Comunicado de 3 de março de 2009
Plenário
Relator: Conselheiro Carlos Fernandes Cadilha
Na sua sessão plenária de 3 de março de 2009, o Tribunal Constitucional, a requerimento de um grupo de Deputados à Assembleia da República, pronunciou-se sobre a constitucionalidade e legalidade da Lei n.º 32/2006, de 26 de julho, que aprovou o regime de procriação medicamente assistida, e que vinha arguida de inconstitucionalidade formal e violação da Lei Orgânica do Referendo, de ilegalidade por violação dos artigos 166.º e 167.º do Regimento da Assembleia da República, de ilegalidade por violação de normas de direito internacional, e ainda de inconstitucionalidade material de diversas das suas normas.
O Tribunal decidiu não declarar a inconstitucionalidade formal da Lei n.º 32/2006, por violação do artigo 115º da Constituição (e, consequentemente, considerou não violada a norma do artigo 4º, n.º 2, da Lei Orgânica do Referendo), e não tomar conhecimento do pedido de fiscalização da legalidade, com fundamento na violação dos artigos 166.º e 167.º do Regimento da Assembleia da República e na violação de normas de direito internacional.
Relativamente às questões de constitucionalidade material, o Tribunal pronunciou-se sobre os conjuntos de normas constantes dos artigos 4.º, n.º 2, 6.º, 7.º, n.º 3, e 30.º, n.º 2, alínea q), 9.º, n.ºs 2 a 5 e 30.º, n.º 2, alíneas e) e g), 10.º, 15.º, n.ºs 1 a 4, 19.º, n.º 1, 20.º, 21.º, 27.º e 35.º, 24.º e 25.º, 28.º e 29.º, 36.º e 39.º da Lei n.º 32/2006, que se reportavam a diversos aspectos do regime legal da procriação medicamente assistida, a saber: a) admissibilidade da utilização das técnicas de PMA em caso de risco de transmissão de doenças não genéticas ou infecciosas; b) inexistência de um limite etário para os beneficiários; c) possibilidade de recurso a técnicas de PMA para tratamento de doença de terceiro; d) utilização de embriões em investigação científica; e) admissibilidade da procriação heteróloga; f) regra do anonimato dos dadores; g) regime de filiação na reprodução heteróloga; h) inexistência de limites à criação de embriões; i) diagnóstico genético pré-implantatório; j) não punição da clonagem reprodutiva e admissibilidade da técnica de transferência de núcleo; l) não punição da maternidade de substituição a título gratuito.
O Tribunal considerou, no essencial, que o sistema legal assegura uma adequada protecção do embrião, em cumprimento do princípio consignado no artigo 67º, n.º 2, alínea e), da Constituição, e efectua a articulação, em termos de concordância prática, com outros direitos e valores constitucionalmente protegidos, e, em especial, o direito à integridade física e moral (artigo 25.º), o direito à identidade pessoal, à identidade genética, ao desenvolvimento da personalidade e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º), o direito a constituir família (artigo 36.º), e, ainda, o direito à saúde (artigo 64.º).
Concretamente, o Tribunal ponderou que o regime legal não potencia um efectivo risco de as técnicas de procriação medicamente assistida poderem ser utilizadas para fins eticamente censuráveis e, designadamente, como pretexto para desideratos selectivos de cariz não terapêutico, ou poderem ser aproveitadas por quem não se encontre já em idade potencialmente fértil, em prejuízo do direito à saúde dos beneficiários ou do ulterior desenvolvimento da personalidade da criança a nascer (artigos 4º, n.º 2, e 6º).
Salientou ainda que o controlo genético de embriões para tratamento de doença grave de terceiro, permitido pelo artigo 7º, n.º 3, da Lei n.º 32/2006, visa a realização do direito à protecção da saúde na sua vertente positiva, enquanto incumbência estadual (artigo 64º, n.º 1, da Constituição), e encontra-se assim justificado pela prevalência de valores constitucionalmente tutelados, obstando a que possa entender-se a aplicação da técnica de procriação medicamente assistida, nessa circunstância, como lesiva do princípio da dignidade da pessoa humana.
Nessa mesma linha de entendimento, concluiu-se pela conformidade constitucional do diagnóstico genético pré-implantação, previsto nos artigos 28º e 29º dessa Lei, tendo em consideração que a selecção positiva ou negativa de embriões, através da aplicação dessa técnica, tem uma função instrumental relativamente aos objectivos terapêuticos imediatos de tratamento de doença grave e eliminação do risco de transmissão de doença genética e não se mostra incompatível com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Fez-se ainda notar que a lei proíbe a criação de embriões com o objectivo deliberado de utilização na investigação científica (artigo 9º) e apenas permite o recurso a embriões para esse efeito quando o destino alternativo seja a morte biológica, designadamente por se encontrar afastada a possibilidade de serem utilizados num projecto parental, e ainda assim para finalidades terapêuticas, de prevenção ou diagnóstico em termos de poder contribuir para o progresso do conhecimento científico, concluindo-se que o regime legal condensado na referida disposição está rodeado de mecanismos de salvaguarda que garantem adequada protecção do embrião.
O Tribunal entendeu ainda como constitucionalmente legítima a admissibilidade da procriação heteróloga, considerando que o regime definido no artigo 10º da Lei n.º 32/2006, para além de possuir um carácter meramente subsidiário, não afecta decisivamente o direito à identidade genética (que se refere especialmente à intangibilidade do genoma, com a consequente proibição da manipulação genética do ser humano e da clonagem reprodutiva), e mostra-se justificado à luz do direito ao desenvolvimento da personalidade e ao direito a constituir família.
Admitindo ainda que estes direitos fundamentais, associados ao direito à intimidade da vida privada e familiar, justificam também, do ponto de vista jurídico-constitucional, o regime de anonimato do dador, resultante do artigo 15º dessa Lei, tendo sobretudo em consideração que se não trata de um regime fechado, dado que o interessado poderá obter informação genética pessoal, sem excluir a possibilidade de identificação do dador quando seja proferida decisão judicial que verifique a existência de razões ponderosas que tornem conveniente essa revelação (artigos 15º, n.º 4, e 30º, n.º 2, alínea i)).
O Tribunal aceitou como constitucionalmente válido o regime de filiação previsto nos artigos 20º e 21º da Lei n.º 32/2006 para a reprodução heteróloga, excluindo que este possa pôr em causa o princípio da biparentalidade ou o direito ao conhecimento da paternidade, e fazendo notar que a possibilidade de impugnação da presunção da paternidade estabelecida nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 20º (aí atribuída ao marido ou ao unido de facto com a mulher inseminada) só poderá verificar-se quando se venha a provar que «não houve consentimento ou que o filho não nasceu da inseminação para que o consentimento foi prestado», e, por conseguinte, nas situações anómalas em que a técnica de procriação medicamente assistida tenha sido aplicada com preterição de regras procedimentais legalmente previstas.
Considerou-se ainda não haver motivo para declarar a inconstitucionalidade do regime decorrente dos artigos 24º e 25º da Lei n.º 32/2006 no ponto em que permite a criação de embriões para utilização na fertilização in vitro. Embora não tenha optado pelo critério da indicação numérica, como sucede noutros sistemas legislativos, o legislador assentou, nesse domínio, num princípio de necessidade que será avaliado segundo um critério médico, e, portanto, numa lógica de intervenção mínima que se baseia num cálculo de probabilidade, nada permitindo concluir que o sistema legal pretenda potenciar a criação livre de embriões ou deixe de assegurar uma protecção adequada para os embriões que não possam ser implantados.
O Tribunal esclareceu que a ressalva contida no artigo 36º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006, no sentido da não punibilidade das situações em que a transferência de núcleo é «necessária à aplicação das técnicas de reprodução medicamente assistida», não pode ser entendida como abrangendo os casos de verdadeira clonagem reprodutiva, apenas podendo ser interpretada como significando que a «transferência de núcleo» pode ser levada a cabo, como procedimento secundário, para a aplicação das técnicas de procriação medicamente assistida previstas, nomeadamente, nas alíneas b), c) e d) do artigo 2.º, sem pôr em causa a regra do artigo 7.º, n.º 1, que proíbe a possibilidade de criação de seres geneticamente idênticos. E, nestes termos, a norma do artigo 36.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006 não consubstancia uma qualquer violação do dever estadual de protecção da identidade genética do ser humano imposto pelo artigo 26.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, nem viola qualquer outro preceito constitucional.
O Tribunal ponderou, por fim, que a não punição da maternidade de substituição a título gratuito, que decorre do disposto no artigo 39.º, n.º 1, da Lei n.º 32/2006 (que apenas sanciona a maternidade de substituição a título oneroso), cabe ainda dentro da margem de livre conformação do legislador, tendo em conta que o direito penal cumpre uma função de ultima ratio e a opção legislativa, nesse âmbito, só pode ser objecto de censura constitucional quando se mostre ser manifestamente arbitrária ou excessiva.
Votaram a decisão os Conselheiros Carlos Fernandes Cadilha, Gil Galvão, João Cura Mariano, Vítor Gomes, José Borges Soeiro, Ana Maria Guerra Martins, Joaquim de Sousa Ribeiro, Mário José de Araújo Torres, Maria João Antunes (com declaração), Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração), e o Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos. Votaram vencidos, em parte, os conselheiros Maria Lúcia Amaral e Benjamim Rodrigues.