesma consignadas.».
6.º
Ora, considerando o decidido pelo Tribunal a quo e atentos os doutos fundamentos – que se acompanham - da douta Decisão Sumária agora impugnada, não se pode senão concluir, como bem aí se fez, pela impossibilidade de conhecimento do objeto do presente recurso, precisamente porque não foram suscitadas durante o processo, de forma adequada, questões de constitucionalidade correspondentes a esse mesmo objeto do recurso, para além de as questões que foram colocadas, de qualquer modo, nunca “poderia [m]conduzir a uma modificação da decisão recorrida”.
7.º
Termos em que, por tudo o exposto e ressalvado melhor entendimento, se nos afigura, pois, ser de indeferir a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
6. O recorrente vem reclamar para a conferência da Decisão Sumária n.º 339/2022, que decidiu não conhecer o objeto do seu recurso, com base na ausência de suscitação prévia das questões de constitucionalidade perante o tribunal recorrido e, em qualquer caso, com base no princípio da instrumentalidade dos recursos de fiscalização concreta da constitucionalidade, por ter entendido que um eventual juízo de inconstitucionalidade nunca poderia repercutir-se sobre a solução a dar ao caso, visto que a decisão recorrida assentou numa suficiente fundamentação alternativa que sempre resultaria no sentido decisório aí acolhido. A reclamação, no entanto, não se mostra procedente.
7. O recorrente reconhece não ter suscitado a questão de constitucionalidade perante o tribunal recorrido antes da prolação da decisão que no seu recurso de constitucionalidade indica como constituindo a decisão recorrida, invocando que essa decisão foi surpreendente. Contudo, nem no requerimento de recurso nem agora, na reclamação em apreço, o recorrente mobiliza qualquer argumento concreto no sentido de demonstrar a objetiva imprevisibilidade da aplicação dos preceitos em causa com aquele sentido. A interpretação reiterada do Tribunal Constitucional sobre o pressuposto da suscitação prévia e adequada – que se configura como um ónus processual que a LTC faz impender sobre o recorrente – é a de que a sua observância pode ser dispensada somente em casos de imprevisibilidade objetiva, não subjetiva.
Crucial é, não que um concreto recorrente não tenha antecipado a aplicação das normas em causa na decisão a proferir, mas que não fosse possível a qualquer recorrente, em tais circunstâncias, antecipá-la. O que bem se compreende, pois de outro modo a legitimidade para recorrer para este Tribunal ficaria dependente da uma avaliação insustentavelmente subjetiva da capacidade e da diligência de cada recorrente para antecipar a aplicação de determinada norma pelo tribunal recorrido, além de que beneficiaria tanto mais um recorrente quanto menor fosse essa sua diligência.
Da configuração deste pressuposto como ónus processual decorre que é ao próprio recorrente que incumbe demostrar, v.g. por referência a jurisprudência prolatada em casos semelhantes, que não lhe era objetivamente possível antecipar tal aplicação – o que não só não aconteceu no requerimento de interposição do recurso de constitucionalidade, como continua a não acontecer na reclamação em apreço, e isto quando na decisão de 21 de março se refere que o entendimento aí acolhido corresponde ao «entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência». Isto já imporia o indeferimento da presente reclamação.
8. Acresce, porém, que também o segundo fundamento apresentado na decisão sumária não fica abalado pela reclamação em apreço: o de que uma eventual pronúncia por parte do Tribunal Constitucional não poderia repercutir-se sobre a decisão recorrida em termos de impor a sua reforma – mesmo assumindo como decisão recorrida o acórdão de 21 de março (o que só por hipótese teórica se ponderou).
Na Decisão Sumária reconheceu-se que o tribunal a quo abordou efetivamente as questões colocadas pelo recorrente, mas notou-se que, do mesmo passo, acolheu um entendimento que sempre levaria ao mesmo resultado. A decisão em causa não poderia ser mais clara a esse respeito, ao afirmar que, apesar de o acórdão cuja reforma aí se pedia ter de facto considerado «que o recorrente não cumpriu o ónus de incluir nas conclusões do recurso, e no que à impugnação do juízo sobre a matéria de facto concerne, as concretas provas que impunham decisão diferente, fazendo-o por remessa para as concretas passagens da respetiva gravação» (e de reafirmar o acerto deste entendimento), ainda assim «não quis deixar de se pronunciar sobre essa matéria», ao invés de adotar um «posicionamento mais formal».
Na reclamação em apreço o recorrente argumenta que: «É certo que a decisão do Tribunal recorrido se pronuncia sobre matéria de facto, mas não nos termos que o faria (e deveria fazer) se assumisse como cumprido pelo Recorrente o ónus da impugnação especificada». Mas aqui emerge aqui um outro problema, também já aludido na Decisão Sumária, qual seja o de que passaria então a discutir-se o próprio exercício subsuntivo, infraconstitucional, empreendido pelo tribunal a quo, o que este Tribunal Constitucional não tem competência para fazer. Ademais, neste caso, de um modo especulativo, quando o que decorre do texto da decisão recorrida é que a pretensão do recorrente seria, no entender desse tribunal, inevitavelmente improcedente.
Por estas razões, a presente reclamação não pode ser deferida.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 9 de junho de 2022 - Lino Rodrigues Ribeiro
Atesto o voto de conformidade do Conselheiro Presidente João Pedro Caupers e do Conselheiro Afonso Patrão.
Lino Rodrigues Ribeiro