ACÓRDÃO Nº 829/2022
Processo n.º 1094/2022
Plenário
Relatora: Conselheira Mariana Canotilho
Acordam, em Plenário, no Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. O Presidente da República vem, ao abrigo do artigo 278.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos artigos 51.º e 57.º, n.º 1, da Lei nº 28/82, de 15 de novembro (Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, doravante, LTC), submeter à apreciação deste Tribunal, em processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade, as normas constantes do artigo 2.º - “que alteram o artigo 12º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, na sua redação atual, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal” – e 3.º - “que alteram os artigos 16.º, 23.º-A e 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna” - do Decreto n.º 17/XV, que «reestrutura o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, alterando a Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal, e a Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna», aprovado pela Assembleia da República (em seguida, «AR»), em 27 de outubro de 2022, que lhe foi enviado para promulgação como lei e recebido em 16 de novembro de 2022.
2. Os preceitos ora questionados do Decreto n.º 17/XV da Assembleia da República têm o seguinte teor:
«Artigo 2.º
Alteração à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto
O artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, passa a ter a seguinte redação:
«Artigo 12.º
[…]
1 – O Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI) é o centro operacional responsável pela coordenação da cooperação policial internacional, que assegura o encaminhamento dos pedidos de informação nacionais, a receção, o encaminhamento e a difusão nacional de informação proveniente das autoridades estrangeiras, a transmissão de informação e a satisfação dos pedidos por estas formulados.
2 – O PUC-CPI integra, sob a mesma gestão, o Gabinete Nacional SIRENE, a Unidade Nacional da EUROPOL, o Gabinete Nacional da INTERPOL, o Gabinete de Informações de Passageiros, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira e dos pontos de contacto decorrentes das Decisões Prüm.
3 – A Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras integram, através de oficiais de ligação permanente, o Gabinete Nacional de Ligação a funcionar junto da EUROPOL, competindo ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna definir, mediante despacho, o respetivo modo de funcionamento interno e designação da chefia, a qual é exercida por um quadro da Polícia Judiciária.
4 – […].»
Artigo 3.º
Alteração à Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto
Os artigos 16.º, 23.º-A e 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, passam a ter a seguinte redação:
«Artigo 16.º
[…]
1 – […].
2 – […].
3 – […]:
a) […];
b) […];
c) […];
d) […];
e) […];
f) […];
g) […];
h) Coordenar os trabalhos preparatórios no âmbito do mecanismo de avaliação da aplicação do acervo de Schengen e acompanhar, em estreita articulação com as diversas entidades competentes, o seguimento das ações decorrentes das avaliações realizadas naquele âmbito.
Artigo 23.º-A
[…]
1 – O Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI) é o centro operacional responsável pela coordenação da cooperação policial internacional, que assegura o encaminhamento dos pedidos de informação nacionais, a receção, o encaminhamento e a difusão nacional de informação proveniente das autoridades estrangeiras, a transmissão de informação e a satisfação dos pedidos por estas formulados.
2 – […]:
a) […];
b) […];
c) […];
d) […];
e) […];
f) Identificar e promover a utilização de soluções de gestão de processos eficazes e definir fluxos de trabalho especificamente destinados à cooperação policial internacional;
g) […];
h) […];
i) […];
j) Auxiliar as autoridades judiciárias, nos termos da lei processual penal, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal;
k) Receber e encaminhar os pedidos de detenção provisória que devam ser executados em processos de extradição, nos termos da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, que aprova a lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal;
l) Garantir a operacionalidade dos mecanismos em matéria de coadjuvação às autoridades judiciárias na cooperação judiciária internacional em matéria penal, no âmbito da Organização Internacional de Polícia Criminal (OIPC/INTERPOL), da EUROPOL e de outros organismos internacionais da mesma natureza.
3 – […].
4 – […].
5 – Os coordenadores de gabinete, cargos de direção intermédia de 1.º grau, são nomeados por despacho do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, sob proposta dos dirigentes máximos das respetivas forças ou serviços de origem, e exercem funções em comissão de serviço pelo período de três anos, renovável.
6 – O PUC-CPI integra, sob a mesma gestão, o Gabinete Nacional SIRENE, a Unidade Nacional da EUROPOL, o Gabinete Nacional da INTERPOL, o Gabinete de Informações de Passageiros, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira e dos pontos de contacto decorrentes das Decisões Prüm.
7 – […].
8 – A chefia do Gabinete EUROPOL e INTERPOL compete, por inerência, ao Coordenador de Gabinete da Polícia Judiciária.
9 – […].
10 – […].
11 – […].
12 – […].
13 –Sem prejuízo das competências fixadas na lei ou em convenção internacional em matéria de comunicação do teor de decisões judiciais proferidas contra cidadãos estrangeiros, a estabelecer entre autoridades centrais nacionais aí devidamente designadas, o Ministério Público pode promover o envio ao PUC-CPI das certidões das decisões judiciais proferidas contra cidadãos estrangeiros condenados, para efeitos de comunicação ao país de origem em casos de urgência.
14 –A Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais comunica ao PUCCPI os factos relevantes relativos ao cumprimento das penas aplicadas a cidadãos estrangeiros.
Artigo 25.º
[…]
1 – […].
2 – […].
3 – […].
4 – […].
5 – Sem prejuízo do disposto no número anterior, a nomeação dos dirigentes máximos das forças e dos serviços de segurança referidos nas alíneas a) a c) do n.º 2 é precedida da audição do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna.»
Segundo o requerente, as normas questionadas poderão padecer do vício de inconstitucionalidade material, por violação do princípio da separação de poderes, previsto no artigo 111.º, e da autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal, constante do artigo 219.º, ambos da Constituição da República Portuguesa.
3. Os fundamentos apresentados no pedido para sustentar a inconstitucionalidade dos preceitos impugnados são os seguintes:
«[…]
1º
O Decreto em apreciação procede à restruturação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI),
2º
A alteração em causa, surge na sequência de uma recomendação para adoção pelos Estados-Membros na Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho «Reforçar a cooperação em matéria de aplicação da lei na UE: o modelo europeu de intercâmbio de informações».
3º
De acordo com o Decreto sob apreciação, na alteração ao artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, "o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI) é o centro operacional responsável pela coordenação da cooperação policial internacional, que assegura o encaminhamento dos pedidos de informação nacionais, a receção, o encaminhamento e a difusão nacional de informação proveniente das autoridades estrangeiras, a transmissão de informação e a satisfação dos pedidos por estas formulados".
4º
Na alteração ao n.º 2 do mesmo artigo, estabelece-se que "o PUC-CPI integra, sob a mesma gestão, o Gabinete Nacional SIRENE, a Unidade Nacional da EUROPOL, o Gabinete Nacional da INTERPOL, o Gabinete de informações de Passageiros, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira e dos pontos de contacto decorrentes das Decisões Prum.
5º
E prossegue-se, no n.º 3, no seguinte sentido: "a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública, a Polícia Judiciária e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras integram, através de oficiais de ligação permanente, o Gabinete Nacional de Ligação a funcionar junto da EUROPOL, competindo ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna definir, mediante despacho, o respetivo modo de funcionamento interno e designação da chefia, a qual é exercida por um quadro da Policia Judiciária".
6º
As normas citadas encontram, depois, o seu devido reflexo, no mesmo Decreto, nas alterações à Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna.
7º
Concretamente, de acordo com o Decreto em apreciação, o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional fica concentrado na figura do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna. Na ausência de ressalva expressa, coloca-se a questão de saber, sem que isto implique qualquer juízo relativamente às personalidades que exerçam ou venham a exercer as funções de Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, se uma tal concentração se pode traduzir, no futuro, no acesso a informações relativas a investigações criminais em curso e a matéria sujeita a segredo de justiça, o que violaria o princípio da separação de poderes.
8º
Com efeito, a autonomia do Ministério Público em matéria de investigação criminal encontra-se constitucionalmente protegida no artigo 219º da Constituição.
9º
Assim, nos termos do disposto na parte final do n.º 1 do artigo 219º, compete ao Ministério Público exercer a ação penal orientado peio princípio da legalidade e defender a legalidade democrática.
10º
Ora, como se viu, e não obstante o parecer do Conselho Superior do Ministério Público, segundo o qual "a presente proposta de lei configura uma opção de política legislativa sobre a qual não nos caberá pronunciar, nada havendo a referir relativamente ao respeito pelos preceitos constitucionais e legais", a concentração dos poderes relativos ao Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial na figura do Secretário-Geral poderá vir potencialmente a atingir esta competência do Ministério Público, assim violando a sua autonomia constitucionalmente protegida.
11º
Como se compreende, uma indefinição conceptual não pode manter-se numa matéria com esta sensibilidade, em que se exige a maior certeza jurídica possível, tanto mais que está em curso a quarta Avaliação Schengen ao Estado Português, cujas missões programadas de avaliação decorrerão, previsivelmente, até março de 2023.»
Com tais fundamentos, o Presidente da República requer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas dos artigos 2.º e 3.º do Decreto n.º 17/XV, na parte em que alteram o artigo 12º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, e os artigos 16.º, 23.º-A e 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, em virtude de os considerar potencialmente desconformes com a Constituição, por violação do princípio da separação de poderes, e da autonomia do Ministério Público no exercício da ação penal, nos termos expostos.
O requerente junta ainda ao pedido parecer do Conselho Superior do Ministério Público, emitido acerca da Proposta de Lei n.º 28/XV/1 (GOV), que esteve na origem do Decreto que contém as normas ora questionadas, a pedido da Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias. Tal parecer tem o seguinte teor:
«I. Enquadramento
Na exposição de motivos da iniciativa legislativa em apreço, refere-se que o diploma visa restruturar o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, em conformidade com os instrumentos de apoio a adotar pelos Estados-Membros recomendados na Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu e ao Conselho «Reforçar a cooperação em matéria de aplicação da lei na EU: o modelo europeu de intercâmbio de informações (EIXM)», em linha com as «Orientações para a criação de um ponto único de contacto para o intercâmbio internacional de informação entre serviços de polícia» e o «Manual de intercâmbio de informação entre serviços de polícia» e no seguimento da terceira avaliação a Portugal sobre a aplicação do Acervo de Schengen, ocorrida em 2017, na qual se identificou essa necessidade.
Mais se esclarece que com o objetivo de "dar cumprimento a essa recomendação e de forma a impulsionar as ferramentas e canais de cooperação policial internacional, importa proceder à consolidação da estrutura preconizada para o PUC-CPI, através da efetiva integração da Unidade Nacional da EUROPOL e do Gabinete Nacional da INTERPOL no seu seio, as quais ainda se encontram, presentemente, a funcionar junto de outra entidade."
Nesse sentido, propõe o Governo proceder à consolidação da estrutura preconizada para o PUC-CPI através da "efetiva integração" da Unidade Nacional da EUROPOL e do Gabinete Nacional da INTERPOL, atualmente sob a alçada da Polícia Judiciária através da Unidade de Cooperação Internacional, e proceder à atualização e clarificação das competências do PUC-CPI em resultado da referida integração efetiva.
As alterações preconizadas apontam, ainda, para a necessidade de se proceder à atualização e clarificação de competências do PUC, de modo a conferir coerência a todo o sistema de cooperação policial internacional. Neste sentido apresenta-se a proposta de atribuição ao Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna da competência de coordenação nacional dos trabalhos preparatórios e do seguimento das ações decorrentes do mecanismo de avaliação da aplicação do acervo de Schengen a Portugal, bem como a consagração da intervenção deste, através de audição antes da tomada de decisão final, no processo de nomeação do Comandante-Geral da Guarda Nacional Republicana, do Diretor Nacional do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e do Diretor do Serviço de Informações de Segurança, o que considera enquadrar-se no âmbito do exercício das suas competências de coordenação, direção, controlo e comando operacional.
Para tanto, a presente PPL procede à quinta alteração à Lei n.° 49/2008, de 27 de agosto, na sua redação atual, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal, alterando a redação do respetivo artigo 12.°, e à sexta alteração à Lei n.° 53/2009, de 29 de agosto, na sua redação atual, que aprova a Lei da Segurança Interna, alterando a redação dos artigos 16.°, 23.°-A e 25.° bem como revogando o n.° 8 do artigo 23.°-A do mesmo diploma.
Relativamente à análise a empreender, considerando as concretas funções desempenhadas pelo Ministério Público no contexto da proposta legislativa, como nota prévia refira-se que o Ponto Único de Contacto para Cooperação Policial (vulgo PUC ou SPOC) foi criado pelo Decreto-lei n.° 49/2017 de 24 de maio. Na senda da criação do mesmo, foi nomeada uma representante do Ministério Público no Gabinete referido, que até hoje aí exerce funções dispondo de gabinete e acesso a correio eletrónico, para troca de informações e apoio ao funcionamento do PUC.
No que concerne à coerência das alterações legislativas concretamente propostas enquanto decorrência lógica dos objetivos delineados na exposição de motivos, nada de relevante há a referir, destacando-se designadamente:
a) Alteração ao artigo 12° da Lei n° 49/2008: A concentração, no PUC, de entidades vocacionadas para a cooperação policial, tais como o Gabinete Nacional da INTERPOL, o Gabinete Nacional SIRENE e a Unidade Nacional da EUROPOL corresponde a modelos estruturais já desenvolvidos, com resultados positivos, noutros Estados, afigurando-se a única forma de criar um verdadeiro ponto único de cooperação policial, rentabilizando sinergias e evitando duplicações de esforços e perda de informação;
b) Artigo 23°-A da Lei n.° 53/2008: com esta alteração considera-se que se encontra salvaguardada a assistência às autoridades judiciárias, nos estritos termos previstos na lei processual penal, o que constitui prática habitual vantajosa, na senda da facilitação e aceleração dos procedimentos de cooperação judiciária;
c) A transmissão de pedidos de detenção provisória, a que se referem as alterações previstas na alínea k) do artigo 23°-A, por intervenção do PUC resulta diretamente do disposto nos artigos 38° n°4 e 29° n°1 da Lei n.° 144/99, que atribuía estas competências ao Gabinete Nacional da INTERPOL, pelo que não nos merece qualquer reparo a sua inclusão na alteração deste diploma.
Cumpre igualmente, nesta sede, destacar alguns pontos no contexto do desempenho de funções do Ministério Público, que nos merecem alguma reticência, nomeadamente a proposta de alteração ao já citado artigo 23-A, no que refere aos seus números 13 e 14.
Dispõe o mencionado n°13 que "O Ministério Público promove o envio ao PUC-CPI das certidões das decisões judiciais proferidas contra cidadãos estrangeiros condenados, para efeitos de comunicação ao país de origem".
A comunicação do teor de decisões de condenação de cidadãos estrangeiros corresponde a cooperação judiciária, e não policial, devidamente prevista e regulada pelo artigo 22° da Convenção Europeia sobre Auxílio Judiciário Mútuo (Estrasburgo, 20 de abril de 1959).
Assim, deverão as autoridades judiciárias portuguesas, relativamente a cidadãos estrangeiros, e estrangeiras relativamente a cidadãos portugueses, comunicar o teor de decisões de condenação proferidas para sua inserção no registo criminal nacional do condenado.
Esta comunicação é feita entre autoridades centrais nacionais. No caso português a autoridade central é a Direção de Serviços de Identificação Criminal.
Na senda da vinculação de Portugal a esta Convenção, e como forma de complementar a mesma, contém a Lei 144/99 de 31 de agosto duas normas que assinalam a presença e atividade de autoridades centrais da cooperação judiciária relativa à transmissão de informação sobre registo criminal de cidadãos estrangeiros, condenados em Portugal, ou portugueses condenados no estrangeiro, que pressupõe a obtenção de informação sobre as respetivas condenações. Assim:
a) O artigo 162° que refere que a comunicação de pedidos de registo criminal (que pressupõe a completude dos mesmos mediante obtenção sistemática da informação sobre condenação de nacionais em Estado estrangeiro) é efetuada aos serviços de identificação criminal;
b) O artigo 163° que refere que a solicitação de informação sobre sentenças ou cópias das mesmas terá de ser feita através da autoridade central, in casu a Procuradoria-Geral da República.
Parece-nos, assim, que por força da existência de instrumentos internacionais de aplicação vasta e, na sua ausência, por aplicação direta da Lei 144/99 de 31 de agosto, resulta claro que, no caso a que se refere este número 13, a comunicação do teor de decisões judiciais proferidas contra cidadãos estrangeiros corresponde a cooperação judiciária, a estabelecer entre autoridades centrais nacionais devidamente designadas.
Acrescente-se, ainda, que no quadro da União Europeia o sistema ECRIS, de que é utilizadora nacional a citada Direção de Serviços de Identificação Criminal, permite a circulação desta informação de forma direta e o sistema ECRIS-CCN, em implementação, vai ampliar o âmbito de aplicação do ECRIS a cidadãos nacionais de Estados fora da União Europeia.
A intervenção do PUC, à semelhança do que já efetuava o Gabinete Nacional da INTERPOL, apenas poderá ser concebida como uma forma de acelerar ou facilitar a cooperação neste campo, em situações de urgência devidamente assinaladas. De outra, forma parece-nos verificar-se, aqui, um claro conflito de competências, entre o PUC e a Direção de Serviços de Identificação Criminal, que nos parece pouco saudável renovar.
Quanto ao n° 14 ele é também objeto de algumas dúvidas que passamos a enunciar:
Por um lado, com a expressão "factos relevantes", por genérica ou pouco recortada, parece-nos criado um risco de interpretação muito avulsa. Cremos que, com a mesma, se está a pretender referir os grandes marcos da execução da pena, como sejam a respetiva liquidação, informação sobre a liberdade condicional e sobre a execução final da mesma. O seu âmbito de aplicação parece-nos ter sido retirado do mesmo artigo 22° da Convenção Europeia sobre Auxílio Judiciário Mútuo (20 de abril de 1959) quando refere a expressão "condenações e medidas subsequentes".
Conforme já referimos estamos, de novo, em pleno ambiente de cooperação judiciária internacional, e não cooperação policial.
Estas normas, embora já de génese um pouco crítica e que merece a nossa reserva, alcançavam alguma justificação num ambiente de cooperação por intervenção das autoridades diplomáticas, em que a intervenção de uma autoridade policial vocacionada para a cooperação internacional, como são os Gabinetes Nacionais INTERPOL, alterava substancialmente o resultado da cooperação, dada a extrema flexibilidade e rapidez dos contactos entre Gabinetes Nacionais.
Atualmente, com a facilidade de contactos entre autoridades judiciárias, não nos parece necessário também aqui introduzir uma norma que conflitua com competências na área da cooperação judiciária, devidamente estabelecidas.
III. Conclusão
De acordo com o preceituado no artigo 21.°, n.° 2, al. i) da Lei n.° 68/2019, de 27/08, alterada pela Lei n.° 2/2020, de 31/03, que aprova o Estatuto do Ministério Público, compete ao Conselho Superior do Ministério Público emitir parecer em matéria de organização judiciária e, em geral, de administração da justiça.
Os propósitos da proposta normativa, elencados na respetiva exposição de motivos, encontram-se consubstanciados em alterações que se situam no âmbito da coordenação da cooperação policial internacional, preconizando-se a concentração sob uma única direção das autoridades nacionais tradicionalmente envolvidas na cooperação policial internacional.
Pelo que resta exposto, e sem prejuízo das questões assinaladas, a presente proposta de lei configura uma opção de política legislativa sobre a qual não nos caberá pronunciar, nada havendo a referir relativamente ao respeito pelos preceitos constitucionais e legais.»
4. Notificado para o efeito previsto no artigo 54.º da LTC, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos, informando que os trabalhos preparatórios que conduziram à aprovação do Decreto em questão se encontram disponíveis na página de Internet do Parlamento e enviando em anexo uma nota sobre os mesmos, elaborada pelos serviços de apoio à Comissão Parlamentar de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
A mencionada nota técnica tem, em suma, o seguinte teor:
“1. Breve enquadramento legal
A presente nota é elaborada a propósito do processo de fiscalização preventiva da constitucionalidade das normas constantes do Decreto n.° 17/XV da Assembleia da República, que reestrutura o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, alterando a Lei n.° 49/2008, de 27 de agosto, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal, e a Lei n.° 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna.
Em concreto, no pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade do Decreto n.° 17/XV é suscitada a conformidade constitucional das seguintes normas:
as constantes do artigo 2.°, que alteram o artigo 12.° da Lei n.° 49/2008, de 27 de agosto, na sua redação atual, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal;
as constantes do artigo 3.°, que alteram os artigos 16.°, 23.°-A e 25.° da Lei n.° 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna.
2. Trabalhos preparatórios do Decreto n.° 17/XV da Assembleia da República
O Decreto n.º 17/XV teve origem na Proposta de Lei n.º 28/XV/l.ª (GOV) - Procede à restruturação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional.
A Proposta de Lei n.º 28/XV/l.ª (GOV) foi admitida em 16 de agosto de 2022, tendo baixado à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias na mesma data.
Em 30 de agosto de 2022, a DURP do PAN apresentou um requerimento para audição do Diretor Nacional da Polícia Judiciária, da Presidente da Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária e da Ministra da Justiça para que fossem prestados esclarecimentos quanto à intenção do Governo de retirar o Gabinete Nacional Interpol e a Unidade Nacional Europol da alçada da Polícia Judiciária, que, em 28 de setembro, foi aprovado, exceto na parte relativa à audição da Ministra da Justiça, tendo a Comissão solicitado pareceres ao Diretor Nacional da Policia Judiciária e à Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal da Polícia Judiciária.
Foi igualmente apresentado parecer pelo Conselho de Fiscalização do Sistema de Informações da República Portuguesa.
Em 6 de setembro de 2022, a Comissão solicitou parecer, sobre a iniciativa em apreço, ao Conselho Superior do Ministério Público.
A 14 de setembro de 2022, foram aprovadas por unanimidade, na ausência do BE e da DURP do PAN, as partes I e III do parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
A 16 de setembro de 2022, a Proposta de Lei n.º 28/XV/l.ª (GOV) foi aprovada na generalidade, com votos a favor do PS e votos contra do PSD, do CH, do IL, do PCP, do BE, da DURP do PAN e do DURP do L, tendo baixado, na especialidade, à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, na mesma data.
Em 11 de outubro de 2022, o Grupo Parlamentar do PS apresentou propostas de alteração à iniciativa em apreciação, que fez substituir, em 19 de outubro, por uma nova versão das propostas de alteração. Em 21 de outubro, o Grupo Parlamentar do PSD apresentou uma proposta de alteração à iniciativa em apreciação.
O cotejamento entre a Proposta de Lei n.º 28/XV/l.ª (GOV) e as ulteriores propostas de alteração da iniciativa constam de Quadro Comparativo.
Na reunião da Comissão de 26 de outubro de 2022, encontrando-se presentes todos os Grupos Parlamentares e demais forças políticas, com exceção dos Grupos Parlamentares do CH, do BE e dos DURPs do PAN e do L, procedeu-se à discussão e votação na especialidade da Proposta de Lei e das propostas de alteração apresentadas.
Participaram na discussão as Senhoras e os Senhores Deputados Pedro Delgado Alves (PS), Paula Cardoso (PSD), João Cotrim de Figueiredo (IL) e Alma Rivera (PCP), que debateram as soluções normativas da Proposta de Lei e as propostas de alteração, as quais foram previamente apresentadas e justificadas pelos respetivos proponentes.
No debate, e em suma, os Grupos Parlamentares do PSD, da IL e do PCP contestaram a opção legislativa de mudança da Unidade Nacional da Europol e do Gabinete Nacional da Interpol, atualmente a funcionar na esfera da Polícia Judiciária, para o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, que funciona na dependência e sob coordenação do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, na direta dependência do Primeiro-Ministro, reputando-a de atropelo do Estado de Direito ou risco sério de abuso de poder, o que foi refutado pelo Grupo Parlamentar do PS, que sublinhou tratar- se de matéria na dependência de dirigente da Administração Pública escrutinado pela AR, garantindo, ao invés, um maior afastamento do decisor político, uma vez que se sob a égide da Polícia Judiciária, a tutela seria do Ministério da Justiça.
Invocaram adicionalmente que não resultava da troca de correspondência com as instâncias europeias, constante da documentação remetida pelo Governo à Comissão, a solicitação desta, que a mudança devesse ser concretizada nestes termos que consideraram potenciadores de uma governamentalização da investigação criminal.”
II – Fundamentação
A) Conhecimento do pedido
5. Considerando a legitimidade do requerente, a circunstância de o pedido conter todas as indicações a que se refere o artigo 51.º, n.º 1, da LTC e a observância dos prazos aplicáveis (artigo 278.º, n.º 3, da Constituição e artigos 54.º, 56.º, n.º 4, 57.º, n.ºs 1 e 2, e 58.º da LTC), nada obsta ao conhecimento da questão de constitucionalidade formulada nos presentes autos.
B) Enquadramento
6. A análise da questão de constitucionalidade agora colocada ao Tribunal Constitucional exige a consideração de um quadro sistémico complexo, que resulta, antes de mais, da leitura conjunta da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, (Lei de Organização da Investigação Criminal) e da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, (Lei de Segurança Interna) – ambas contendo normas alteradas pelos preceitos legais questionados -, bem como do acervo normativo decorrente da interconexão entre tais leis e as demais normas relevantes, vigentes no espaço europeu. Relevam, neste campo, as disposições dos Tratados da União Europeia (UE) relativas à área da justiça e assuntos internos, em especial, as normas atinentes à cooperação judiciária em matéria penal e à cooperação policial, bem como os instrumentos de direito derivado da União atinentes a estas matérias.
Assim, far-se-á um breve périplo pelo direito da UE e pelo direito interno, procurando através dele compreender a natureza, competências e enquadramento sistémico e paramétrico de cada um dos pontos de contacto nacionais/centros de transmissão de informações agora reunidos sob a coordenação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, uma vez que se entende que essa perceção global constitui um elemento incontornável da análise jurídico-constitucional a levar a cabo nos presentes autos.
B.1) Direito da União Europeia
7. No plano do direito da União Europeia, e começando pelo direito originário, o Tratado de Lisboa procedeu à integração da cooperação policial e judiciária em matéria penal – até então, e desde o Tratado de Maastricht, parte do chamado “terceiro pilar” da arquitetura da União – no quadro institucional e competencial da UE. Neste âmbito, o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) distingue, hoje, a cooperação judiciária da cooperação policial, embora ambas configurem dimensões do Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, previsto no Título V desse Tratado. Por seu turno, o artigo 12.º do Tratado da União Europeia prevê a participação dos Parlamentos nacionais “no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça, nos mecanismos de avaliação da execução das políticas da União dentro desse mesmo espaço”, sendo ainda “associados ao controlo político da Europol e à avaliação das atividades da Eurojust, nos termos dos artigos 88.º e 85.º ” do TFUE.
Nos termos do artigo 82.º, n.º 1, do TFUE a cooperação judiciária em matéria penal na União assenta no princípio do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros nos domínios do reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais, bem como do estabelecimento de regras mínimas relativas à definição das infrações penais e das sanções em domínios de criminalidade particularmente grave com dimensão transfronteiriça (por exemplo, terrorismo, tráfico de seres humanos e exploração sexual de mulheres e crianças, tráfico de droga e de armas, branqueamento de capitais, corrupção, contrafação de meios de pagamento, criminalidade informática e criminalidade organizada).
Já no plano da cooperação judiciária em matéria processual penal, a União pode legislar sobre o estabelecimento de regras mínimas comuns respeitantes à admissibilidade mútua dos meios de prova entre os Estados-Membros; aos direitos individuais em processo penal; aos direitos das vítimas e, ainda, a outros elementos específicos do processo penal, identificados previamente pelo Conselho através de uma decisão.
8. A cooperação judiciária
desenvolve-se, a nível da União, no quadro da Eurojust, agência com esse propósito específico, no quadro da
qual se coordenam as investigações de crimes graves transfronteiriços, na
Europa e fora dela. Enquanto centro de cooperação judiciária da UE, a Eurojust presta apoio às autoridades
nacionais, promovendo o intercâmbio de informações, desenvolvendo estratégias
de ação penal, facilitando a utilização de instrumentos de cooperação
judiciária e implementando ações conjuntas. Segundo o disposto no n.º 1 do
artigo 85.º do TFUE, “a Eurojust tem por missão apoiar e reforçar a
coordenação e a cooperação entre as autoridades
nacionais competentes para a investigação e o exercício da ação penal em
matéria de criminalidade
grave que afete dois ou mais Estados-Membros ou que exija o exercício de uma
ação penal assente
em bases comuns, com base nas operações conduzidas e nas informações
transmitidas pelas autoridades dos Estados-Membros e pela Europol”.
Assinale-se ainda, neste plano, a existência da Rede Judiciária Europeia em matéria penal, criada pela criada pela Ação Comum n.º 98/428/JAI, de 29 de junho de 1998, e reforçada pela Decisão n.º 2008/976/JAI, do Conselho, de 16 dezembro de 2008. Esta rede é estruturada com base em pontos de contacto de natureza judiciária, estabelecidos em cada um dos Estados-Membros, que integram as autoridades centrais responsáveis pela cooperação judiciária internacional, as autoridades judiciárias e ainda outras autoridades competentes, e têm por missão promover a intermediação ativa entre autoridades nacionais e estrangeiras, no específico âmbito da cooperação judiciária, designadamente através do envio e receção de pedidos de auxílio judiciário em matéria penal, de forma a facilitar e a potenciar o êxito da cooperação.
9. Por seu turno, a cooperação policial, prevista no artigo 87.º e seguintes do TFUE, consiste na associação e articulação entre todas as autoridades competentes dos Estados-Membros, incluindo os serviços de polícia, das alfândegas e outros serviços responsáveis pela aplicação da lei especializados nos domínios da prevenção ou deteção de infrações penais e das investigações nessa matéria. Neste âmbito, a competência legislativa do Parlamento Europeu e do Conselho respeita à adoção de medidas sobre a recolha, armazenamento, tratamento, análise e intercâmbio de informações pertinentes; ao apoio à formação de pessoal, e em matéria de cooperação relativa ao intercâmbio de pessoal, equipamento e à investigação em criminalística; e, ainda, ao estabelecimento de técnicas comuns de investigação relativas à deteção de formas graves de criminalidade organizada.
A Agência da União Europeia responsável pela cooperação entre autoridades policiais é a Europol (cfr. artigo 88.º TFUE), cujo objetivo consiste, nos termos do TFUE, em apoiar e reforçar a ação das autoridades competentes dos Estados-Membros e a sua cooperação mútua na prevenção e combate à criminalidade grave que afete dois ou mais Estados-Membros, ao terrorismo e a outras formas de criminalidade que afetem um interesse comum, abrangido por uma política da União. Nos termos do n.º 2 do artigo 88.º do TFUE, as suas funções podem incluir “a) A recolha, armazenamento, tratamento, análise e intercâmbio das informações transmitidas, nomeadamente, pelas autoridades dos Estados-Membros ou de instâncias ou países terceiros; b) A coordenação, organização e realização de investigações e de ações operacionais, conduzidas em conjunto com as autoridades competentes dos Estados-Membros ou no âmbito de equipas de investigação conjuntas, eventualmente em articulação com a Eurojust”. A Europol tem à sua disposição uma rede de intercâmbio de informações, o Secure Information Exchange Network Application (SIENA), que permite estabelecer, de uma forma rápida e segura o intercâmbio de informações entre forças policiais dos Estados-Membros.
Esta agência, que constitui um dos elementos centrais para a compreensão das alterações legislativas questionadas nos presentes autos, rege-se, antes de mais, pelo disposto no Regulamento (UE) 2016/794 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio de 2016, que procedeu à sua instituição nos moldes atuais. Segundo o artigo 7.º deste diploma, os Estados-Membros têm de criar ou designar uma “unidade nacional encarregada da ligação entre a Europol e as autoridades competentes desse Estado-Membro”, com competência, nos termos do respetivo direito interno, para, entre outras funções, aceder e transmitir os dados policiais nacionais e outros dados relevantes necessários à cooperação com a Europol. A Unidade Nacional surge, pois, como um organismo de ligação entre a Europol e o respetivo Estado, cabendo-lhe fornecer àquela “as informações necessárias à realização dos seus objetivos, incluindo informações relacionadas com formas de criminalidade cuja prevenção e combate sejam considerados prioritários pela União”, assegurar “a comunicação e cooperação efetivas de todas as autoridades competentes com a Europol”, divulgar as atividades da agência e assegurar o cumprimento da legislação nacional, aquando do fornecimento de informações, designadamente, no que respeita à proteção de dados. O n.º 7 do artigo 7.º do Regulamento da Europol salvaguarda a possibilidade de não transmissão de informação em certos casos, em particular quando “comprometam o êxito de investigações em curso ou a segurança de pessoas”.
10. No que respeita à Interpol (International Criminal Police Organization), cabe notar, desde logo, que esta se situa fora do ordenamento jurídico da União Europeia, sendo uma organização internacional intergovernamental, fundada em 1956, e da qual Portugal é parte. O seu tratado constitutivo, ou constituição da ICPO-Interpol, sofreu diversas mudanças desde o momento da aprovação, tendo sido alterado, por último, na 89.ª sessão da respetiva Assembleia Geral, em 2021.
A organização fornece um conjunto de informações e serviços aos respetivos Estados-Membros (veja-se o disposto no artigo 2.º da sua constituição), incluindo o acesso a bases de dados policiais próprias, acessíveis em tempo real, apoio à investigação policial (análise e perícias) e assistência na localização de pessoas, visando apoiar os esforços nacionais no combate à criminalidade organizada, cibercrime e terrorismo. A Interpol tem ainda um conjunto de acordos de cooperação com outras organizações internacionais, merecendo destaque, nesta sede, os acordos com agências da União Europeia, designadamente, a Eurojust, a Europol, o Banco Central Europeu e a Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira).
O Tratado fundador da Interpol não trata de quaisquer outras questões relativas à cooperação policial ou à forma e âmbito de atuação das entidades envolvidas, em termos materiais, embora o artigo 2.º ressalve que a organização atua dentro da legalidade e no espírito da Declaração Universal dos Direitos Humanos. À luz do artigo 31.º e seguintes, e para o que aqui releva, as partes signatárias obrigam-se a designar uma entidade (“body”), que desempenhe a função de gabinete central nacional (National Central Bureau), assegurando funções de ligação e coordenação entre os vários departamentos internos do Estado-Membro em causa, com as entidades competentes dos outros Estados-Membros e com o Secretariado-Geral da Interpol (cfr. artigo 32.º da Constituição da Interpol). Esta forma de funcionamento e articulação entre as autoridades nacionais e a organização, bem como entre os Estados partes entre si, através dos canais disponibilizados pela Interpol - fundada na existência de um ponto de contacto nacional, com competência para coordenação das entidades relevantes no plano interno e para recolha e transmissão de informações - é, pois, bastante semelhante à da Europol, o que explica a opção por soluções jurídicas idênticas, no ordenamento jurídico nacional, como adiante se verá.
11. Uma fonte muitíssimo relevante no que respeita ao complexo jurídico que constitui a base da cooperação policial e judiciária é a legislação respeitante ao Sistema de Informação de Schengen (SIS). Como é sabido, no espaço Schengen foram suprimidos os controlos nas fronteiras internas e definidas regras comuns quanto à fiscalização das fronteiras externas, bem como em relação à emissão de vistos e – com importância nos presentes autos - à cooperação em matéria penal entre serviços policiais e autoridades judiciais.
Relevam, pois, em particular, nesta sede, a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS), de 14 de Junho de 1985, alterada, por último, pelo Regulamento (CE) n.º 1160/2005 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 2005, relativo à supressão gradual dos controlos nas fronteiras comuns no que respeita ao acesso ao Sistema de Informação Schengen pelos serviços dos Estados-Membros competentes para a emissão de certificados de matrícula dos veículos; a Decisão n.º 2007/533/JAI do Conselho, de 12 de junho de 2007, relativa ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação Schengen de segunda geração (SIS II) e o Regulamento (CE) n.º 1987/2006 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de dezembro de 2006, relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do Sistema de Informação de Schengen de segunda geração (SIS II); e, ainda o Regulamento (UE) n.º 2018/1860, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de novembro de 2018, relativo à utilização do SIS para efeitos de regresso dos nacionais de países terceiros em situação irregular, o Regulamento (UE) n.º 2018/1861, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de novembro de 2018, relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do SIS no domínio dos controlos de fronteira, e que altera a Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen (CAAS), e o Regulamento (UE) n.º 2018/1862, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 28 de novembro de 2018, relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do SIS no domínio da cooperação policial e da cooperação judiciária em matéria penal; por último, merece referência o Regulamento (UE) n. ° 1053/2013 do Conselho, de 7 de outubro de 2013, que cria um mecanismo de avaliação e de monitorização para verificar a aplicação do acervo de Schengen.
A CAAS estabelece um conjunto importante de obrigações, que vinculam os Estados-Membros em matéria de cooperação policial. Em primeiro lugar, por força do disposto no artigo 39.º, aqueles comprometem-se a que os respetivos serviços de polícia se prestem assistência mútua para efeitos da prevenção e da investigação de factos puníveis. Os pedidos de assistência podem ser trocados entre “órgãos centrais encarregados da cooperação policial”, salvo se a urgência do caso justificar que os pedidos sejam feitos diretamente às autoridades policiais competentes. Esta norma constitui a base jurídica para diversos acordos bilaterais entre os Estados, através dos quais se aprofundam a cooperação e a ajuda mútuas no quadro do espaço Schengen, podendo até ser criadas estruturas de intercâmbio de informações e cooperação permanentes, sob a forma de comissariados comuns de polícia ou de Centros de Cooperação Policial e Aduaneira (CCPA) nas fronteiras internas. Estes fundam-se, pois, em regra, no disposto no artigo 39.º, n.º 4, da CAAS, podendo as partes contratantes definir os eixos fundamentais da cooperação transfronteiriça a estabelecer, designadamente, as funções, o quadro jurídico e as regras de funcionamento dos centros. Note-se igualmente que o n.º 2 daquele preceito prevê – aspeto relevante para a questão tratada nos presentes autos – que as informações só podem ser utilizadas pelo Estado-Membro requerente para efeitos de obtenção de prova em procedimento penal com o consentimento das autoridades judiciárias competentes do Estado-Membro requerido.
Refira-se ainda que o artigo 46.º da CAAS confere às autoridades policiais o direito de comunicar às suas congéneres, sem solicitação prévia, informações “que se possam revelar importantes” com vista à prevenção de crimes ou de ameaças para a ordem e segurança públicas. Um dos meios privilegiados para obter e proceder ao intercâmbio de informações consiste no destacamento de oficiais de ligação, referido no artigo 47.º. Esta disposição prevê que, em matéria de cooperação policial, os Estados-Membros podem "celebrar acordos bilaterais que prevejam o destacamento, por um período determinado ou indeterminado, de agentes de ligação de um Estado membro para as autoridades policiais de outro Estado membro". A missão destes agentes de ligação destina-se a "promover e acelerar a cooperação, nomeadamente através da prestação de assistência", que pode assumir a forma de intercâmbio de informações, execução de pedidos de auxílio e cooperação em matéria de vigilância das fronteiras externas.
12. Cabe também mencionar, no âmbito do acervo relevante de direito da União Europeia, dois instrumentos jurídicos de grande relevância, no que concerne à troca de informações policiais: a Decisão-Quadro 2006/960/JAI do Conselho, de 18 de dezembro de 2006, também chamada de Iniciativa ou ‘Decisão-Quadro Sueca’, e as Decisões Prüm.
A Decisão-Quadro 2006/960/JAI diz respeito à simplificação do intercâmbio de dados e informações entre as autoridades de aplicação da lei dos Estados-Membros da União Europeia. O artigo 3.º do diploma estatui uma obrigação de assegurar a “possibilidade de fornecer dados ou informações às autoridades competentes de aplicação da lei de outros Estados-Membros”, garantindo que os “dados e informações são fornecidos mediante pedido de uma autoridade competente de aplicação da lei que, atuando no âmbito das competências que lhe são conferidas pelo direito interno, conduza uma investigação criminal ou uma operação de informações criminais”. Salvaguarda-se ainda a necessidade de, sempre que o direito interno do Estado-Membro requerido só permita o acesso aos dados ou informações em questão mediante acordo ou autorização de uma autoridade judiciária, essa autorização ser requerida pela autoridade nacional competente. Nesses casos, a autoridade judiciária do Estado-Membro requerido deve aplicar à sua decisão regras idênticas às aplicáveis num caso puramente interno (cfr. n.º 4 do artigo 3.º da Decisão). Das disposições desta Decisão-Quadro, nomeadamente das normas citadas, extraem-se, pois, dois princípios jurídicos relevantes para o enquadramento da matéria da cooperação policial: o princípio da disponibilidade, nos termos do qual os Estados-Membros devem disponibilizar a informação solicitada pelos agentes de autoridade de outro Estado Membro; e o princípio do acesso equivalente, que estatui que as informações devem ser partilhadas segundo as mesmas condições e procedimentos aplicáveis a nível nacional.
Por seu turno, as Decisões Prüm, Decisões n.º 2008/615/JAI e n.º 2008/616/JAI do Conselho, de 23 de junho de 2008, respeitam ao aprofundamento da cooperação transfronteiras, em particular no domínio da luta contra o terrorismo e a criminalidade transfronteiras; estas decisões procedem à importação para o ordenamento jurídico da União Europeia dos elementos essenciais constantes da Convenção de Prüm, tratado assinado entre alguns dos Estados da União em 27 de maio de 2005, e que visa permitir a transferência automatizada de perfis de ADN, de dados dactiloscópicos e de certos dados nacionais do registo de matrícula de veículos; a transmissão de dados relacionados com eventos importantes de alcance transfronteiriço; a transmissão de informações para a prevenção de atentados terroristas; e o aprofundamento da cooperação policial transfronteiras através de várias medidas. Os artigos 3.º e 6.º, n.º 1, da Decisão n.º 2008/615/JAI preveem a existência de um ponto de contacto nacional para a transmissão de dados relativos a perfis de ADN; os artigos 9.º, n.º 2, e 11.º contêm idêntica previsão para os dados dactiloscópicos; o artigo 12.º, para os dados sobre matrículas de veículos; o artigo 15.º para os eventos importantes de alcance transfronteiriço, e o artigo 16.º para a transmissão de informações para a prevenção de atentados terroristas.
13. No que respeita ao Gabinete de Informações de Passageiros, releva, no plano do direito da União, a Diretiva (UE) 2016/681 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016, relativa à utilização dos dados dos registos de identificação dos passageiros (Passenger Name Record - PNR) para efeitos de prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave.
Esta Diretiva surge da importância que foi
reconhecida ao acesso aos dados dos registos de identificação dos passageiros
de transportadoras aéreas para prevenir,
detetar, investigar e reprimir infrações terroristas e a criminalidade grave e,
assim, reforçar a segurança interna, através da obtenção de provas e, se
for caso disso, deteção de cúmplices de criminosos e desmantelamento de redes
criminosas (cfr. considerando 6) da Diretiva 2016/681). O artigo 4.º do
diploma estabelece uma obrigação, para os Estados-Membros, de criar ou designar
uma autoridade competente para
agir na qualidade da sua «unidade de informações de passageiros» (UIP),
ficando responsável pela
recolha, conservação e tratamento dos dados PNR e pela sua transferência para
as autoridades competentes.
14. Através da Comunicação da Comissão Europeia ao Parlamento Europeu e ao Conselho “Reforçar a cooperação em matéria de aplicação da lei na UE: o modelo europeu de intercâmbio de informações” (EIXM) / COM/2012/0735, mencionada na Exposição de Motivos da proposta de lei que esteve na origem do diploma ora em causa, a Comissão Europeia informou acerca dos resultados da avaliação e reflexão efetuadas sobre o modelo europeu de intercâmbio de informações, no quadro da UE e do espaço Schengen. Fez, então, uma série de recomendações aos Estados‑Membros, com a finalidade de melhorar a aplicação dos instrumentos existentes para o efeito e de racionalizar os canais de comunicação utilizados, assegurando, simultaneamente, uma elevada qualidade, segurança e proteção dos dados.
Nesta comunicação, constatou-se a existência de “uma grande diversidade de instrumentos, canais e ferramentas, todos concebidos para fins específicos”, exemplificando-se que “no âmbito do crime organizado ou grave a nível transnacional, uma pessoa ou um objeto podem ser averiguados tanto no Sistema de Informações Europol como no SIS e, se for encontrada uma indicação positiva, podem ser formulados pedidos suplementares através dos canais Europol ou Sirene respetivamente. Um vestígio biométrico pode ser objeto de um intercâmbio no âmbito da Decisão Prüm”. A fim de promover a racionalização e uma gestão mais eficaz dos canais de troca de informações, a Comissão formulou uma série de recomendações aos Estados-Membros, entre as quais se destaca a criação de “um ponto de contacto único abrangendo os principais canais, disponível 24 horas por dia, todos os dias da semana, reunindo o conjunto das autoridades de aplicação da lei, com acesso às bases de dados nacionais”. O ponto de contacto único é definido, no ponto 3.2 desta comunicação, como “um sistema de «balcão único» para a cooperação policial internacional, que funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana. Os Estados-Membros podem reunir nos respetivos pontos de contacto o gabinete Sirene, a unidade nacional da Europol e o gabinete central nacional da Interpol, assim como os pontos de contacto de outros canais.” Além disso, os Estados foram ainda instados, entre outras recomendações, a “definir instruções nacionais para a escolha do canal” de comunicações a privilegiar, a “utilizar, no caso dos intercâmbios em que o canal não seja juridicamente definido, o canal Europol, através da ferramenta Siena, enquanto canal por omissão, salvo se existirem motivos específicos para utilizar outro canal”, e a “assegurar que as informações trocadas através dos centros de cooperação policial e aduaneira são, quando necessário, transmitidas a nível nacional e, se for caso disso, à Europol”.
A Comissão explicou desta forma a necessidade de criação de um Ponto de Contacto Único em cada Estado-Membro:
“Para os pedidos dirigidos a outro Estado-Membro, o facto de reunir os diferentes canais numa estrutura organizacional única que respeite as regras nacionais em matéria de escolha do canal, garante a escolha correta e coerente do canal, assim como a qualidade dos pedidos. A qualidade é assegurada pelo facto de os pontos de contacto únicos validarem os pedidos para confirmar que estes são necessários e oportunos. Quando as informações não são trocadas através de pontos de contacto únicos (por exemplo, através de centros de cooperação policial e aduaneira ou de agências nacionais que efetuam intercâmbios diretos através do SIENA), um ponto de contacto único pode assegurar a sua coordenação a nível nacional. Para receber os pedidos, os pontos de contacto únicos devem, se tal for juridicamente possível, ter acesso direto às bases de dados nacionais, a fim de responder rapidamente aos pedidos, nomeadamente dentro dos prazos fixados no âmbito da Iniciativa Sueca. As regras do Manual SIRENE (por exemplo, em matéria de segurança, sistemas de gestão do fluxo de trabalho, qualidade dos dados e pessoal) poderiam constituir a base para organizar todos os canais de forma coerente. A partilha dos recursos, designadamente dos recursos humanos e da infraestrutura, pode contribuir para reduzir os custos ou, pelo menos, para uma melhor utilização dos recursos.
Os pontos de contacto únicos deveriam abranger todos os organismos responsáveis pela aplicação da lei, incluindo os serviços aduaneiros. Deveria ser estabelecida uma cooperação entre esses pontos de contacto e os centros nacionais de coordenação em matéria de vigilância das fronteiras. Sempre que for compatível com os sistemas jurídicos nacionais, devem ser estabelecidas ligações com as autoridades judiciais, nomeadamente quando estas dirijam investigações criminais.
Um número cada vez maior de centros de cooperação policial e aduaneira procede ao intercâmbio de informações a nível local e regional. As conferências anuais organizadas a nível da UE permitem a partilha de experiências e a discussão de abordagens comuns. Embora o número de intercâmbios, geralmente elevado na sua maior parte, não diga respeito à criminalidade mais grave ou organizada, um dos desafios reside em assegurar que a informação pertinente é transmitida ao nível nacional (pontos de contacto únicos) e, se necessário, à Europol.”
15. Também a nota do Secretariado-Geral do Conselho da União Europeia sobre o “Manual de intercâmbio de informação entre serviços de polícia” (Documento n.º 5825/20, de 2 de dezembro de 2020, IXIM 23, ENFOPOL 41), igualmente referida na mencionada Exposição de Motivos, tece um conjunto de apreciações importantes e exorta os Estados-Membros à criação de um Ponto de Contacto Único para a cooperação policial internacional, com caraterísticas específicas e em cumprimento dos princípios constantes das normas de direito da União, nos seguintes termos:
“O intercâmbio de dados e informações com
relevância transfronteiras entre autoridades policiais
deve cumprir as condições que decorrem do "princípio da
disponibilidade" aplicado pela "Decisão-
-Quadro Sueca". Significa isso que:
• o agente da autoridade policial de um
Estado-Membro que necessite de informações para
desempenhar as suas funções pode obtê-las de outro Estado-Membro; e que
• as autoridades policiais do Estado-Membro que detém essas informações as
facultarão para a
finalidade declarada, tendo em conta as necessidades decorrentes das
investigações em curso
nesse Estado-Membro; e ainda que
• uma vez disponibilizadas num
Estado-Membro, as informações policiais devem ser
partilhadas além fronteiras em condições em tudo idênticas às que regem a
partilha de
informações a nível nacional, o que significa que as regras aplicadas em casos
transfronteiras
não são mais restritivas do que as aplicáveis aos intercâmbios de dados a nível
nacional
("princípio do acesso equivalente").
Ponto de contacto único (SPOC).
A combinação dos rigorosos requisitos da
Decisão-Quadro Sueca e a existência de diferentes
estratégias nacionais para gerir as várias iniciativas de intercâmbio de
informações exige que se
adote uma abordagem mais simples e uniforme a nível dos Estados-Membros, a fim
de garantir que todos os pedidos de informação entre forças de segurança na UE
sejam tratados de forma eficaz e eficiente.
(...)
Idealmente, o SPOC deverá:
• Ter acesso a um leque de bases de dados
policiais relevantes a nível nacional, europeu e
internacional tão amplo quanto possível, por forma a poder gerir rapidamente o
intercâmbio
direto de informações entre as autoridades nacionais competentes;
• Acolher as unidades nacionais do SIRENE, da Europol e da Interpol;
• Acolher o ponto de contacto para os
oficiais de ligação, os pontos de contacto designados nos
termos da Decisão-Quadro Sueca e das "Decisões Prüm" e, se for o
caso, os pontos de
contacto para os gabinetes regionais e bilaterais;
• Operar num ambiente de trabalho seguro e
ser dotado de pessoal suficiente e competente,
nomeadamente para realizar serviços de interpretação ou tradução, que lhe
permita funcionar
24 horas por dia / sete dias por semana. Na medida do possível, todo o pessoal
deverá ser
formado e estar equipado/mandatado para lidar com qualquer tipo de tarefa no
seio do SPOC.
Caso tal não seja possível, dever-se-á velar por que todas as tarefas possam
ser
desempenhadas por agentes de serviço disponíveis 24 horas por dia/sete dias por
semana.
• Constituir uma organização multi-agências, composta por pessoal oriundo de ou
pertencente a
diferentes serviços e/ou ministérios, entre os quais a Polícia Judiciária, a
Guarda de
Fronteiras, os serviços aduaneiros e as autoridades judiciárias.”
É, pois, como resposta a este conjunto de decisões e recomendações, que resultam da participação de Portugal no processo de integração europeia, que devem compreender-se quer a iniciativa legislativa do Governo, cujo resultado ora se encontra em apreciação pelo Tribunal Constitucional, quer as que a antecederam, e nas quais se enquadra, designadamente, a criação, no âmbito do Sistema de Segurança Interna, e na dependência e sob coordenação do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI), feita pelo Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio, nos termos que adiante se descreverão.
B.2) Direito Interno
16. No plano do direito interno, cabe analisar, antes de mais, as duas leis que sofrem mudanças por força das normas questionadas. Assim, a Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, Lei de Organização da Investigação Criminal, que o Decreto n.º 17/XV vem alterar, regula a organização da investigação criminal, compreendida como “o conjunto de diligências que, nos termos da lei processual penal, se destinam a averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, no âmbito do processo” (cfr. artigo 1.º do diploma mencionado).
O artigo 2.º, n.ºs 1, 2 e 4, desta Lei esclarece que a direção da investigação criminal cabe à autoridade judiciária competente, sendo esta assistida pelos órgãos de polícia criminal, que atuam “no processo sob a direção e na dependência funcional da autoridade judiciária competente, sem prejuízo da respetiva organização hierárquica”. O mesmo artigo 2.º, no seu n.º 5, consagra a autonomia técnica e tática das polícias, no exercício das suas competências.
O artigo 10.º da Lei n.º 49/2008 estabelece um dever de cooperação entre os órgãos de polícia criminal, que é garantido, no plano nacional, por um sistema integrado de informação criminal, que assegura a partilha de informações, de acordo com os princípios da necessidade e da competência (artigo 11.º, n.º 1, da mesma lei). No plano internacional, esse dever de cooperação é assegurado, nos termos da atual versão do artigo 12.º do diploma citado (que é objeto de alteração pelas normas questionadas), pela Unidade Nacional Europol e o Gabinete Nacional Interpol, cujo funcionamento é da competência da Polícia Judiciária, e nos quais a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras têm oficiais de ligação permanente. Por outro lado, todos os órgãos de polícia criminal mencionados integram, igualmente através de oficiais de ligação permanente, os Gabinetes Nacionais de Ligação a funcionar junto da Europol e da Interpol.
17. Neste quadro, o Decreto-Lei n.º 137/2019, de 13 de setembro, que aprovou a nova estrutura organizacional da Polícia Judiciária (PJ), estatui, na alínea a) do n.º 2 do respetivo artigo 5.º, que compete à PJ “assegurar o funcionamento do gabinete nacional da Interpol e da unidade nacional da Europol para efeitos da partilha de informação, nos termos do artigo 12.º da Lei da Organização de Investigação Criminal, aprovada pela Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, na sua redação atual, e do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, na sua redação atual”. Nos termos do n.º 1 do artigo 38.º daquele diploma, essa tarefa é atribuída à Unidade de Cooperação Internacional, uma das unidades centrais da Polícia Judiciária, embora não qualificada como de investigação criminal (à luz do disposto no n.º 3 e na alínea iii) do n.º 4 do artigo 18.º do mencionado Decreto-Lei n.º 137/2019). O artigo 7.º do diploma citado ressalva que “as atribuições da PJ em matéria de cooperação policial internacional são exercidas no respeito pelo quadro legal de competências próprias do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI)” (n.º 1), podendo a PJ “estabelecer relações de cooperação nas suas áreas de intervenção reservadas”, no âmbito dos instrumentos de cooperação policial internacional existentes.
Em virtude da estrutura hierarquizada da PJ (veja-se o n.º 1 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 137/2019), a Unidade de Cooperação Internacional – e, consequentemente, o Gabinete Nacional da Interpol e a Unidade Nacional da Europol – é chefiada por um diretor (cfr. alínea c) do n.º 1 do artigo 8.º do mesmo diploma) e está na dependência do Diretor Nacional da Polícia Judiciária. Este, por seu turno, é nomeado, por despacho do Primeiro-Ministro e do membro do Governo responsável pela área da justiça, devendo ser escolhido de entre coordenadores superiores de investigação criminal, magistrados judiciais ou do Ministério Público ou, ainda, detentores de licenciatura em direito com reconhecida competência técnica, aptidão, experiência profissional e formação adequadas para o desempenho das funções (cfr. ibidem n.º 1 do artigo 52.º).
18. A Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, Lei de Segurança Interna, também alterada pelo Decreto n.º 17/XV, estabelece o sistema nacional de segurança interna – entendida, nos termos do n.º 1 do respetivo artigo 1, como a atividade “desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática” -, e desenvolvida na observância da Constituição e da lei, e de acordo com os princípios fundamentais do Estado de direito democrático (cfr. artigo 2.º, n.º 1).
O artigo 11.º do diploma designa como órgãos do Sistema de Segurança Interna o Conselho Superior de Segurança Interna (órgão interministerial de audição e consulta em matéria de segurança interna); o Secretário-Geral (órgão com competências de coordenação, direção, controlo e comando operacional); e o Gabinete Coordenador de Segurança (o órgão especializado de assessoria e consulta para a coordenação técnica e operacional da atividade das forças e dos serviços de segurança). O segundo órgão elencado, ou seja, o Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna (SGSSI), é particularmente relevante nesta sede, posto que, como adiante se verá de forma mais detalhada, as normas questionadas lhe atribuem um importante conjunto de competências, respeitantes à coordenação do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional.
Assim, segundo o disposto no artigo 9.º, n.º 1, alínea f), da Lei de Segurança Interna, o SGSSI é nomeado e exonerado pelo Primeiro-Ministro, mediante proposta conjunta dos Ministros da Administração Interna e da Justiça, após audição em sede de comissão parlamentar; durante o desempenho de funções, e à luz do artigo 14.º, n.º 1, da mesma lei, atua na direta dependência do Primeiro-Ministro ou, por sua delegação, do Ministro da Administração Interna.
Na atual versão da Lei n.º 53/2008, o SGSSI dispõe já de importantes competências de coordenação, com vista a promover a articulação das forças e dos serviços de segurança, designadamente, no âmbito de ações conjuntas e de colaboração mútua, no que respeita à transmissão de informações, no plano da cooperação com o Sistema de Informações da República Portuguesa, no quadro do relacionamento entre as forças e os serviços de segurança e os serviços de emergência médica, segurança rodoviária e transporte e segurança ambiental, bem como com outras instituições nacionais ou de âmbito local, públicas e privadas (veja-se o disposto no artigo 16.º, n.ºs 2 e 3, do diploma citado).
19. O Decreto-Lei n.º 49/2017, de 24 de maio, veio criar, no âmbito do Sistema de Segurança Interna, e na dependência e sob coordenação do SGSSI, o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI).
Nos termos do respetivo preâmbulo, este Ponto Único de Contacto (PUC) configura-se como uma espécie de «balcão único», em funcionamento 24 horas por dia, que reúne sob a mesma estrutura de gestão e no mesmo espaço físico os diferentes gabinetes nacionais ou pontos de contacto relevantes para efeitos da cooperação entre as autoridades competentes dos Estados-Membros da União Europeia, incluindo as forças e serviços de segurança e as demais autoridades de aplicação da lei especializadas na prevenção e deteção de infrações penais e na realização de investigações criminais, e ainda no apuramento da responsabilidade penal, no âmbito da construção de um espaço europeu de segurança interna.
Com esta solução, o Governo visou dar cumprimento às orientações emanadas da União Europeia e responder à menção feita a Portugal, no decurso das avaliações Schengen, por não ter, até então, dado cumprimento à criação do «Single Point of Contact» (SPOC) ou Ponto Único de Contacto para a cooperação policial internacional. Entendeu o legislador que a “reunião dos diferentes canais de comunicação sob a mesma gestão, no respeito pelas regras nacionais, garante a escolha correta e coerente do canal de cooperação policial internacional, assim como a qualidade dos pedidos e das respostas”. Além disso, e ainda segundo o referido preâmbulo, “a partilha de meios contribui para reduzir custos e incrementar a eficiência, eliminando redundâncias e permitindo uma melhor utilização dos recursos humanos e financeiros e das infraestruturas existentes”. Neste quadro, o Governo entendeu ainda proceder a um reforço das competências do SGSSI, “enquanto elemento essencial na garantia da coerência, da operacionalidade, da erradicação das redundâncias, da boa articulação e da coordenação entre as diversas Forças e Serviços de Segurança”.
Nestes termos, o citado Decreto-Lei aditou à Lei n.º 53/2008 o artigo 23.º-A (agora alterado por uma das normas em fiscalização), que cria o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI) e o insere no Sistema de Segurança Interna; este PUC-CPI é definido como o “centro operacional responsável pela coordenação da cooperação policial internacional, que assegura o encaminhamento dos pedidos de informação nacionais, a receção, o encaminhamento e a difusão nacional de informação proveniente das autoridades policiais estrangeiras, a transmissão de informação e a satisfação dos pedidos por estas formulados” (n.º 1 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, na versão vigente). O Ponto Único de Contacto funciona na dependência e sob coordenação do SGSSI (cfr. n.º 3 do mesmo artigo), e reúne, sob a mesma gestão, o Gabinete Nacional Sirene, o Gabinete Nacional da Interpol, a Unidade Nacional da Europol, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira, os pontos de contacto decorrentes das Decisões Prüm e o Gabinete de Informações de Passageiros (n.º 6 do artigo citado).
É ainda relevante para a matéria tratada nos presentes autos assinalar que, nos termos do n.º 10 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, o Procurador-Geral da República “indica um ponto de contacto que assegura a articulação permanente entre o Ministério Público e o PUC-CPI, para o exercício das competências que lhe são próprias, no processo penal”.
20. Por sua vez, o Decreto-Lei n.º 10/2020, de 11 de março, alterado pelo Decreto-Lei n.º 122/2021, de 30 de dezembro, estabelece, atualmente, a orgânica do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional. No PUC-CPI operam, enquanto unidades orgânicas:
i) O Gabinete Nacional Sirene, estrutura responsável pelo intercâmbio de informações suplementares relacionadas com indicações relativas ao Sistema de Informação de Schengen (SIS) no âmbito do Acordo de Schengen, sua Convenção de Aplicação, e subsequentes instrumentos jurídicos, acima descritos. Instituído, originalmente, pelo Decreto-Lei n.º 292/94, de 16 de novembro, o Gabinete Nacional Sirene é hoje regulado, no âmbito do direito interno, pelo disposto no Decreto-Lei n.º 122/2021, de 30 de dezembro. Nos termos do artigo 3.º deste diploma, são atribuições daquele Gabinete as que decorrem do acervo Schengen relativo ao estabelecimento, ao funcionamento e à utilização do SIS, designadamente: i) Inserir, modificar, completar, retificar ou eliminar indicações no SIS, mediante instrução, requisição ou delegação das autoridades judiciais e administrativas ou a pedido de forças e serviços de segurança, após verificação da sua conformidade com a lei; ii) Assegurar o intercâmbio das informações suplementares; iii) Consultar ou informar outros Estados-Membros aquando da introdução de uma indicação; iv) Verificar a qualidade dos dados do SIS inseridos; v) Garantir o exercício dos direitos de acesso, retificação e apagamento de dados por pessoas singulares em relação aos dados pessoais tratados no SIS; vi) Assegurar o cumprimento do período de conservação de cada indicação e a sua respetiva supressão.
ii) Os Gabinetes Europol e Interpol (o Gabinete Nacional Interpol e a Unidade Nacional da Europol), que constituem os organismos nacionais de ligação das autoridades competentes, respetivamente, com a Europol e a Interpol, tendo como funções primordiais a transmissão de informações, designadamente de dados policiais nacionais e outros dados relevantes e necessários à cooperação policial, nos termos do artigo 7.º do Regulamento Europol e do artigo 31.º e seguintes da Constituição da Interpol, supra mencionados.
iii) O Gabinete para os Centros de Cooperação Policial e Aduaneira, que consiste numa estrutura de apoio à troca de informações e às atividades dos serviços operacionais responsáveis por missões policiais, de controlo fronteiriço e aduaneiras, em zonas fronteiriças, no âmbito da cooperação transfronteiriça em matéria policial e aduaneira. Visa prevenir e reprimir os crimes enumerados na alínea a) do n.º 4 do artigo 41.º da Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, bem como apoiar na execução dos acordos bilaterais celebrados ao abrigo das disposições da CAAS. As entidades portuguesas competentes presentes nos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira são a Guarda Nacional Republicana; a Polícia de Segurança Pública; a Polícia Judiciária; o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras; a Autoridade Tributária e Aduaneira; e a Polícia Marítima, podendo ainda o responsável governamental pela Administração Interna nomear outras autoridades.
iv) O Gabinete para os Oficiais de Ligação e para os Pontos de Contacto das Decisões Prüm; o estatuto dos Oficiais de Ligação é regido pelo Decreto-Lei n.º 139/94, de 23 de maio, que regula a colocação de oficiais de ligação do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, da Guarda Nacional Republicana e da Polícia de Segurança Pública em organismos internacionais e países estrangeiros. Nos termos deste diploma, os Oficiais de Ligação têm competências no plano da cooperação policial, nomeadamente, na execução de projetos de cooperação técnico-policial, enquanto elo de ligação e coordenação entre as forças e serviços de segurança portugueses e as suas congéneres; no âmbito das áreas da segurança interna e policial, podem ainda colaborar com os serviços competentes em trabalhos de assessoria técnica, designadamente, no plano legislativo. A possibilidade de designação de oficiais de ligação junto das autoridades policiais de outro Estado-Membro, no quadro do sistema Schengen está ainda prevista no artigo 47.º da CAAS, nos termos expostos acima. Por seu turno, os Pontos de Contacto das Decisões Prüm (Decisões n.º 2008/615/JAI e n.º 2008/616/JAI do Conselho, de 23 de junho de 2008) são as entidades responsáveis pelo cumprimento das obrigações decorrentes dessas decisões, como anteriormente se explicou.
v) O Gabinete de Informações de Passageiros (GIP), criado pela Lei n.º 21/2019, de 25 de fevereiro, que veio transpor para o sistema jurídico português a Diretiva (UE) 2016/681, acima mencionada. De acordo com o artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, daquele diploma, o GIP é a unidade nacional de informações de passageiros, integrada no Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI), competindo-lhe, designadamente: a) a recolha dos dados PNR junto das transportadoras aéreas, responsáveis pela conservação e pelo tratamento desses dados, bem como pela sua transferência ou pela transferência dos resultados do seu tratamento às autoridades competentes; b) o intercâmbio de dados PNR e dos resultados do tratamento desses dados com as unidades de informações de passageiros de outros Estados-Membros e com a Europol. São consideradas autoridades competentes, para efeitos de transmissão dos dados PNR ou do resultado do seu tratamento, as entidades policiais e aduaneiras, os serviços de segurança e as autoridades judiciárias com competência para a prevenção, deteção, investigação e repressão das infrações terroristas e da criminalidade grave (cfr. artigo 7.º da Lei n.º 21/2019).
21. São competências do PUC-CPI (cfr. artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 10/2020 e n.º 2 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008):
“a) Assegurar o intercâmbio internacional de informações entre os serviços de polícia, nos termos da Lei n.º 74/2009, de 12 de agosto;
b) Definir critérios e dar orientações em matéria de interlocução externa no âmbito da cooperação policial internacional;
c) Garantir a operacionalidade dos mecanismos e instrumentos de cooperação policial internacional;
d) Definir e implementar boas práticas internas em matéria de cooperação policial internacional e dar execução às orientações veiculadas pelas competentes instâncias internacionais;
e) Definir os critérios para a escolha dos canais adequados para a transmissão de informações, nos termos da lei;
f) Identificar e promover a utilização de soluções de gestão de processos eficazes e definir fluxos de trabalho especificamente destinados à cooperação policial internacional em matéria de assistência jurídica mútua;
g) Assegurar a necessária articulação com as estruturas nacionais responsáveis pela cooperação judiciária internacional;
h) Assegurar a coordenação da representação externa, nas instâncias europeias e internacionais, no âmbito da cooperação policial internacional, por si, ou pelos órgãos de polícia criminal que a integram;
i) Programar e implementar ações destinadas à formação contínua dos trabalhadores em funções públicas em exercício na área da cooperação policial internacional, bem como das demais autoridades de aplicação da lei.”
De acordo com o artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 10/2020, é instituído um Gabinete de Gestão, constituído por elementos da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública, da Polícia Judiciária e do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, os quais são nomeados por despacho dos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna e da justiça, sob proposta do SGSSI. É, ainda, designado, por despacho do SGSSI, um coordenador-geral, que assegura a coordenação do PUC-CPI.
Por último, releva ainda para a análise a levar a cabo nesta sede, que o artigo 6.º Decreto-Lei n.º 10/2020 consagra um dever de sigilo a que estão obrigados todos os elementos que desempenham funções no PUC-CPI, que abarca, por um lado, os deveres que resultam dos respetivos estatutos de origem e, por outro, as obrigações que decorrem dos regimes do segredo de Estado, do segredo de justiça e do quadro normativo respeitante à segurança das matérias classificadas.
C) Jurisprudência Constitucional relevante
22. Seguidamente, e dentro da consideração de elementos de relevo para o desenho do quadro sistémico e interpretativo-concetual que deverá constituir o contexto valorativo da presente questão de constitucionalidade, cabe um breve périplo pela jurisprudência constitucional relevante, em torno de dois eixos fundamentais, que constituem as bases do pedido aqui apreciado: i) o princípio constitucional da separação de poderes, consagrado no artigo 111.º da CRP; e ii) a autonomia do Ministério Público, constante do artigo 219.º, n.º 2, também da Constituição.
C.1) Princípio da separação de poderes
23. Quanto ao primeiro eixo, o Tribunal Constitucional tem um vasto acervo jurisprudencial sobre a matéria, relevando, nesta sede, e em particular, os casos dos quais se possam extrair arrimos interpretativos aplicáveis à fronteira entre o exercício do poder judicial e do poder administrativo. Um breve excurso por tal jurisprudência permite-nos compreender quais as linhas argumentativas fundamentais que a análise valorativa que nesta sede se levará a cabo não pode deixar de considerar.
No passado mais longínquo, o Acórdão nº 195/94, relativo à criação de uma comissão parlamentar de inquérito, abordou as interseções entre o poder executivo e o poder jurisdicional, invocando, para o caso, a ideia de colaboração entre poderes, ao invés de uma usurpação de funções entre órgãos:
“Esta norma não infringe, porém, o princípio da separação de poderes, condensado no artigo 114º, nº 1, da Constituição. É sabido que o princípio da separação de poderes, tal como está previsto no artigo 114º, nº 1, da lei Fundamental, veda, por um lado, que um órgão de soberania se atribua, fora dos casos em que a Constituição expressamente o permite ou impõe, competência para o exercício de funções que essencialmente são conferidas a outro e diferente órgão e, do outro lado, que um determinado órgão de soberania se atribua competências em domínios para os quais não foi concebido, nem está vocacionado (cfr., neste sentido, os Pareceres da Comissão Constitucional nºs. 16/79 e 1/80, in Pareceres da Comissão Constitucional, Vol. VIII e XI, p. 205 ss, e 23 ss.; o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 26/84, publicado no Diário da República, II Série, de 4 de Abril de 1984; Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., cit., p. 497; e Nuno Piçarra, A Separação dos Poderes como Doutrina e Princípio Constitucional, Coimbra, Coimbra, Editora, 1989, p. 247-265). Ora, aquela norma não implica a invasão por parte das comissões parlamentares de inquérito do núcleo essencial da competência jurisdicional dos tribunais em matéria penal, no sentido de a estes estar reservada, com exclusão de quaisquer outros órgãos ou entidades, a condenação pela prática de um crime, bem como a aplicação das penas correspondentes, nem importa a assunção de poderes jurisdicionais por parte daquele órgão parlamentar, isto é, de poderes para os quais não está vocacionado, no que respeita à sua estrutura, legitimação, procedimento e responsabilidade.
Têm cabimento, neste local, as seguintes palavras de A. Elvira Perales, a propósito da relação entre as comissões parlamentares de inquérito e o princípio da separação de poderes: "Parte da polémica suscitada acerca das comissões de investigação gira em redor da questão de saber se elas atentam contra o princípio da divisão de poderes. A resposta deve ser negativa. A separação de poderes na actualidade não corresponde aos mesmos princípios que regiam nos inícios do constitucionalismo; na actualidade, os termos mais adequados não são os de divisão ou separação, mas os de distinção ou colaboração de poderes, o que resulta bem visível da consideração dos textos constitucionais e, em concreto, da Lei Fundamental de Bona. A colaboração entre poderes tem múltiplas manifestações, sendo uma delas, precisamente, a das comissões de investigação, através das quais um órgão do Parlamento investiga o Governo, exercendo uma inovadora forma de controlo mais efectiva do que, por exemplo, a tradicional moção de censura e que, dada a actual articulação maioria‑minoria, permite exercer um controlo real ainda que sempre sujeito à limitação que decorre do predomínio da maioria.
Deste modo, importará considerar que o conceito de separação de poderes não é um princípio inamovível, mas algo sempre adaptável às circunstâncias concretas e a cada regime político em particular, desde que se mantenha a independência entre os diversos poderes que caracteriza o Estado de direito democrático, tal como é concretamente configurado na Constituição.”
24. Por seu turno, o Acórdão n.º 510/2016 faz uma resenha importante da jurisprudência anterior sobre a matéria; explicando a tese do “núcleo essencial de funções” relativa ao princípio da separação de poderes, admite, porém – o que aqui releva –, interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas, nos seguintes termos:
“7. A compreensão constitucional do princípio da separação de poderes, apesar de convocar critérios orgânicos e funcionais, não se reconduz a uma simples distribuição de funções por diferentes órgãos. Como o Tribunal Constitucional tem afirmado, inexiste, no texto constitucional, «qualquer estrita correspondência entre separação de órgãos e separação de funções, de modo a que a separação de órgãos tenha o sentido de implicar uma rígida divisão de funções do Estado entre eles, exprimindo até a referência à interdependência dos órgãos do Estado constante do artigo 111.º, n.º 1, da Constituição, uma lógica de colaboração e articulação funcional» (cfr. o Acórdão n.º 395/2012, disponível, assim como os demais adiante citados, em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/). Mas, por outro lado, «isso não impede que se reconheça quer a existência de domínios claramente identificados e delimitados de competência exclusiva da Administração, quer a reserva de um núcleo essencial de atuação de cada um dos poderes do Estado, apurado a partir da adequação da sua estrutura ao tipo ou à natureza da competência em causa, enquanto justificação da sua previsão e expressão da sua igual legitimidade político-constitucional» (v. ibidem). É neste contexto que se justifica falar de uma teoria do núcleo essencial das funções, como aquela a que se refere a sentença recorrida, e que ganha sentido útil o princípio da separação de poderes entendido como princípio normativo autónomo dotado de um irredutível núcleo essencial. Como referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, tal sentido consubstancia-se em fundamentar a «declaração da inconstitucionalidade de qualquer ato que ponha em causa o sistema de competências, legitimação, responsabilidade e controlo consagrado no texto constitucional (Acs. TC n.ºs 195/94, 677/95, 1/97, 24/98 e 152/02)» (v. Autores cits., Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, 4.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2010, anot. V ao art. 111.º, p. 46).
Os mesmos Autores não deixam, todavia, de advertir para a necessidade de uma caracterização tipológica – e não definitória – das diferentes funções do Estado:
«O conceito de “núcleo essencial de funções” não dispensa, porém, que, em termos metódicos, se estabeleça uma interpretação sistemática de poderes, competências e funções a partir dos vários preceitos jurídico-positivos da Constituição. Determinar como as funções e competências são distribuídas pelos vários órgãos resulta, em primeiro lugar, da ordem global de competências tal como ela vem positivada na lei constitucional. Em segundo lugar, esta ordem de poderes, competências e funções transporta dimensões materiais que permitirão recortar as características específicas das competências e funções constitucionalmente reservadas a certos órgãos de soberania e que não podem ser “desviadas” para outros. Como os diferentes órgãos podem desempenhar competências e funções que não se reconduzem àquelas que, de forma principal, a Constituição lhes reserva, é admissível a restrição da caracterização material apenas às formas, conteúdos e resultados tipicamente atribuídos a cada órgão de soberania.» (v. idem, ibidem, pp. 46-47)
Daí que se «os atos próprios de cada função devem provir, em princípio, dos órgãos correspondentes a essa função», são descortináveis, no direito positivo, «algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas» (assim, v. JORGE MIRANDA, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª ed., Coimbra editora, Coimbra, 2010, p. 35).”
Em seguida, o aresto citado concretiza o cerne do conteúdo da função jurisdicional em torno de três áreas distintas de intervenção: a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; a repressão de violação da legalidade; e a dirimição de conflitos entre interesses públicos e privados:
“No tocante à função jurisdicional, a Constituição comete o seu exercício aos órgãos de soberania tribunais (artigos 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há no entanto decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. I ao art. 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional (reserva de jurisdição):
«Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material (“jurisdictio” como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (v. Autores cits., ibidem, anot. VI ao art. 202.º, p. 509).
Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados (sobre o sentido e alcance possível daquelas três áreas, cfr. JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IV ao artigo 202.º, pp. 18-19; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VII ao art. 202.º, p. 509). Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/2013, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito (sobre os diferentes níveis ou graus de reserva, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 7ª edição, págs. 668-670; Vieira de Andrade, “A Reserva do Juiz e a Intervenção Ministerial em Matéria de Fixação das Indemnizações por Nacionalizações”, in Scientia Ivridica, Tomo XLVII, n.ºs 274/276, julho/dezembro, 1998, pág. 224).»
Nesse mesmo Acórdão n.º 230/2013, o Tribunal deu conta dos diferentes entendimentos de que é suscetível o alcance da reserva jurisdicional:
«Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal» (itálico adicionado; v. também as sínteses de JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição, cit., anot. VII ao artigo 202.º, pp. 25-31; e GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição, cit., anot. VIII ao art. 202.º, pp. 509-510)”.
25. Recentemente, o Acórdão n.º 626/2022 resume de forma clara o acervo de reflexão jurisprudencial e doutrinal anterior:
“Assim, é preciso enquadrar o exame do princípio da separação e interdependência dos poderes – enquadrar e fazer anteceder, também como resultado da precedência sistemática do artigo 110.º da Constituição sobre o artigo 111.º— num modelo orgânico ou infraestrutural sobre o qual assenta, depois, uma separação ou repartição funcional das atividades, atribuições ou competências estaduais pelos diferentes órgãos de soberania. Separação ou repartição essas que não podem ser havidas como estanques ou imóveis, mas admitem e pressupõem interseções, controlos recíprocos ("checks and balances") e a delimitação de esferas de intervenção predominantemente tendenciais. Eis o que resulta, inequivocamente, do apelo à noção de interdependência entre os órgãos de soberania, tão claramente enfatizada na formulação do n.º 1 do artigo 111.º da Constituição.”
C.2) Autonomia do Ministério Público
26. Quanto ao segundo eixo acima considerado, respeitante à repartição de competências entre Juiz e Ministério Público, no âmbito do processo penal, este Tribunal tem mantido uma linha coerente, ao longo de décadas, e que pode resumir-se no seguinte segmento do Acórdão n.º 254/1992: «a autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas [na] lei».
É o que tem, igualmente, sido sustentado pela doutrina: “a ligação ao Ministério da Justiça (e ao Governo, em geral) tem que ver (...) exclusivamente, com a circunstância de esta magistratura participar na execução de uma política criminal que não é por si definida, mas antes pelos órgãos de soberania (Governo e Parlamento)” podendo, porém, afirmar-se que “a magistratura do Ministério Público, como um todo é, mais do que autónoma, verdadeiramente independente perante o poder político, uma vez que não está sujeita a quaisquer instruções do poder executivo relativamente à investigação, à promoção, à condução ou à conclusão de qualquer processo penal concreto” (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 3.ª Edição, Almedina, Coimbra, 2021, p. 40).
Esta mesma ideia – a compreensão da autonomia do Ministério Público como assente na sua defesa contra a instrumentalização pelo poder político e na sua vinculação única, e última, à legalidade democrática – foi, pois, plasmada no Acórdão n.º 254/1992, nos termos seguintes:
«Não será isento de escolhos o caminho a percorrer se se quiser estabelecer com rigor o exacto conteúdo do conceito de autonomia do Ministério Público e, designadamente, se se pretender distingui-lo do conceito de independência, reservado para os tribunais.
De todo o modo, parece seguro, por um lado, que o conceito de autonomia, agora consagrado na Constituição, vem importado da legislação ordinária — referido, primeiramente, na Lei n.º 39/78, foi confirmado, depois, na Lei n.º 47/86, donde passou para a Lei Fundamental na revisão de 1989.
E parece igualmente seguro, por outro lado, que o preenchimento de tal conceito pelo legislador ordinário há-de impedir que o Ministério Público, ao qual compete defender a legalidade democrática, seja transformado em instrumento do poder político; deve, assim, ser o mesmo organizado de forma a assegurar-se a sua «isenção e imparcialidade», como se salienta no já referido parecer da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Neste contexto, não se considera que a presença de duas personalidades designadas pelo Ministro da Justiça para o Conselho Superior do Ministério Público entre em conflito com a autonomia do Ministério Público, constitucionalmente garantida.
É que, como vimos, a autonomia do Ministério Público vem desde 1978, sem que alguma vez se tivesse assinalado a existência de uma contradição insanável entre as disposições legais que a estabeleciam e caracterizavam e as que previam a designação de membros do Conselho pelo Ministro da Justiça — razão por que se não pode subscrever a tese de que a Constituição, ao proceder à recepção do conceito de autonomia, que já vinha da lei, tivesse pretendido inconstitucionalizar essa designação.
Por outro lado, de acordo com o artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 47/86, que quase reproduziu, na íntegra, o preceituado no artigo 2.º, n.º 2, da Lei n.º 39/78, «a autonomia do Ministério Público caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do Ministério Público às directivas, ordens e instruções previstas nesta lei.
Esta autonomia funcional há-de encontrar eco numa certa autonomia orgânica — sem agora se curar de saber qual o seu grau, a sua dimensão e, até, os seus limites».
27. Pouco tempo depois, no Acórdão n.º 516/1993, o Tribunal Constitucional explicitou com clareza a forma como aplica o conceito de autonomia para explicar o múnus aportado pelo Ministério Público à administração da justiça:
«resta acrescentar que a garantia constitucional da autonomia encontra a sua real justificação na necessidade que há de o Ministério Público exercer, com distanciação em relação ao poder político, a sua função típica de defender a sociedade contra a violação de bens jurídicos essenciais ao viver comunitário - a função, portanto, de "exercer a acção penal". Aí, com efeito, o Ministério Público tem que agir como verdadeiro órgão de justiça, e não como uma parte (entendida esta expressão no sentido de entidade empenhada no triunfo de uma acusação deduzida contra o arguido). Há-de, por isso, "colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito", decidindo-se e orientando-se por "critérios de estrita objectividade" (cf. o artigo 53º do Código de Processo Penal). À sua actuação há-de presidir sempre - no dizer de FIGUEIREDO DIAS - uma "incondicional intenção de verdade e de justiça" (cf. Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal - o Novo Código de Processo Penal, Coimbra, 1988, págs. 25 e 31)».
Mais tarde, no Acórdão n.º 305/2011, a propósito da fiscalização abstrata sucessiva de um conjunto de normas do Estatuto do Ministério Público e da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, depois de alterações legislativas introduzidas pela Lei n.º 52/2008, de 28 de agosto, este Tribunal esclareceu o seu entendimento acerca da projeção do princípio da autonomia do Ministério Público no que concerne à sua arquitetura institucional e esquemas organizatórios.
Interessa, para o caso presente, o seguinte excerto:
«Enquanto atributo necessário a um exercício da acção penal orientado pelo princípio da legalidade, a autonomia do Ministério Público assume um duplo sentido: significa, desde logo, que o Ministério Público, não sendo representante do Executivo, nem tendo natureza administrativa, corresponde a um poder autónomo do Estado, que se materializa quando exerce a acção penal como titular do ius puniendi; e significa ainda que o Ministério Público é um órgão dotado de independência institucional (cfr. J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ª edição, Almedina, 2003., p. 684).
No seguimento deste segundo sentido, o atributo constitucional da autonomia “vale, antes de mais, negativamente, como exigência de auto-determinação – exclusão de hetero-determinação mediante subordinação a outras entidades públicas, incluindo a exclusão de qualquer dependência do poder político (…) – e vale depois, correlativamente, como exigência de determinação de acordo com critérios de legalidade e objectividade” (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, p. 239). A autonomia constitucionalmente atribuída ao Ministério Público projecta-se, assim, no plano organizativo-institucional, implicando a instituição de formas de auto-composição ou de governo próprio, bem como a contenção dentro da hierarquia do Ministério Público dos poderes de direcção e orientação da respectiva actividade (cfr. Cunha Rodrigues, Em nome do Povo, Coimbra Editora, 1999, p.106 e ss.) no sentido da exclusão da possibilidade de qualquer outro poder, nomeadamente o executivo, impor ordens ou instruções ou influir no governo e administração daquela magistratura (cfr. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, 3ª Edição, p. 605). O que equivale a dizer que o atributo da autonomia do Ministério Público se traduz, antes de mais, numa “autonomia externa”. Por fim, essa autonomia externa é a garantia de isenção e objectividade, traduzindo para este corpo de magistrados o dever de agir através de uma subordinação exclusiva à lei e ao Direito.
[…]
8.3.7. Os referentes constitucionais representados pela autonomia do Ministério Público, pela sua definição como componente dos tribunais, e pelo estatuto de magistrado atribuído aos respectivos agentes não constituem, em suma, de um ponto de vista normativo, parâmetros suficientemente plenos e densos para impor, designadamente perante os princípios da unidade e indivisibilidade daquela magistratura e os objectivos legitimadores da sua estrutura hierárquica, a exclusão da possibilidade de intervenção conformadora da hierarquia no estabelecimento da relação entre um magistrado e um cargo.»
28. Pouco tempo depois, no Acórdão n.º 660/2011, reiterou-se o essencial do que fora dito até então, distinguindo, porém, a atuação do Ministério Público no específico âmbito da ação penal, dos outros campos em que a sua intervenção é reclamada pela lei, daí retirando consequências no plano jurídico-constitucional. Tratou-se de fiscalização concreta da constitucionalidade da norma contida no artigo 41.º da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, na parte em que exige o acordo da autoridade administrativa para a retirada da acusação pelo Ministério Público, em processo de impugnação judicial da decisão de aplicação de coima por contraordenação laboral.
Reafirmando a jurisprudência transcrita supra, este aresto – que não julgou inconstitucional a norma objeto do pedido – aprofundou a questão que se nos coloca no presente caso. Fê-lo da seguinte forma:
«O conceito de autonomia abarca a exigência de auto-determinação, implicando, numa dimensão negativa, a exclusão da hetero-determinação, através da subordinação a outras entidades públicas e, fundamentalmente, a exclusão de qualquer dependência do poder político. (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo III, Coimbra Editora, 2007, p. 239).
Na sua dimensão positiva, a autonomia traduz-se na conformação da actuação do Ministério Público por princípios de legalidade e objectividade (artigo 2.º, n.º 2 do Estatuto do Ministério Público), necessários à configuração de uma intervenção processual imparcial, entendida esta imparcialidade na sua dúplice vertente de obrigatoriedade de ausência de interesse pessoal, no desfecho do processo, pelo magistrado interveniente, e de ausência de vinculação a uma determinada posição material pré-definida (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 209).
A autonomia do Ministério Público constitui, assim, um traço essencial na definição desta magistratura como um órgão de administração de justiça, vocacionado, no âmbito da sua actuação processual mais significativa, para a colaboração na descoberta da verdade e realização do direito (cfr. artigo 53.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
A garantia constitucional da autonomia tem o seu campo de eleição no âmbito do processo penal.
[…]
A intervenção de entidades públicas, no processo penal, também não pode ser liminarmente afastada, quando “a posição da entidade pública quanto ao exercício da acção penal é decisivamente diferente da posição do Estado e lhe confere, perante o Ministério Público e as exigências próprias da respectiva intervenção, uma autonomia aproximada da de um simples particular” (cfr. J. Miranda e R. Medeiros, op. cit., p. 225, 226).
As exigências do princípio da autonomia do Ministério Público impostas, no âmbito do processo penal, não são idênticas quando a sua actuação se centra no domínio contra-ordenacional.
Na verdade, a concretização prática da autonomia assume diferentes contornos, em função da específica área de intervenção em que as numerosas atribuições do Ministério Público se localizam».
29. Por fim, no Acórdão n.º 121/2021, recordando a jurisprudência anterior, faz-se a seguinte síntese, que seria acolhida igualmente nos Acórdãos n.º 687/2021 e n.º 651/2022:
«o Ministério Público emerge do desenho jurídico-constitucional como um órgão de justiça independente e autónomo que, entre outras atribuições, exerce “a ação penal orientada pelo princípio da legalidade” (artigo 219.º, n.º 1, da CRP). A partir desta atribuição constitucional específica, combinada com o princípio do acusatório, recorta-se o estatuto do Ministério Público enquanto único sujeito processual com intervenção necessária no processo (já que este pode ser arquivado sem que tenha ocorrido qualquer constituição de arguido ou intervenção judicial) e poder exclusivo de direção do inquérito. Alguma doutrina refere-se mesmo a uma reserva de Ministério Público no processo penal, que impõe o respeito pelas funções próprias e pela autonomia daquele, em termos que determinam a exclusão, por violação da Constituição, de qualquer solução legal que coloque “o Ministério Público na dependência processual do juiz” (neste sentido, veja-se, P. Dá Mesquita, Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 51-52).».
Deste percurso jurisprudencial resulta a densificação do princípio constitucional da autonomia do Ministério Público num conjunto de premissas que relevarão no juízo a levar a cabo nos presentes autos. Em primeiro lugar, a afirmação da autonomia constitucional do Ministério Público, consagrada no artigo 219.º, n.º 2, da CRP, como uma autonomia externa, ou independência do poder político: “o princípio da autonomia do Ministério Público nutre-se do mesmo substrato material que caracteriza o princípio da independência judicial. E tal como sucede com este último princípio, também a realização efetiva daquele carece de uma blindagem da estrutura e da ação do Ministério Público que as ponham a salvo de ingerências ou pressões de outros poderes do Estado, desde logo e sobretudo do poder político” (cfr. Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Direito Processual Penal - Os sujeitos processuais, Gestlegal, Coimbra, 2022, p. 135). Em segundo lugar, esse princípio encontra o seu palco de atuação, por excelência, no plano do exercício da ação penal e, portanto, no quadro de um processo criminal concreto. Por último, note-se que o Tribunal Constitucional tem admitido uma distinta modelação do princípio da autonomia do Ministério Público consoante o específico âmbito de intervenção em causa, entendendo que a interação, necessária porque legalmente imposta, com entidades administrativas não contende, forçosamente, com aquela, devendo avaliar-se se se assegura, ou não, na prática, o livre exercício do núcleo essencial dos seus poderes.
D) Questão de constitucionalidade
30. Atentos todos os elementos já expostos, cabe, agora, proceder à análise da questão de constitucionalidade trazida à apreciação do Tribunal Constitucional pelo Presidente da República. Para o efeito, é indispensável assinalar e compreender a natureza das alterações introduzidas no âmbito da estrutura do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI). É, porém, de assinalar, antes de mais, que existe uma marcada linha de continuidade com a situação normativa anterior, nos termos que em seguida se explicarão.
Assim, e em primeiro lugar, cabe notar que o artigo 12.º da Lei n.º 49/2008 sofre mudanças significativas, que se traduzem na integração das unidades de cooperação internacional dos órgãos de polícia criminal no quadro do PUC-CPI. Como acima se explicou, este passa a ser o centro operacional responsável pela coordenação da cooperação policial internacional, consagrando-se, na nova versão do artigo 12.º, solução idêntica à estatuída no artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, que, na versão do Decreto n.º 17/XV, prevê que o PUC-CPI integra, sob a mesma gestão, o Gabinete Nacional Sirene, a Unidade Nacional da Europol, o Gabinete Nacional da Interpol, o Gabinete de Informações de Passageiros, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, e ainda a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira e dos pontos de contacto decorrentes das Decisões Prüm.
É ainda importante atentar no facto de a versão vigente do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008 e do artigo 2.º do Decreto-lei n.º 10/2020 preverem que o PUC-CPI “assegura o encaminhamento dos pedidos de informação nacionais, a receção, o encaminhamento e a difusão nacional de informação proveniente das autoridades policiais estrangeiras, a transmissão de informação e a satisfação dos pedidos por estas formulados”, enquanto o n.º 1 do artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, na versão introduzida pelo artigo 2.º do Decreto n.º 17/XV, ora questionado, alarga essa competência aos pedidos feitos pelas autoridades estrangeiras, deixando de se exigir que se trate de autoridades policiais. Desta forma, procura-se enfrentar as dificuldades decorrentes do facto de o âmbito da atuação policial e da atuação judiciária não ter idêntico recorte em todos os países da União Europeia, o que coloca dificuldades à cooperação internacional.
Por fim, note-se que a Polícia Judiciária, a Guarda Nacional Republicana, a Polícia de Segurança Pública e o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras continuam a integrar, à luz do n.º 3 do artigo 12.º da Lei n.º 49/2008 na versão do Decreto n.º 17/XV, ora questionado, através de oficiais de ligação permanente, o Gabinete Nacional de Ligação a funcionar junto da Europol (mas não necessariamente o da Interpol), passando a atribuir-se ao SGSSI a competência para definir, “mediante despacho, o respetivo modo de funcionamento interno e designação da chefia, a qual é exercida por um quadro da Polícia Judiciária”.
31. No que respeita às alterações introduzidas na Lei n.º 53/2008, o artigo 23.º-A, atinente ao Ponto Único de Contacto, sofre mudanças assinaláveis.
Antes de mais, assinale-se que, tal como previsto na nova versão do artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, o PUC-CPI passa a integrar, o Gabinete Nacional Sirene, a Unidade Nacional da Europol, o Gabinete Nacional da Interpol, o Gabinete de Informações de Passageiros, a coordenação dos oficiais de ligação nacionais e estrangeiros, a coordenação dos Centros de Cooperação Policial e Aduaneira e dos pontos de contacto decorrentes das Decisões Prüm (novo n.º 6 do artigo 23.º-A do diploma citado). Nos termos do n.º 8 da nova versão deste artigo, a chefia do Gabinete Europol e Interpol “compete, por inerência, ao Coordenador de Gabinete da Polícia Judiciária”.
Além disso, e à semelhança do o artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, prevê-se, no n.º 1 daquele artigo, que o PUC-CPI responda aos pedidos de informação e cooperação realizados pelas autoridades estrangeiras (e já não apenas autoridades policiais, pelas razões acima explicadas). As competências do Ponto Único de Contacto são, por seu turno, alargadas, nos seguintes termos:
i) O PUC-CPI passa a poder identificar e promover a utilização de soluções de gestão de processos eficazes e definir fluxos de trabalho especificamente destinados à cooperação policial internacional (em todo o seu âmbito e já não apenas em matéria de assistência jurídica mútua, como resulta da atual versão da alínea f) do n.º 2 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008).
ii) O PUC-CPI passa a ser o organismo competente para “auxiliar as autoridades judiciárias, nos termos da lei processual penal, no âmbito da cooperação judiciária internacional em matéria penal” (nova alínea j) do artigo 23.º-A do diploma citado).
iii) Atribui-se ao PUC-CPI competência para “receber e encaminhar os pedidos de detenção provisória que devam ser executados em processos de extradição, nos termos da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto, que aprova a lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal” (nova alínea k) do mesmo artigo).
iv) Por fim, o PUC-CPI é designado como responsável por “garantir a operacionalidade dos mecanismos em matéria de coadjuvação às autoridades judiciárias na cooperação judiciária internacional em matéria penal, no âmbito da Organização Internacional de Polícia Criminal (OIPC/Interpol), da Europol e de outros organismos internacionais da mesma natureza” (nova alínea l) do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008).
É relevante notar, neste plano, que as intervenções do PUC-CPI em matéria judiciária são sempre concebidas como subsidiárias, ou seja, como tarefas de coadjuvação e auxílio às autoridades judiciais. Além disso, e como bem assinala o Parecer do Conselho Superior do Ministério Público, muitas das soluções consagradas nas normas questionadas limitam-se a reproduzir o modelo já existente. Por exemplo, a transmissão, por via de intervenção do PUC, de pedidos de detenção provisória, a que se referem as alterações previstas na alínea k) do artigo 23º-A, constitui uma adaptação do disposto nos artigos 38.º, n.º 4, e 29.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto (Lei da cooperação judiciária internacional em matéria penal) que atribuíam esta competência ao Gabinete Nacional da Interpol.
32. No quadro de um significativo reforço das competências do SGSSI, entendido pelo legislador como elemento essencial na garantia da coerência, operacionalidade, da boa articulação e da coordenação entre as diversas forças e serviços de segurança, aquele passa a designar por despacho, sob proposta dos dirigentes máximos das respetivas forças ou serviços de origem, os coordenadores de gabinete, no quadro do PUC-CPI (novo n.º 5 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008), deixando essa tarefa de caber aos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna e da justiça.
O artigo 3.º do Decreto n.º 17/XV atribui ainda outras competências ao SGSSI, nomeadamente, a de coordenação dos “trabalhos preparatórios no âmbito do mecanismo de avaliação da aplicação do acervo de Schengen” e de acompanhamento, “em estreita articulação com as diversas entidades competentes, [d]o seguimento das ações decorrentes das avaliações realizadas naquele âmbito” (alterando o artigo 16.º da Lei n.º 53/2008) e prevê a sua audição prévia aquando da nomeação dos dirigentes máximos da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Judiciária (adicionando um novo n.º 5 ao artigo 25.º do diploma referido).
Por último, no plano da coordenação com outras autoridades, com competências específicas, os novos n.ºs 13 e 14 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008 estatuem por um lado, que o “Ministério Público pode promover o envio ao PUC-CPI das certidões das decisões judiciais proferidas contra cidadãos estrangeiros condenados, para efeitos de comunicação ao país de origem em casos de urgência”; e, por outro, que a “Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais comunica ao PUC-CPI os factos relevantes relativos ao cumprimento das penas aplicadas a cidadãos estrangeiros”.
Note-se, no entanto, que, apesar deste alargamento de competências, o sistema mantém em vigor barreiras específicas, com o propósito de evitar o acesso do SGSSI a informação criminal respeitante a processos concretos. Vejam-se, a título de exemplo, as salvaguardas constantes do artigo 6.º Decreto-Lei n.º 10/2020, acima citado; e, ainda, da Lei n.º 73/2009, de 12 de agosto, que estabelece as condições e os procedimentos a aplicar para assegurar a interoperabilidade entre sistemas de informação dos órgãos de polícia criminal (em particular, os artigos 10.º e 14.º) e na Lei n.º 74/2009, de 12 de agosto, que aprova o regime aplicável ao intercâmbio de dados e informações de natureza criminal entre as autoridades dos Estados membros da União Europeia (em especial, os artigos 5.º e 15.º). Aliás, nos termos do artigo 10.º da Lei n.º 73/2009, o acesso à plataforma para o intercâmbio de informação criminal por via eletrónica entre os órgãos de polícia faz-se de acordo com diferentes perfis, estruturados segundo as distintas atribuições e competências dos órgãos de polícia criminal, Ministério Público e magistrados judiciais, não se incluindo o SGSSI.
33. Estas alterações traduzem-se, pois, numa evolução do complexo normativo em causa, em torno de alguns eixos essenciais.
Em primeiro lugar, nota-se a consolidação do PUC-CPI como o ponto de contacto único, no que respeita à cooperação policial internacional, facto realçado, antes de mais, pela transferência da Unidade Nacional Europol e do Gabinete Nacional Interpol, que deixam de integrar a Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária. Esta opção corresponde a uma exortação das instituições competentes da União Europeia, e pretende aumentar a simplicidade, eficiência e eficácia da cooperação internacional neste domínio (cfr. a “Decisão de execução do Conselho que estabelece uma recomendação para suprir as deficiências identificadas na avaliação de 2017 da aplicação pela república Portuguesa do acervo Schengen no domínio da cooperação policial” [Doc. 15809/18, de 20 de dezembro de 2018, SCH-EVAL 264]; e o Despacho n.º 4270/2019 do Primeiro Ministro, publicado no DR II, de 23.4.2019).
Em segundo lugar, é de realçar o alargamento das competências do PUC-CPI, no sentido de este poder ter uma atuação de coordenação mais ampla do que até ao momento, designadamente, encontrando soluções próprias de gestão de pedidos e processos, servindo de intermediário na receção e encaminhamento dos pedidos de detenção provisória que devam ser executados em processos de extradição e, ainda, garantindo a operacionalidade dos mecanismos em matéria de coadjuvação às autoridades judiciárias na cooperação judiciária internacional em matéria penal.
Em terceiro lugar, é evidente o reforço do papel de direção e coordenação atribuído ao SGSSI, que passa a ter poderes de nomeação de um conjunto de dirigentes administrativos, no quadro do PUC-CPI, e a dever ser ouvido aquando da nomeação dos dirigentes máximos da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública e da Polícia Judiciária; recebe ainda novas competências no plano do acompanhamento da avaliação internacional da cooperação policial.
Por fim, assinalem-se algumas alterações avulsas, e em linha de continuidade com o disposto noutros diplomas legais, nos termos explicados, designadamente a possibilidade de recurso ao PUC-CPI como instrumento de comunicação, por um lado, pelo Ministério Público para transmissão de certidões, embora apenas em casos de urgência (presumindo-se que, em situação de normalidade, operarão com diligência suficiente os canais específicos da cooperação judiciária) e, por outro, pela Direção-Geral dos Serviços Prisionais quanto a factos relativos ao cumprimento de pena por cidadãos estrangeiros; estas mudanças podem ainda compreender-se no quadro de um redesenho do PUC-CPI como veículo primordial de cooperação internacional do Estado português em matéria de segurança interna, lato sensu.
34. Como se pode depreender do pedido, estas alterações legislativas parecem ter suscitado dúvidas de constitucionalidade em dois planos distintos: i) no plano da separação de poderes, em virtude de a atuação do PUC-CPI ser passível de, alegadamente, se alargar a matérias especificamente jurisdicionais, invadindo a competência dos órgãos próprios, nesse domínio; ii) no plano da autonomia do Ministério Público, devido ao facto de este poder ver condicionado o exercício das suas competências, nomeadamente no caso de se ver ultrapassado por decisões de órgãos administrativos no âmbito de investigações criminais.
Vejamos.
35. O problema das potenciais tensões entre a atuação das polícias e o espaço constitucionalmente reservado ao Ministério Público, designadamente no âmbito da ação penal, foi bem descrito por Faria Costa: “As relações entre a polícia criminal e o Ministério Público constituem um daqueles pontos onde se cruzam interesses processuais e se desenham tensões sociológicas, se não absolutamente divergentes, pelo menos incoincidentes”. Na verdade, explica o autor, “a polícia, qualquer polícia, desenvolve, até como forma de optimização da eficácia que se lhe pede – dir-se-ia até que a comunidade, em geral, não lhe pede, mas antes lhe exige – uma lógica de quase autónoma actuação e uma representação simbólica de si mesma” (cfr. J. de Faria Costa, As relações entre o Ministério Público e a polícia: a experiência portuguesa, Boletim da Faculdade de Direito, vol. 70 (1994), Coimbra: [s.n.], 1994, p. 221- 246).
Assim, e no que respeita à atuação da polícia no âmbito da investigação criminal e do processo penal, ou seja, no âmbito judiciário, o atual modelo português de articulação entre as autoridades policiais e o Ministério Público tem sido caraterizado, com base nas disposições do Código de Processo Penal, como um modelo de dependência funcional, no qual os órgãos de polícia criminal atuam na dependência funcional e sob a orientação das autoridades judiciárias, mantendo, porém, autonomia administrativa, facto com projeções não só na respetiva arquitetura institucional e dependência hierárquica, mas também no que respeita à orientação técnica e tática das suas ações. Rejeitou-se, pois, no nosso país, quer o modelo de total autonomia (dir-se-ia mesmo de independência) da atuação das polícias, quer um modelo de completa dependência organizatória, que implicaria uma divisão quanto aos órgãos policiais, estando a polícia criminal, com funções específicas no quadro do processo penal, na exclusiva dependência das autoridades judiciárias (neste sentido, veja-se J. Damião da Cunha, “O Modelo Português – A Dependência Funcional”, in Modelos de polícia e investigação criminal, Gailivro, Vila Nova de Gaia, 2006, pp. 97-110).
No entanto, e como resulta da leitura atenta da Lei n.º 52/2008, a função de segurança interna é estrutural e constitucionalmente distinta do poder judicial, e da atividade de natureza judiciária consubstanciada no exercício da ação penal, tendo as forças de segurança, designadamente as polícias, um papel autónomo e indispensável a desempenhar nesse plano. Recorde-se que, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º da Lei de Segurança Interna, esta consiste na atividade desenvolvida pelo Estado para garantir a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, proteger pessoas e bens, prevenir e reprimir a criminalidade e contribuir para assegurar o normal funcionamento das instituições democráticas, o regular exercício dos direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos e o respeito pela legalidade democrática.
Assim, as forças de polícia, com destaque para a Polícia Judiciária, pautam-se por uma transversalidade funcional, no quadro de um modelo de convivência entre a repressão da criminalidade, que pertence ao domínio judiciário, e a segurança interna, assente na sua prevenção, que permite a convergência e complementaridade das suas distintas atuações, sem que isso altere a natureza orgânica e a esfera competencial de cada uma das entidades envolvidas - Ministério Público, magistratura judicial ou, ainda, outras forças de segurança (neste sentido, cfr. José Braz, “Política Criminal e Sistemas de Coordenação da Investigação Criminal”, in Modelos de polícia e investigação criminal, Gailivro, Vila Nova de Gaia, 2006, pp. 111-131).
36. É importante reforçar a observação de que a missão das polícias não se esgota no âmbito da investigação criminal, pois, nessa medida, haverá áreas de cooperação direta entre órgãos policiais, no plano internacional, que não dependem da articulação com e do cumprimento das orientações do Ministério Público. Efetivamente, e atentando no âmbito de atuação das distintas unidades orgânicas do PUC-CPI, várias das informações partilhadas entre os pontos de contacto ali reunidos cingir-se-ão, em regra, à atividade da polícia administrativa. Como ensina P. Gonçalves, “no âmbito da missão geral de garantia da vida social ordenada e de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos [cf. artigo 9.º, alínea b), da CRP], uma missão essencial do Estado Administrativo consiste em garantir a ordem e a segurança pública, a segurança e a tranquilidade dos cidadãos, a defesa da lei e a fiscalização do respetivo cumprimento e em assegurar a efetividade prática dos atos da Administração. É este o domínio da polícia de segurança, atividade que reconduzimos ao conceito de polícia administrativa” (Pedro Costa Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 1052 e sgs.)
Aliás, é de recordar, neste ponto, que a polícia tem um lugar constitucional próprio, nos termos do disposto no artigo 272.º da CRP, que lhe atribui especificamente as tarefas de “defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”, adotando, para tal, as medidas de polícia previstas na lei. A Constituição estatui ainda que cabe à polícia a missão de prevenção dos crimes, incluindo dos crimes contra a segurança do Estado, que deve ser desempenhada com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos e pela legalidade democrática.
Nestes termos, à polícia cabe uma função administrativa própria, que se distingue, quer em razão do objeto da sua atuação – os bens jurídicos específicos que, à luz da Constituição, tem a função de proteger e defender –, quer em razão do respetivo objetivo – a prevenção (neste sentido, de novo, Pedro Costa Gonçalves, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 1052 e sgs.) Repare-se que a CRP não elenca os órgãos que desempenham a função de polícia, pelo que, sendo esta uma função da Administração, serão por ela responsáveis, em primeira linha, os seus titulares, designadamente o Governo, por força do disposto nos artigos 182.º e 199.º, n.º 1, alínea f), da CRP (neste sentido, cfr. J. J. Gomes Canotilho e V. Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. II, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 858 e sgs.).
Neste quadro, torna-se mais fácil compreender que a Polícia Judiciária tenha competências e atue no âmbito da investigação criminal e, portanto, do processo penal, estando, nesse plano, e como se explicou, na dependência funcional das autoridades judiciárias, designadamente do Ministério Público, e agindo sob sua direção; mas que, paralelamente, a lei lhe atribua também, entre outras, as missões de desenvolver ações de prevenção e deteção da criminalidade, nomeadamente as que lhe sejam cometidas pela Lei de Segurança Interna, e de realizar, enquanto entidade oficial, perícias e exames. Esta duplicidade de atribuições justifica, assim, a sua qualificação legal como força ou serviço de segurança, para efeitos do Sistema de Segurança Interna (veja-se a alínea c) do n.º 2 do artigo 25.º da Lei n.º 53/2008). Este aspeto releva para a análise da presente questão de constitucionalidade, designadamente para a compreensão das eventuais consequências da transferência da Unidade Nacional Europol e do Gabinete Nacional Interpol da Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária para o PUC-CPI, nos termos que infra se exporão.
37. Nestes termos, e para analisar, de modo adequado, a questão de constitucionalidade que se nos coloca, é indispensável compreender a específica articulação entre as dimensões policial e judiciária da cooperação internacional. Como é evidente, sempre que as medidas de polícia adotadas ou as diligências efetuadas pelas forças de segurança se situem no quadro de um processo penal envolverão, incontornavelmente, as autoridades judiciárias competentes para autorizar a prática de um conjunto de atos, em particular os que sejam potencialmente lesivos de direitos fundamentais. Todavia, resulta das diferenças de legislação no espaço europeu que não há uma correspondência unívoca entre atuação policial e atuação judiciária em todos os Estados-Membros da UE e, como acima se referiu, nos termos do artigo 3.º, n.º 3, da Decisão-Quadro 2006/960/JAI (Decisão Sueca) não podem ser aplicadas ao fornecimento e ao pedido de dados e informações às autoridades competentes de aplicação da lei de outros Estados-Membros condições mais restritivas do que as aplicadas ao abrigo do direito interno, não devendo ser subordinado a acordo ou autorização judicial o intercâmbio de dados ou informações a que a autoridade competente de aplicação da lei requerida possa ter acesso, num procedimento interno, sem acordo ou autorização judicial. Por outro lado, o n.º 4 do mesmo artigo prevê que sempre que o direito interno do Estado-Membro requerido só permita que a autoridade competente de aplicação da lei requerida tenha acesso aos dados ou informações solicitadas mediante acordo ou autorização de uma autoridade judiciária, a autoridade competente de aplicação da lei requerida é obrigada a solicitar o acordo ou a autorização à autoridade judiciária competente para o efeito. Ou seja, o PUC-CPI apenas fornecerá, sem intervenção judiciária, através dos seus distintos pontos de contacto, os dados e informações acessíveis a consulta policial à luz do direito nacional, e situando-se no plano da prevenção de atividade criminosa, e da garantia da legalidade democrática e dos direitos dos cidadãos; quando assim não aconteça, deverá requerer a intervenção do Ministério Público.
De todo o modo, e em princípio, quando se trate de processo penal, conduzido pelas autoridades judiciárias, bem como nos casos em que as informações a transmitir pelos pontos de contacto nacionais tenham por finalidade ser utilizadas como prova, será necessário recorrer aos mecanismos de cooperação judiciária. Efetivamente, é importante notar que a cooperação judiciária tem, no quadro complexo que resulta da interação entre o direito da União Europeia e o direito interno, um caminho e instrumentos próprios. Além do que já decorria da Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 1959, assinada no quadro do Conselho da Europa, a UE tem um importante acervo legislativo sobre a matéria, com destaque para a instituição do Eurojust e para a Rede Judiciária Europeia em matéria penal, acima mencionados, no plano da justiça criminal. Estes não integram o PUC-CPI, numa manifestação de respeito pela divisão de poderes e repartição de competências entre órgãos administrativos e judiciários, aliás consonante com o direito da União Europeia.
38. É certo que, apesar de configurarem políticas distintas, a fronteira entre os dois tipos de cooperação - judiciária e policial -, a nível europeu, nem sempre é inteiramente nítida, em virtude da diferente distribuição de competências entre os órgãos de polícia criminal e as autoridades judiciárias, nos vários Estados-Membros. Como explica F. Borges, “Fundamentalmente, cooperação judiciária em matéria penal significa cooperação entre autoridades judiciárias – juízes ou magistrados do Ministério Público –, para efeitos da prossecução do processo penal, em qualquer das suas fases. Distinguir-se-ia, nesta medida, da cooperação policial, efectuada entre autoridades policiais ou análogas e menos abrangente que a judiciária, por se concentrar na prevenção e detecção de infracções penais. No entanto, estas noções, tendencialmente exactas, necessitam de algumas precisões, pois existe uma clara interpenetração entre a cooperação judiciária e a cooperação policial. É que as atribuições das polícias e das autoridades judiciárias, maxime do Ministério Público, diferem de Estado-Membro para Estado-Membro. Por exemplo, certas funções que, em Portugal, pertencem ao Ministério Público são, noutros Estados, atribuídas a órgãos de polícia. Na verdade, mesmo em Portugal, na fase processual do inquérito, as actividades do Ministério Público e dos diferentes órgãos de polícia criminal estão claramente interligadas, pois, se é certo que o inquérito é dirigido pelo Ministério Público, a investigação criminal propriamente dita é efectuada pela polícia. Assim, está prevista a cooperação entre autoridades policiais em diversos instrumentos jurídicos que versam sobre cooperação judiciária em matéria penal. Característica essencial desta é que tenha em vista o processo penal – o que exclui em princípio, por exemplo, a cooperação entre serviços secretos, mas não entre polícias ou mesmo entre governos, como no mecanismo clássico da extradição” (cfr. Francisco Borges, “Criminalidade organizada e cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia: traços gerais.”, in J. Bacelar Gouveia (coordenação), Estudos de Direito e Segurança, Vol. II, Almedina, Coimbra, 2012, p.135).
Este problema tem, aliás, eco no plano do ordenamento jurídico interno, já que, também aí, nem sempre as fronteiras entre as distintas formas de atuação das forças de segurança serão facilmente traçadas: “definidos os termos do âmbito da actividade de Administração de Justiça e de Administração Interna (policial) com a consequente diferenciação de supremacias e de intencionalidades de actuação e tendo presente aquela fluidez de distinção, decerto se poderão verificar situações em que, ao nível funcional, os agentes policiais – órgãos de polícia criminal deparem com verdadeiras situações de cumprimento de exigências contraditórias (...) quando perante uma mesma situação se verifiquem os pressupostos de uma atividade policial e os pressupostos do processo penal, colidindo as exigências entre si”. Estas situações, na prática inevitáveis, “corresponderão a um verdadeiro teste à eficiência da cooperação entre polícias e MP” (cfr. J. Damião da Cunha, O Ministério Público e os órgãos de polícia criminal no novo Código de processo penal, Universidade Católica, Porto, 1993, pp. 227-228).
39. No âmbito em que nos situamos, porém, é na estrita medida em que se afigure necessária a atuação das autoridades policiais, para a prática de atos tipicamente integrados na sua esfera de atuação, embora no âmbito da cooperação judiciária, que devem ser entendidas algumas das competências atribuídas agora ao PUC-CPI – por exemplo, o auxílio às autoridades judiciárias, nos termos da lei processual penal (alínea j) do n.º 2 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, na versão do Decreto n.º 17/XV) ou a receção e encaminhamento dos pedidos de detenção provisória a executar em processos de extradição (alínea k) do mesmo artigo) – sem que isso implique uma subversão da separação de poderes, ou o cerceamento da autonomia do Ministério Público na condução dos inquéritos em processo penal.
É, aliás, para assegurar o respeito pelos mencionados princípios da divisão de poderes e da autonomia do Ministério Público, no quadro da ação penal, que a Lei de Segurança Interna (Lei n.º 53/2008, aqui em causa) consagra a existência, no PUC-CPI, de um magistrado do Ministério Público que faça a ligação entre aquele organismo e a sua magistratura. Assim, prevê o n.º 10 do artigo 23.º-A da referida lei, que permanece inalterado pelo Decreto n.º 17/XV, que “A/O Procuradora/or-Geral da República indica um ponto de contacto que assegura a articulação permanente entre o Ministério Público e o PUC-CPI, para o exercício das competências que lhe são próprias, no processo penal”. É por demais evidente, no quadro de uma interpretação sistémica e constitucionalmente coerente das funções do PUC-CPI, no plano da segurança interna, que haverá múltiplos casos em que a cooperação policial (ou seja, situada fora da prossecução da ação penal), exigirá, ainda assim, para cumprimento das disposições legais e salvaguarda dos direitos fundamentais, uma intervenção judiciária, que deverá ser articulada entre o PUC-CPI e o Ministério Público, razão pela qual é central a presença de um magistrado como elemento de ligação. Por outro lado, haverá pedidos de autoridades policiais de Estados-Membros que correspondam, à luz do direito interno, ao exercício de competências próprias do Ministério Público, ou até do Juiz de Instrução Criminal, razão pela qual haverá que ser solicitada pelo PUC-CPI a sua intervenção, também através do magistrado de ligação.
Por outro lado, note-se igualmente que, nos termos do artigo 6.º do Decreto-Lei n.º 10/2020, já mencionado, se garante que todas as pessoas que desempenham funções no PUC-CPI estão vinculadas por um dever de sigilo, modelado pelas normas em vigor consoante a natureza da informação, designadamente, os deveres que resultam dos respetivos estatutos de origem, dos regimes do segredo de Estado, do segredo de justiça e do quadro normativo respeitante à segurança das matérias classificadas.
40. Face a tudo o que atrás se afirmou, não se crê que as normas questionadas sejam passíveis de gerar uma invasão da esfera de competências do Ministério Público pela atuação dos serviços e órgãos de polícia integrados no PUC-CPI em termos tais que configurem uma violação da separação de poderes, ou uma afronta à sua autonomia, contrárias à Constituição da República Portuguesa.
Em primeiro lugar, cabe recordar que a cooperação policial internacional, ainda que levada a cabo no quadro da integração funcional no PUC-CPI, não deixa de ser isso mesmo – cooperação policial. Veja-se, desde logo, que, nos termos do Decreto-Lei n.º 10/2020, acima mencionado e que estabelece a orgânica do Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, o PUC-CPI se integra no Sistema de Segurança Interna e, nessa medida, está sob dependência do SGSSI, mas a sua coordenação é assegurada, rotativamente, por cada um dos coordenadores de gabinete do Gabinete de Gestão, nesta função denominado coordenador-geral (n.º 3 do artigo 2.º e n.º 4 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 10/2020). Ora, este Gabinete de Gestão é constituído por membros das forças policiais, designadamente, por elementos da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública, e da Polícia Judiciária, designados coordenadores de gabinete, chefiando, cada um deles, uma das unidades orgânicas do PUC-CPI (n.ºs 1 e 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 10/2020 e o n.º 4 do art. 23.º-A da Lei n.º 53/2008).
Por outro lado, de acordo com o disposto no n.º 5 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 10/2020, o “funcionamento ininterrupto do PUC-CPI é assegurado, em regime de turnos, por elementos da Guarda Nacional Republicana, da Polícia de Segurança Pública, da Polícia Judiciária, do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras e, no âmbito do Gabinete de Informações de Passageiros, igualmente por elementos da Autoridade Tributária e Aduaneira, podendo ainda integrar um elemento de ligação da Polícia Marítima”. Estes elementos são indicados pelas respetivas entidades e nomeados por despacho do SGSSI, exercendo as suas funções em regime de comissão de serviço, mantendo a remuneração devida na situação jurídico-funcional de origem, bem como “a sua natureza funcional policial e de órgão de polícia criminal, e todos os direitos inerentes aos respetivos postos ou lugares de origem.” Além disso, os encargos com a respetiva remuneração são suportados pela respetiva entidade, sendo apenas o suplemento remuneratório de turno encargo do Gabinete do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna. (cfr. n.ºs 1 e 2 do artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 10/2020).
A Lei n.º 53/2008 prevê também que, para efeitos do Sistema de Segurança Interna, e no âmbito das suas competências, só podem ser consideradas autoridades de polícia os funcionários superiores indicados como tais nos diplomas orgânicos das forças e dos serviços de segurança (artigo 26.º); estatui a exclusiva competência da Polícia Judiciária para execução do controlo das comunicações mediante autorização judicial (artigo 27.º); e dedica ainda um capítulo próprio (Capítulo V) às medidas de polícia e respetivos pressupostos de execução.
41. É certo que nem todos os elementos do PUC-CPI são agentes da autoridade ou pertencem ao quadro dos órgãos de polícia criminal. O PUC-CPI dispõe de um conjunto de serviços de apoio jurídico, técnico e administrativo, cujos trabalhadores têm formação profissional nas áreas jurídica, da tradução e interpretação, das tecnologias da informação, e do secretariado e arquivo, com funções de consultoria técnica e planeamento, bem como de apoio aos procedimentos de natureza administrativa (artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 10/2020). No entanto, estes serviços de apoio não têm poderes de direção das atividades ou ações de cooperação policial, limitando-se a assessorar no cumprimento da missão e objetivos estabelecidos para o PUC-CPI, e funcionam na dependência direta do coordenador-geral que, como se viu, é sempre um elemento do quadro de uma força policial.
Na verdade, a integração na mesma entidade dos vários pontos de contacto acima elencados como unidades orgânicas do PUC-CPI não pretende representar uma alteração drástica do ponto de vista da repartição de competências entre órgãos de polícia e autoridades judiciárias (em particular, o Ministério Público), nem retirar aos órgãos de polícia criminal os poderes e competências que lhes são próprios; o que se visa, sim, e com o objetivo de cumprir recomendações decorrentes do direito da União Europeia, é coordenar formas distintas – e dispersas – de cooperação internacional, conferindo-lhes maior eficácia e coerência, através da reunião de distintos pontos de contacto internacionais, na definição do Decreto-Lei n.º 10/2020, num único centro operacional.
Assim, a estrutura orgânica do PUC-CPI demonstra que, mesmo com as alterações introduzidas pelas normas questionadas, a cooperação internacional coordenada por este organismo continua a ser estritamente policial – é levada a cabo por autoridades policiais, sob direção de um coordenador-geral que é, necessariamente, quadro de um órgão de polícia, e tendo como destinatários as autoridades policiais dos restantes Estados-Membros da União Europeia.
42. No fundo, e pelas razões explanadas, do ponto de vista orgânico, as alterações introduzidas pelas normas questionadas não representam uma alteração significativa – o princípio da divisão de poderes, nos termos do artigo 111.º da Constituição, não é, pois, posto em causa.
As mudanças são expressivas, sobretudo, ao nível funcional, pelas implicações da deslocação de todos os pontos de contacto em causa – mas, em particular, da Europol e da Interpol – para a esfera da segurança interna. Efetivamente, esta opção é demonstrativa do facto de, no âmbito de atuação destes organismos, a atividade do Estado ser, hoje, simultaneamente, de repressão e de prevenção. Face a novas formas de criminalidade, as fronteiras entre estas duas categorias tendem a diluir-se, surgindo as chamadas investigações de campo avançado, assim explicadas por costa andrade: “Tanto do lado da justiça criminal como do lado da prevenção de perigos, a “luta” contra o crime deslocou-se em boa medida para o chamado Vorfeld (campo avançado). De um lado e do outro, a intervenção das respectivas instâncias assume cada vez mais uma dimensão pró-activa: de um lado, não se espera a prática do crime para começar, por exemplo, a investigar e recolher provas; do outro, não se espera que o perigo se concretize para pôr em campo acções de prevenção. (...) Partindo dos seus originários e separados territórios, investigação criminal e prevenção policial desenvolvem assim tropismos de convergência para um mesmo e novo espaço onde levam a cabo acções cada vez com mais significativos momentos comuns. (...) As investigações de campo avançado são normalmente levadas a cabo pelas mesmas instâncias policiais, umas vezes na veste de órgão de polícia criminal, outras na qualidade de polícia em sentido técnico. E comportam sempre coeficientes maiores ou menores de prevenção e repressão. O que dificulta a sua caracterização e arrumação já que o critério tradicional e formal, assente no tempo da intervenção das autoridades, perde a sua fecundidade heurística” (cfr. M. da Costa Andrade, “Bruscamente, no Verão passado”, a Reforma do Código de Processo Penal – Observações críticas sobre uma lei que podia e devia ter sido diferente, Coimbra Editora, 2009). Aliás, o Tribunal Constitucional alemão (cfr. Acórdão do 1.º Senado, de 27 de julho de 2005, 1 BvR 668/04), abordando questão paralela, distinguiu, a par das tradicionais repressão e prevenção, as categorias da providência para a perseguição de crimes (“Vorsorge für die Verfolgung oder die Verhütung von Straftate”) e combate preventivo ao crime ("zur vorbeugenden Bekämpfung besonders schwerwiegender Straftaten").
Nesta linha, este Tribunal Constitucional explicou, no Acórdão n.º 464/2019, o seguinte:
“como a generalidade das polícias com funções de investigação criminal, desenvolvida nas fases de inquérito ou de instrução de um processo penal, também detêm funções de prevenção quanto às infrações relativas às suas competências, por vezes, verificam-se dificuldades de caraterização e diferenciação entre estes dois domínios, tanto mais delicadas quanto é certo que as regras a observar consoante se atua no domínio da prevenção ou no da investigação, não são – ou podem não ser – as mesmas. O critério formal e tradicional de distinção entre prevenção e investigação, assente no tempo de intervenção das autoridades, perde os seus contornos claros. Os meios ocultos de investigação, mesmo quando partem do processo penal, podem descobrir “crimes” possíveis ou prováveis ou perigos suscetíveis de vir a atualizar-se. Uma prevenção criminal positiva ou pró-ativa, como aquela que o Estado pretende para combater as novas formas de criminalidade organizada, não espera pela prática do crime para começar a investigar e recolher provas. Daí que, em certos casos, a colheita de informação mesmo antes de surgir o fumus commissi delicti, para ser valorada num futuro processo penal, possa consubstanciar uma “investigação de campo avançado”, ou de um tertium genus ou terceira tarefa da polícia, materialmente elevada ao estatuto de investigação própria do processo penal”.
Aliás, o conceito de “operação de informações criminais” (consagrado no artigo 2.º, alínea c), da Lei n.º 74/2009, que transpõe a Decisão-Quadro sueca) positiva esta realidade. Ora, face à caraterização feita do PUC-CPI, é fácil compreender que a sua principal missão é a recolha e transmissão coordenada de informação, precisamente, no campo da investigação avançada. Esta opção do legislador, com possíveis vantagens no domínio da prevenção de crimes, situa-se num âmbito no qual a CRP não impõe regras sobre a estrutura da relação entre polícias e Ministério Público; assim, ficando o modelo de articulação entre ambos, no campo da investigação avançada, na margem de conformação do legislador, a solução em causa não pode ter-se por inconstitucional.
43. Uma das principais (e potencialmente mais problemáticas) diferenças entre a atual arquitetura institucional – no quadro da qual a Unidade Nacional Europol e o Gabinete Nacional Interpol ainda fazem parte da Unidade de Cooperação Internacional da Polícia Judiciária – e a que resulta das normas cuja fiscalização da constitucionalidade é requerida consiste no facto de, na versão inalterada do sistema, aquelas unidades estarem sob dependência do Diretor Nacional da Polícia Judiciária; já no novo esquema organizatório, instituído pelas normas ora questionadas, passam a estar na dependência e sob coordenação do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, na medida em que integram o PUC-CPI (nos termos do n.º 3 do artigo 23.º-A da Lei n.º 53/2008, que permanece inalterado). O SGSSI, por seu turno, e como acima se explicou, funciona na direta dependência do Primeiro-Ministro ou, por sua delegação, do Ministro da Administração Interna, sendo equiparado, para todos os efeitos legais, exceto os relativos à sua nomeação e exoneração, a secretário de Estado (artigo 14.º, n.ºs 1 e 2, da mesma lei).
Pode questionar-se se desta mudança resulta um aumento significativo do controlo direto da atuação das várias unidades orgânicas do PUC-CPI por parte do Governo, na medida em que ficam na dependência do SGSSI. Não se vê, porém, que assim seja, posto que, em qualquer dos casos, a atividade de tais serviços se organiza de forma hierárquica, estando na dependência última de um membro do Governo. É esta a situação que se verifica, hoje, em relação à Polícia Judiciária, que o n.º 1 do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º 137/2019 define como “um corpo superior de polícia criminal organizado hierarquicamente na dependência do membro do Governo responsável pela área da justiça e fiscalizado nos termos da lei”, dispondo o n.º 2 da mesma lei que a PJ se configura como “um serviço central da administração direta do Estado, dotado de autonomia administrativa”.
Ora, como se disse, o quadro não se altera significativamente com a deslocação da Unidade Nacional Europol e do Gabinete Nacional Interpol para uma unidade orgânica do PUC-CPI. Recordando que as funções de polícia continuam a ser exercidas, mesmo neste novo cenário, por oficiais ou agentes das forças de segurança, nos moldes acima explanados, não se vê como a dependência do SGSSI em relação ao Primeiro-Ministro se distinga, em termos qualitativos ou quantitativos, da dependência do Diretor Nacional da Polícia Judiciária em relação ao Ministro da Justiça, no que respeita ao potencial de intrusão, condicionamento ou cerceamento das atividades da polícia, em particular no âmbito da investigação criminal. Em qualquer dos casos, é vital afirmá-lo com clareza, a lei não o permite, e salvaguarda-o de uma maneira clara: alocando as competências de natureza jurisdicional às magistraturas, dotadas de autonomia e independência, e que nesses precisos termos as devem exercer. Nada nas normas analisadas fundamenta, pois, a conclusão – que seria, naturalmente, inaceitável, porque violadora da CRP – de que deixe de assim suceder.
Obviamente, podem ser apontadas críticas e insuficiências ao modelo organizatório instituído pelas normas questionadas. Desde logo, e tendo em consideração que o Decreto n.º 17/XV não revoga nenhuma das disposições normativas do Decreto-Lei n.º 137/2019 relativamente à organização interna da PJ e à cooperação policial internacional, daí poderão advir incongruências sistémicas e dificuldades interpretativas. Todavia, não se afigura que, ainda assim, elas possam implicar uma violação da Constituição. Efetivamente, mesmo que existisse um conflito de competências entre uma unidade orgânica da Polícia Judiciária e uma unidade orgânica do PUC-CPI, ele não equivaleria a uma violação da separação de poderes, uma vez que, como acima se explicou, a atividade em causa não pode deixar de cingir-se ao plano da cooperação policial.
Nestes termos, a solução de desenho institucional quanto às unidades orgânicas do PUC-CPI, designadamente a opção pela integração, nessa esfera, da Unidade Nacional Europol e do Gabinete Nacional Interpol, deve ser considerada uma opção legítima do legislador, dentro da considerável margem de conformação que a Constituição lhe confere neste tipo de matérias. Mais ainda, quando, como acima se explicou, a escolha aparece fundamentada pelas obrigações assumidas por Portugal no quadro da União Europeia, e corresponde à observância de recomendações das instituições da UE, com vista a um funcionamento mais eficaz de uma agência da União, e ao cumprimento de deveres decorrentes de normas vinculativas de direito europeu.
III – decisão
Pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide não se pronunciar pela inconstitucionalidade das normas constantes do artigo 2.º – “que alteram o artigo 12.º da Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, na sua redação atual, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal” – e 3.º - “que alteram os artigos 16.º, 23.º-A e 25.º da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna” - do Decreto n.º 17/XV da Assembleia da República, que «reestrutura o Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional, alterando a Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, que aprova a Lei de Organização da Investigação Criminal, e a Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que aprova a Lei de Segurança Interna».
Lisboa, 12 de dezembro de 2022 - Mariana Canotilho - Maria Benedita Urbano (com declaração de voto) - José Eduardo Figueiredo Dias - Pedro Machete - Assunção Raimundo - Joana Fernandes Costa - Gonçalo Almeida Ribeiro - Afonso Patrão - José João Abrantes - José Teles Pereira - António José da Ascensão Ramos vencido parcialmente conforme declaração que junto. - João Pedro Caupers –
A Relatora atesta o voto de conformidade do Senhor Conselheiro Lino Ribeiro, que participou na sessão por videoconferência.
Mariana Canotilho
Declaração de Voto
Votei a decisão, não acompanhando, porém, a respetiva fundamentação na sua integralidade pela razão que de seguida será brevemente exposta.
O motivo pelo qual não posso acompanhar parte da fundamentação expendida no acórdão a que se apõe a presente declaração de voto prende-se, única e exclusivamente, com o facto de, em meu entender, o objeto do pedido formulado pelo Presidente da República não corresponder exatamente àquele que foi recortado no acórdão, designadamente no seu ponto 34., sendo menos extenso.
Com efeito, o Presidente da República fundou os seus receios relativamente à eventual inconstitucionalidade dos artigos 2.º e 3.º do Decreto n.º 17/XV da Assembleia da República na circunstância de a excessiva concentração de poderes no Secretário-Geral do Sistema Interno de Informações (SGSII) poder comprometer o princípio da separação de poderes e a autonomia do Ministério Público constitucionalmente consagrados, respetivamente, nos artigos 111.º e 219.º da CRP
Mais especificamente, o Presidente da República refere uma questão de acesso à informação centralizada no Ponto Único de Contacto para a Cooperação Policial Internacional (PUC-CPI), entidade encabeçada pelo SGSII – que acumulará de forma excessiva um conjunto de poderes –, sugerindo que o Ministério Público poderá ver comprometida a autonomia da sua função “em matéria de investigação criminal”. E isto, na medida em que, subentende-se, o acesso a toda a informação, nacional e estrangeira, no âmbito da cooperação policial internacional, informação necessária para o pleno exercício dessa sua função, poderá não estar garantido (“7.º Concretamente, de acordo com o Decreto em apreciação, o Ponto Único de Contato para a Cooperação Policial Internacional fica concentrado na figura do Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna. Na ausência de ressalva expressa, coloca-se a questão de saber, sem que isso implique qualquer juízo relativamente às personalidades que exerçam ou venham a exercer as funções de Secretário-Geral do Sistema de Segurança Interna, se uma tal concentração se pode traduzir, no futuro, no acesso a informações relativas a investigações criminais em curso e a matéria sujeita a segredo de justiça, o que violaria o princípio da separação dos poderes”). Embora não o refira expressamente – sendo, antes, um aspeto que vem assinalado na nota técnica apresentada pelo autor das normas impugnadas –, a nomeação do SGSII pelo Primeiro-Ministro aumenta os receios não só de que a autonomia do Ministério Público possa estar em perigo, como ainda de que esta possível interferência do poder executivo na esfera de atuação do Ministério Público possa fazer perigar a separação de poderes consagrada no artigo 111.º da CRP. E é este, a nosso ver, o âmbito material do pedido. Em parte alguma descortinamos a associação da violação dos princípios em apreço com base na questão concreta do relacionamento – potencialmente tenso – das polícias com o Ministério Público, e nem vemos que se retire do pedido, bastante singelo, do Presidente da República, o argumento de “a atuação do PUC-CPI ser passível de, alegadamente, se alargar a matérias especificamente jurisdicionais, invadindo a competência dos órgãos próprios, nesse domínio”.
Sendo este o modo como lemos e delimitamos o objeto do pedido apresentado pelo Presidente da República, entendemos ser excessiva, por não justificada e pertinente, toda a fundamentação relacionada com os pontos acabados de mencionar.
Maria Benedita Urbano
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto vencido (parcialmente), pelas seguintes razões:
Como assinala a decisão, as alterações ora introduzidas à Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto e à Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, pretendem, constituir observância de orientações europeias sobre a criação de um Ponto Único de Contacto para convergência e reforço da cooperação policial entre os Estados membros, obviando aos problemas de comunicação criados pela diversidade de estruturas orgânicas e de competências de forças policiais a nível interno (Draft Guidelines for a Single Point of Contact (SPOC) for international law enforcement information Exchange).
Nesse pressuposto, dir-se-ia que a intervenção legislativa se cingiria a conferir ao PUC-CPI atribuições e competências nesse domínio, agregando a representação externa das forças de polícia portuguesas para com órgãos de polícia estrangeiros, nada justificando que a nova disciplina legal invadisse as condições de cooperação judiciária em matéria penal existentes no ordenamento, ou que de alguma forma o diploma possuísse impacto na forma como, até aqui, Ministério Público, Juízes de instrução e Tribunais exercem o seu mandato constitucional (artigos 219.º, n.º 1 e 202.º, n.º 1, ambos da Constituição da República Portuguesa).
Antes de mais, comecemos por fazer ver que o PUC-CPI é um órgão de natureza administrativa e que está colocado na dependência e coordenação do Secretário-Geral do Sistema de Coordenação Interna (SGSCI) (cfr. artigo 23.º-A, n.º 3, da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto). O SGSCI, por sua vez, possui atribuições e competências muito amplas em matéria de segurança (cfr. artigos 15.º-19.º, da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto), funcionando na “direta dependência” do primeiro-ministro (artigo 14.º, n.º 1, da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto; ou do ministro da administração interna, caso nele a função seja delegada). O SGSCI integra ainda o conselho de segurança interna (artigo 12.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto), a quem cabe assistir o primeiro-ministro no âmbito da direção de segurança que lhe incumbe (artigos 13.º, n.º 1 e 9.º, n.º 1, ambos da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto). É igualmente de sublinhar que o SGSCI é nomeado e exonerado pelo líder do governo (artigo 9.º, n.º 1, alínea f), da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto), bem como respetivo adjunto que o coadjuva (artigos 9.º, alínea g) e 20.º, ambos da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto).
Atendendo ao desenho desta estrutura legal, à forma de nomeação dos titulares dos cargos
integrados na sua orgânica e o respetivo âmbito de atribuições e poderes conferidos, daqui decorre que tanto o SGSCI como o PUC-CPI são órgãos marcadamente políticos, estando diretamente associados à cabeça do Governo.
Ora, pela eliminação do étimo “policial” na nova redação conferida ao artigo 23.º-A, n.º 1, da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto operada pelo Decreto, o PUC-CPI fica definido como “o centro operacional responsável pela coordenação da cooperação internacional”, o que lhe confere a globalidade das funções neste domínio, intencionalmente tornando indistinto, para efeitos de definição do âmbito de atividade do organismo, a cooperação entre autoridades policiais (nacionais e estrangeiras) e a cooperação entre autoridades judiciárias. A transnacionalidade constitui o critério de conexão relevante para efeito de definição do leque de competências conferido ao PUC-CPI, não a natureza do pedido, pelo que a iniciativa legislativa sob fiscalização transporta também para a sua esfera a cooperação entre órgãos judiciários nacionais e estrangeiros.
Importa deixar claro que, até aqui, o PUC-CPI não possuía quaisquer atribuições ou competências no âmbito da cooperação judiciária, apenas intervindo nesse domínio quando surgisse a necessidade de articulação com os órgãos públicos a quem coubesse essa missão, assim em respeito pela repartição de funções, clara e indesmentível, entre eles (cfr. artigo 23.º-A, n.º 2, alínea g), da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto). No novo modelo, decorre da conjugação destas duas disposições que as autoridades nacionais em matéria de cooperação judiciária internacional ficam secundarizadas e subordinadas à intermediação do PUC-CPI, estabelecendo-se uma regra de princípio destinada a garantir o controlo de todos os influxos e exfluxos de comunicações (pedidos de cooperação) transfronteiriços com origem nas autoridades portuguesas (Ministério Público, Juiz de instrução e Tribunais) ou que a elas lhe sejam destinados pelas suas congéneres estrangeiras, ainda que alheios a cooperação policial e mesmo que apenas a essas autoridades caiba a respetiva execução e formulação.
Esta perceção reforça-se pelo disposto no artigo 23.º-A, n.º 2, alínea j), da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, que estabelece referência expressa a competências do PUC-CPI quanto a atos em processos jurisdicionais de foro criminal (“nos termos da lei processual penal”). Não embarga esta conclusão o facto de o preceito se referir ao auxílio de autoridades judiciárias (“auxiliar”): a centralização no PUC-CPI em matéria operacional de toda a cooperação transfronteiriça, incluindo sobre atividade judiciária em matéria penal, significa a aquisição de competências próprias que não dependem dos órgãos do aparelho de justiça ou dos magistrados titulares de processos jurisdicionais (que sobre o PUC-CPI não possuem autoridade funcional ou prerrogativas de controlo de nenhuma ordem). Nos antípodas, antes se coloca estes últimos, na gestão e efetivação das suas funções, na dependência do organismo, já que este se interpõe, por autoridade própria conferida por Lei, nos atos relativos a investigação criminal, a julgamento penal e a execução de penas, desde que importem a colaboração com entidades estrangeiras. A referência a “auxílio” contida no preceito, está bom de ver, cinge-se a constatar a evidência que não caberá a PUC-CPI executar os pedidos dirigidos a autoridades judiciárias nacionais ou formular pedidos a autoridades judiciárias estrangeiras, ainda que uns e outros dele fiquem dependentes para que cheguem aos seus destinatários e se obtenha sucesso na promoção ou execução da ação penal.
Idênticas considerações nos merece a nova alínea l), do n.º 2, do artigo 23.º-A, da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto. Da transferência da Interpol e da Europol para o PUC-CPI já decorreria que incumbe a este órgão, como é óbvio, “garantir a operacionalidade destes organismos”, o que significa que, nessa dimensão, a alteração legislativa é redundante e anódina. A única utilidade e propósito da inovação legislativa residirá em deixar expressas as novas competências do órgão em matéria de cooperação judiciária internacional penal, quer no que respeita a solicitações de autoridades judiciárias estrangeiras, quer quanto a pedidos de autoridades judiciárias nacionais (Ministério Público, Juiz de instrução e Tribunais).
Mais impressivo é o disposto no artigo 23.º, n.º 2, alínea k) da Lei n.º 53/2008, de 29 agosto, que confere competência ao PUC-CPI para receber e encaminhar os pedidos de detenção provisória em processos de extradição (artigo 29.º, n.º 1, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto). O Acórdão (como o parecer do CSMP) pretende que esta norma se cinja aos casos em que esses pedidos sejam intermediados por órgãos de cooperação policial (Interpol), descurando que, a ser assim, também esta nova disposição seria inútil (da integração da Interpol e Europol no PUC-CPI já decorreria esse âmbito de funções) e que a sua proposta interpretativa realiza uma distinção onde a Lei a não efetua. De facto, esta nova alínea k), do n.º 2, do artigo 23.º do diploma, não especifica nenhuma forma de comunicação particular ao conferir competências ao PUC-CPI e não as limita em função do caráter policial do mecanismo de cooperação utilizado, antes abarcando todas as solicitações de detenção provisória, incluindo as realizadas ao abrigo de comunicação direta (que deixará de o ser) entre órgãos do sistema judiciário (artigo 29.º, n.º 1, 1.ª parte, da Lei n.º 144/99, de 31 de agosto).
A extradição sucede em processo jurisdicional e a detenção provisória é uma medida cautelar nesse âmbito que precede a obtenção de pronúncia pelo membro do Governo sobre a extradição do visado, pelo que a aquisição de competências pelo PUC-CPI operada pela Lei nova tem de se entender uma marcante entropia no sistema de cooperação judiciária português.
O Acórdão despende grande esforço na caracterização da função policial, por oposição à judiciária e, a esse propósito, assinala a impropriedade atual do binómio prevenção/repressão, quando se pretenda demarcar os campos de atividade de uma e de outra, ilustrando a afirmação com as ações policiais prévias à aquisição de notícia de crime, que, ao mesmo passo, podem visar a obtenção de prova de delitos, caso na sua execução essa notícia seja adquirida.
A menos que se pretenda deixar implícita a obsolescência dos princípios da independência dos Tribunais, da autonomia do Ministério Público e da separação de poderes com este fundamento – e o Acórdão conclui sem o afirmar, note-se –, não se alcança qual a utilidade desta abordagem, já que o que se debate é a autonomia e independência dos órgãos judiciários face ao aparelho administrativo e ao poder executivo, o que o referido excurso não ajuda a compreender: ainda que as forças de polícia não possuam, hoje, funções estritamente preventivas e que, no novo modelo, careçam amiúde de autorizações jurisdicionais para realizar certo tipo de ações policiais, isso não significa que o poder judiciário deva ser entendido como subordinado a elas ou dependente da sua intermediação para executar a sua missão, tanto menos de outros órgãos administrativos, absolutamente pelo contrário.
Com toda a certeza (e o Acórdão, repito, não desmente esta afirmação), qualquer que seja a natureza da atividade policial (se preventiva, se híbrida), a ação estadual sob autoridade e controlo de um magistrado, seja de investigação, de controlo indiciário, de julgamento ou de execução da pena, pretende-se um exercício de soberania (poder judicial) independente dos poderes de governo da coisa pública (poder executivo) e a sua subalternização administrativa caracteriza uma forma de ingerência agressiva no seu espectro de atribuições e competências, facto tanto mais grave quando o órgão que se interpõe na sua missão nem se acha estruturalmente inserido no corpo de polícia nacional, nem constitui um organismo dotado de real autonomia, antes consubstanciando uma ramificação do Executivo porque colocada a sua liderança sob direta dependência do 1.º ministro, como começámos por ver.
Por fim, cabe deixar impresso que, à semelhança do que assinalamos noutra altura e lugar, a relação entre entidades administrativas e Tribunais, especialmente quando se entrecruzam no âmbito das respetivas atribuições, é, hoje, motivo de grande preocupação em matéria de independência judicial, já que se assiste a uma tendência para alargar o leque de atribuições das primeiras e para lhes conceder poderes funcionais e de participação na atividade judiciária progressivamente mais abrangentes e intrusivos. Esta orientação de política legislativa consubstancia um progressivo cerceamento da independência do poder jurisdicional e é apta a conduzir a uma paulatina assimilação ao poder político. É esse o fenómeno a que se veio assistindo em países como a Hungria (v. Resolução do Parlamento Europeu de 12 de setembro de 2018, maxime ponto 12 e Relatório de 2021 sobre o Estado de Direito relativo à Hungria, caps. I e IV) e a Polónia (v. Recomendação da Comissão 2017/1520 de 26 de julho de 2017, pontos 12 a 44), inspirando amplas reservas sobre a segurança do Estado de Direito no espaço da União.
É em oposição a esse resultado que se posicionam, cabalmente, os artigos 203.º, 219.º, n.º 2 e 111.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Uma medida legislativa que estabeleça ou permita a monitorização e controlo, por um órgão associado ao Governo da República, dos fluxos de informação entre autoridades judiciárias nacionais e estrangeiras em matéria penal (v. g., pedidos de arresto preventivo, requisição de informações bancárias, pedidos de detenção provisória de pessoas procuradas, etc.) representa a abrogação dos princípios constitucionais supra indicados. Ainda que se conte com a seriedade e observância de dever de sigilo de quem nesse órgão venha a desempenhar funções (a que o Acórdão também se refere), não é esse o padrão valorativo estabelecido pelo Estado de Direito (artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa), cujo princípio de Rule of Law é estranho à bondade das intenções de titulares de cargos públicos e delas não depende.
Em face do exposto, entendo materialmente inconstitucionais, por violação do disposto nos artigos 203.º, 219.º, n.º 2 e 111.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, as normas do artigo 23.º-A, n.º 1, quando altera “autoridades policiais estrangeiras” para “autoridades estrangeiras” e do artigo 23.º-A, n.º 2, alíneas j), k) e l) (que nem sequer dizem respeito a cooperação policial em nenhuma medida relevante), todos da Lei n.º 53/2008, de 29 de agosto, na redação conferida pelo Decreto da Assembleia da República.
António José da Ascensão Ramos