ACÓRDÃO Nº 448/2022
Processo n.º 541/2022
2.ª Secção
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam, em Conferência, na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional
I – Relatório
1. Nos presentes autos, vindos do Supremo Tribunal de Justiça, A. e outros apresentaram reclamação, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da Lei da Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, adiante designada por LTC), da decisão proferida naquele tribunal que, em 24 de março de 2022, não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional.
No âmbito do processo a quo, o Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão proferido em 27 de janeiro de 2022, julgou improcedente o recurso de revista interposto pelos ora reclamantes, confirmando a decisão anterior do Tribunal da Relação do Porto, que se havia pronunciado pela impossibilidade de proceder à execução-específica do contrato promessa celebrado pelos recorrentes, na qualidade de promitentes compradores.
Na sequência deste aresto, interpuseram recurso para o Tribunal Constitucional, «ao abrigo do disposto no artº 70 , 70 n° 1 b), f) e sgts da Lei Orgânica Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional Lei 28/82 de 15 de Novembro» ulteriormente objeto de convite para aperfeiçoamento (artigo 75.º-A, n.º 5, da LTC), delimitando a respetiva pretensão por referência às seguintes disposições, conforme assinalado pelo tribunal recorrido (fls. 63):
«(…)
a) - as constantes dos artigos 671.° e 672.° do Código de Processo Civil.
b) - a interpretação do disposto no artigo 615.°, n.° 1, b), c) e d), no sentido do acórdão proferido se bastar com a conformação das decisões colocadas em crise nos recursos.
c) - a interpretação do artigo 442.°, n° 3, do Código Civil, ex vi artigo 755.°, n° 3, do mesmo diploma legal, no sentido em que considera prejudicado o direito de retenção do promitente comprador, quando não exista ainda propriedade horizontal constituída.
d) - a interpretação feita no acórdão recorrido dos artigos 238.°, 342.°, 410.°, 754.°, 755.°, 801.° 804.°, 810.°, 830.°, 1416.°, 1417.°, 1418.°, do Código Civil; do disposto nos artigos 4.°, 6.°, 7.°, 8.°, 410.°, 411.°, 417.°, 429.°, 436.°, 466.°, 467.°, 490.°, 495.°, 547.°, 595.°, 607.° e 608° do Código de Processo Civil; e do disposto nos artigos 4.°, 54.°, 57.°e 58.° do Código do Notariado».
2. Por decisão de 24 de março de 2022, o Supremo Tribunal de Justiça não admitiu o referido recurso para o Tribunal Constitucional, apresentando a seguinte fundamentação (fls. 62-64):
«(…)
É um dos pressupostos de admissibilidade do recurso para o Tribunal Constitucional, na modalidade prevista no artigo 70.°, n.° 1, b), da Lei do Tribunal Constitucional, atenta a natureza instrumental deste recurso de constitucionalidade, que as normas cuja constitucionalidade é arguida tenham sido ratio decidendi do aresto recorrido, devendo o Recorrente enunciar qual a interpretação adotada pelo tribunal recorrido, cuja constitucionalidade pretende ver apreciada, quando as normas impugnadas tenham um cunho interpretativo.
Quanto à interpretação da panóplia de disposições legais referidas sob a alínea d), os Recorrentes, apesar de terem sido convidados a explicitar a interpretação cuja constitucionalidade pretendiam ver apreciada voltaram a não o fazer no requerimento de correção que apresentaram, tendo-se limitado a alegar as razões da invocada inconstitucionalidade, mas sem indicarem qual era o conteúdo da interpretação sustentada pela decisão recorrida cuja inconstitucionalidade pretendiam ver fiscalizada.
Acresce que nenhuma das agora invocadas inconstitucionalidades normativas foi suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça, tendo os Recorrentes, nas alegações de recurso dirigidas a este Tribunal se limitado a afirmar que as decisões recorridas violaram o disposto nos artigos 13.°, 20.° e 205.° da Constituição, imputando o vício da inconstitucionalidade às próprias decisões e não a quaisquer normas.
Não reunindo o recurso interposto para o Tribunal Constitucional os pressupostos necessários ao seu conhecimento, não pode o mesmo ser admitido, nos termos do artigo 76.°, n.° 1 e 2, da Lei do Tribunal Constitucional».
3. Perante esta decisão, os recorrentes reclamaram para o Tribunal Constitucional, nos termos do n.º 4 do artigo 76.º da LTC. Para fundamentar a reclamação deduzida, sustentaram, em síntese (fls. 2-5):
«(…)
4 - O que pretendem os Reclamantes do Tribunal Constitucional, com o recurso, é a análise das questões de constitucionalidade apresentadas no petitório que lhe foi dirigido.
5 - Fundamentaram tal petitório, invocaram as normas substantivas e adjectivas com base nas quais foram proferidas as decisões recorridas e que se mostraram (a seu modesto ver) em desconformidade com a Constituição da República Portuguesa.
6 - Com o devido e merecido respeito , não se pode aceitar, e dai esta reclamação, que o recurso interposto, não reúna os pressupostos necessários nos termos do artº 76 n° 1 e 2, da LCT porquanto
7- Não é o recurso interposto para o Tribunal Constitucional "manifestamente infundado", muito pelo contrário...e
(…)
15 - Salvo douta e melhor opinião, em momento algum dos autos se quis dizer, ou se teve consciência de ter dito que as decisões violaram artigos da constituição no sentido que é referido naquele despacho que agora se reclama.
16 - Com o devido respeito, este é um argumento "falacioso" e "obnubilador" da verdadeira intenção do recurso interposto classificado indevidamente pelo despacho agora reclamado como não sendo um "modelo de clareza"...
17 - Salvo o devido respeito os reclamantes naquele recurso sempre que falam em inconformidades constitucionais referem-se a normas substantivas ou adjectivas de diplomas legais que não a Lei Constitucional propriamente dita, embora também digam, em sua modesta opinião, onde é que essas normas substantivas ou adjectivas estão desconformes com preceitos constitucionais, mormente o disposto no artº 13°, 20º, 65º, 202º, 204º, 205°, da CRP querendo referir-se, não à desconformidade dos artigos constitucionais propriamente ditos, mas à desconformidades dos preceitos substantivos e adjectivos invocados com esse normativo constitucional vertido nesses artigos da Constituição...
18 - É o caso por exemplo dos artº 671° e 672° do Código de Processo Civil por si só e conjugados com o artº 615 n° 1 b) c) e d) do mesmo diploma legal. Mas as questões de inconstitucionalidade não se subsumem só a isso ou apenas a isso...mas antes conjugadas e concatenadas, pois estão todas numa relação interactiva e conjugada...
19 - E todas elas resultantes, dimanadas e/ou inerentes do acórdão recorrido - ratio decidendi do aresto recorrido - do Supremo Tribunal de Justiça...
20 - E mais resulta das conclusões apresentadas expressamente no item XI que:" Em todas as instâncias judiciais e de recurso nestes autos-Tribunal da Comarca do Porto-Póvoa de Varzim, Tribunal da Relação do Porto e Supremo Tribunal de Justiça invocaram expressamente os recorrentes (aqui reclamantes) as inconstitucionalidades aqui postas em crise.
21 - Assim se equacionou, expôs e se requereu a sindicância constitucional de cada uma das normas e de todo o interpretativo normativo e de tudo o mais que no âmbito dos Poderes Constitucionais possa o Tribunal Constitucional conhecer.
22 - Não estão os reclamantes a usar o "recurso constitucional" para aferir a constitucionalidade das decisões judiciais tecnicamente conhecido como "recurso de amparo" (que o sistema constitucional português não subscreve)... O que importa aos reclamantes é a sindicância constitucional das normas aplicadas e invocadas.
23 - Porque se entende pertinente importa aqui evidenciar o entendimento da Formação do Tribunal de onde se recorre STJ (referência nos autos n° 1052886) relativamente ao disposto no art.º 672 n° 1 do CPC: " Quando se trate de questão manifestamente complexa de difícil resolução...//..se justificar a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça para evitar polissemias interpretativas." "Igualmente se entende...//... de particular relevância social questões com repercussão com valores sócio culturais, inquietantes implicações politicas...//...ou em que exista um interesse comunitário significativo.
24 - Nessa conformidade e na demais vertida no acórdão da "Formação" (referência nos autos n° 1052886) que aqui damos expressamente, por economia processual integralmente reproduzido, foi admitida a revista excepcional ex-vi artº 672° a) e b) do código de processo civil...».
4. O Ministério Público, junto do Tribunal Constitucional, veio emitir parecer, considerando que:
«(…)
Estas menções não observam, com precisão e clareza, o ónus de “indicar a alínea do n.º 1 do artigo 70.º ao abrigo da qual o recurso é interposto” (art. 75.º-A).
Mas não estará em causa o tipo de recurso previsto na alínea f) daquele preceito legal, pois é notório que no caso não há matéria de violação de “lei reforçada” e, menos ainda, de contencioso respeitante a diploma regional ou ao Estatuto de uma Região Autónoma [art. 70.º, n.º 1, als. c) a f)].
Portanto, aqui e agora só relevará o tipo de recurso previsto na alínea b) do preceito em causa, relativo à aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo (recurso de decisão de rejeição de inconstitucionalidade).
3. Depois, quanto à matéria do recurso, os ora reclamantes encetam, singularmente, pela “A-Arguição de Nulidade de Acórdão (no qual se suscitam inconstitucionalidades)”.
(…)
Em conclusão, toda a matéria constante do capítulo A), a), pontos 1.º a 23.º, bem como as conclusões n.ºs I a II, respeitante à arguição de nulidade da decisão a quo, é inidónea para efeitos de integrar o objeto do presente recurso por “aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”.
4. Por outra parte, quanto às epigrafadas “Demais inconstitucionalidades”, o enunciado do ponto 24.º, é um conglomerado de diversos preceitos legais, sem indicação das passagens que concretamente estão em causa (pois, as mais das vezes, esses preceitos são formulados em diversos números), sem que um nexo os ligue e, sobretudo, sem que deles os reclamantes deduzam certa e determinada “norma” ou “interpretação normativa”, como o demonstra a afirmação, puramente conclusiva e privada de sentido normativo, ali constante: “na interpretação e na aplicação in caso que lhe é dada violam os preceitos constitucionais, não devendo assim ser usadas tais normas sem que esteja feridas de inconstitucionalidade” (fls. 55). Outro tanto, mutatis mutandis, se pode afirmar da invocação das “normas constantes dos artigos 671.º e 672º do Código de Processo Civil”, pois também aqui não há indicação das passagens que concretamente estão em causa (pois esses preceitos são formulados em diversos números), e dos mesmos também não se deduz certa “norma” ou “interpretação normativa”, apenas se alude, de modo tautológico, às “normas constantes” de tais preceitos (conclusão I, fls. 57)
Quanto ao acúmulo dos artigos “13º, 20º, 202º, 204º e 205º da Constituição da República Portuguesa”, igualmente sem indicação das passagens que concretamente estão em causa (pois todos esses preceitos constitucionais são formulados em diversos números), dele também não se deduz certa e determinada “norma” ou “princípio constitucional” que se reputa infringida, como demonstra a conclusão ali formulada: “Encontram-se violados na sua errada interpretação” (ponto 26.º e conclusão II, fls. 55 e 57).
Como corolário, lógico e prático, das deficiências em causa, no requerimento de interposição do recurso não é observado o ónus de formulação de determinada questão de inconstitucionalidade normativa, ou seja, a afirmação de que certa norma ou interpretação normativa, com um mínimo de correspondência textual nos preceitos em causa, é contraditória ou incompatível com certa regra ou princípio constitucional, com indicação bastante das razões que justificam tal juízo (art. 75.º-A, n.ºs 1 e 2).
(…)
5. Com efeito, como judiciosamente vem aduzido e demonstrado no douto despacho recorrido, que subscrevemos, na alegação do recurso de revista excecional não foram invocadas tais pretensas normas ou interpretações normativas, nem as mesmas foram aplicadas pelo acórdão recorrido (fls. 10 a 28 e 60 a 64).
Em síntese, nas palavras da lei, no caso não foi “invocada [pelos ora reclamantes] qualquer questão de inconstitucionalidade, nomeadamente do teor daquelas agora invocadas, de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer”, pelo que os mesmos não têm legitimidade para o presente recurso, já que essa matéria esgota o respetivo objeto (art. 72.º, n.º 2)».
Em conclusão, opina o Ministério Público no sentido do indeferimento da reclamação.
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
5. Os reclamantes interpuseram o presente recurso de constitucionalidade «ao abrigo do disposto no artº 70 , 70 n° 1 b), f) e sgts da Lei Orgânica Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional». No entanto, conforme referido pelo Ministério Público, no parecer junto aos autos, «só relevará o tipo de recurso previsto na alínea b) do preceito em causa, relativo à aplicação de norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo», visto que nenhuma das situações previstas na alínea f) e seguintes do aludido normativo conhece aplicação in casu. Com efeito, «é notório que no caso não há matéria de violação de “lei reforçada” e, menos ainda, de contencioso respeitante a diploma regional ou ao Estatuto de uma Região Autónoma».
Assim, importa averiguar se se encontram preenchidos os pressupostos de admissibilidade previstos no artigo 70.º, n.º 1, alínea b) da LTC, uma vez que, face à necessidade da sua verificação cumulativa, o não preenchimento de qualquer um deles inviabilizará a admissão do recurso, conduzindo ao indeferimento da reclamação.
O Tribunal Constitucional tem entendido, de modo reiterado e uniforme, que os requisitos de admissibilidade do recurso, previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º, da LTC, podem ser sintetizados do seguinte modo: a existência de um objeto normativo – norma ou interpretação normativa – como alvo de apreciação; o esgotamento dos recursos ordinários (artigo 70.º, n.º 2, da LTC); a aplicação da norma ou interpretação normativa, cuja sindicância se pretende, como ratio decidendi da decisão recorrida; e ainda a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP; artigo 72.º, n.º 2, da LTC).
6. A decisão reclamada não admitiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, com fundamento no incumprimento do ónus de suscitação prévia e adequada de uma questão de constitucionalidade normativa, tal como previsto no artigo 72.º, n.º 2, da LTC. De acordo com o tribunal a quo, «nenhuma das agora invocadas inconstitucionalidades normativas foi suscitada perante o Supremo Tribunal de Justiça, tendo os Recorrentes, nas alegações de recurso dirigidas a este Tribunal se limitado a afirmar que as decisões recorridas violaram o disposto nos artigos 13.°, 20.° e 205.° da Constituição, imputando o vício da inconstitucionalidade às próprias decisões e não a quaisquer normas.». Para além disso, o tribunal a quo considera que «o acórdão recorrido (…) não aplicou as normas constantes dos artigos 671.° e 672.° do Código de Processo Civil, assim como não sustentou as interpretações acima referidas sob as alíneas b) e c), não se tendo pronunciado sobre qualquer nulidade decisória, nem sobre a constituição de um direito de retenção, por tais questões não integrarem o objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça» (fls. 63). Promoveu, por isso, o indeferimento da presente pretensão.
Na reclamação apresentada, os reclamantes vêm discordar do conjunto desse entendimento, sustentando em síntese que teriam suscitado adequadamente as questões de constitucionalidade que pretendem ver apreciadas, e que tais enunciados corresponderiam à ratio decidendi do acórdão impugnado.
Vejamos se, de facto, estão reunidos os pressupostos de admissibilidade.
7. Por força do referido artigo 72.º, n.º 2, da LTC, impunha-se que a autonomização e enunciação do critério normativo a sindicar tivessem sido feitas em momento processual prévio, ou seja, que os reclamantes tivessem suscitado as específicas questões de constitucionalidade – reportadas a dimensões normativas emergentes dos preceitos identificados no requerimento de interposição de recurso – junto do tribunal a quo. A suscitação processualmente adequada dessas questões implica, no plano formal, que os recorrentes tenham cumprido o ónus de as colocar ao tribunal recorrido, delimitando-as de forma expressa, clara e percetível, envolvendo ainda uma fundamentação, em termos minimamente concludentes, na qual sejam indicadas as razões porque consideram ser inconstitucionais as normas que pretendem submeter à apreciação do tribunal, deixando ainda claro qual o preceito ou preceitos cuja legitimidade constitucional pretendem questionar, por forma a criar assim para o tribunal a quo um dever de pronúncia sobre a matéria a que tal questão se reporta.
Compulsados os elementos dos autos, impõe-se recordar que os recorrentes identificam o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 27 de janeiro de 2022, como decisão recorrida. Assim sendo, o momento processualmente adequado para suscitar as questões de constitucionalidade a sindicar perante este Tribunal reconduz-se às motivações do recurso de revista excecional, apresentadas em 1 de outubro de 2021 (fls. 9 e seguintes dos presentes autos de reclamação).
Ora, desta peça processual não consta adequadamente enunciada qualquer dimensão normativa suscetível de constituir objeto do presente recurso. Em bom rigor, os recorrentes limitaram-se, na conclusão 42, a referir que «as decisões recorridas violaram, gravemente, o disposto nos art.º 238º, 342º, 410º, 801, 804º, 810º, 830º, 880º, 1196º, 1287º, 1416º, 1417º, 1418º, 1682-A e 1722 do Código Civil; o disposto nos art.º 4º, 54º, 57º, 58º e 59º do Código do Notariado; o art. 10.º do DL n.º 268/94 e o disposto nos art.º 13º, 20º, 62º e 205º da Constituição da República Portuguesa». Como se vê, da indicada conclusão constam apenas alusões a preceitos legais, sem ulterior densificação. Assim, nada mais resta do que concluir pelo incumprimento deste requisito de admissibilidade do recurso de fiscalização concreta, já que se afiguram imperscrutáveis as interpretações que os reclamantes reputam inconstitucionais.
Com efeito, o cumprimento desse pressuposto de admissibilidade do recurso pressupõe que as questões de constitucionalidade normativa fossem, naquele momento, levantadas, junto do tribunal a quo, de uma forma expressa, direta e clara – o que manifestamente não ocorreu, em sede própria. Nestes termos, não tendo os recorrentes cumprido, oportunamente, o ónus de suscitação de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, perante o tribunal a quo, ficou irremediavelmente prejudicada a possibilidade de vir interpor, com utilidade, recurso de constitucionalidade.
8. Como se compreende, não tendo sido tempestiva e adequadamente suscitada qualquer questão de constitucionalidade, o tribunal recorrido não se pronunciou acerca de tal problemática. Efetivamente, o teor da decisão de 27 de janeiro de 2022 é desprovido de qualquer menção a esta concreta questão.
Acresce ainda que, nos termos assinalados no despacho ora reclamado, o «acórdão recorrido (…) não aplicou as normas constantes dos artigos 671.º e 672.° do Código de Processo Civil, (…) não se tendo pronunciado sobre qualquer nulidade decisória, nem sobre a constituição de um direito de retenção, por tais questões não integrarem o objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça» (cfr. fls. 63). Na verdade, a decisão impugnada encontrava-se limitada à apreciação das questões delimitadas pelos recorrentes, que se reconduziam à suscetibilidade de promover a execução-específica do contrato promessa e, a título subsidiário, à possibilidade de reconhecer a aquisição do direito de propriedade por usucapião.
Nesse enquadramento, o que temos é a não coincidência entre a aplicação dos preceitos legais que sustentam a ratio decidendi da decisão recorrida e as formulações selecionadas pelos recorrentes como fonte das questões colocadas. Com efeito, de acordo com os já destacados pressupostos de admissibilidade do recurso de constitucionalidade, é imprescindível que se verifique uma coincidência precisa entre as normas reputadas como inconstitucionais pelos recorrentes e aquelas que fundamentaram a decisão do acórdão recorrido. Caso contrário, não existindo relação fidedigna entre os dois elementos, o Tribunal Constitucional não pode conhecer do recurso.
Em vista de tal não coincidência e atenta a natureza instrumental do recurso de fiscalização concreta da constitucionalidade, que é inerente àquela exigência legal (cf., por todos, os Acórdãos n.os 409/2019, 326/2019, 317/2019, 290/2019, 640/2018, 652/2018, 658/2018, 671/2018, 472/2008, 498/96, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt) o juízo definitivo acerca da compatibilidade ou incompatibilidade constitucional das normas-objeto não poderá repercutir-se com efeito útil sobre qualquer solução para a decisão recorrida.
Nestes termos, mostrando-se ociosa a apreciação dos restantes pressupostos de admissibilidade do recurso, face à sua necessária verificação cumulativa, confirma-se a inadmissibilidade e consequente não conhecimento do seu objeto. Em consequência, impõe-se o indeferimento da presente reclamação.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir a presente reclamação.
Custas pelos reclamantes, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta, ponderados os critérios referidos no artigo 9.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de outubro (artigo 7.º do mesmo diploma).
Lisboa, 9 de junho de 2022 - Mariana Canotilho - António José da Ascensão Ramos - Pedro Machete