Comunicado de 25 de fevereiro de 2010
Processo nº 733/07
Relator: Conselheiro Joaquim Sousa Ribeiro
Em sessão plenária, de 23 do corrente, o Tribunal Constitucional decidiu, por maioria, não declarar a inconstitucionalidade da Lei n.º 16/2007, de 17 de abril.
Este diploma veio consagrar a não punibilidade da interrupção voluntária da gravidez, realizada por opção da mulher, nas primeiras 10 semanas da gravidez, desde que efectuada por médico, ou sob sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, com precedência de uma consulta obrigatória, destinada a facultar à grávida o acesso à informação relevante para a formação da sua decisão livre, consciente e responsável, e com salvaguarda de um período de reflexão não inferior a 3 dias, entre a realização dessa consulta e a prestação do consentimento.
Tinham sido apresentados dois pedidos de apreciação da conformidade constitucional de diversos aspectos da referida Lei, um por iniciativa de um grupo de trinta e três deputados à Assembleia da República (processo n.º 733/07), outro pelo Presidente da Assembleia Legislativa da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (processo n.º 1186/07). Este último processo foi incorporado no primeiro, por decisão do Presidente do Tribunal.
Quanto ao pedido formulado no âmbito do processo n.º 733/07, nele foram alegados vícios de inconstitucionalidade formal e de inconstitucionalidade material.
Os primeiros traduzir-se-iam na aprovação de um acto legislativo com base num referendo, sem que este gozasse de eficácia vinculativa, e na ilegitimidade da Assembleia da República para essa aprovação, pelo facto de os dois maiores partidos com assento parlamentar haverem feito constar dos seus programas eleitorais com que se apresentaram a eleições legislativas o compromisso de que somente por via referendária aceitariam modificar o regime jurídico da interrupção voluntária da gravidez.
Ambas as arguições foram consideradas improcedentes. A inibição do órgão legiferante para tomar uma medida legislativa de sentido normativo correspondente ao da proposta submetida a julgamento só poderia fundar-se no vencimento, em referendo, da resposta negativa, por um resultado que outorgasse carácter vinculativo a essa consulta. Nenhuma dessas duas condições se verificou. Por outro lado, a quebra de compromissos eleitorais é algo que se situa no estrito plano da responsabilidade política, podendo ser objecto de avaliação dos cidadãos eleitores, com eventuais reflexos nos resultados de eleições subsequentes, mas sem qualquer projecção no plano da legitimidade constitucional dos órgãos com competência legislativa.
No que respeita à inconstitucionalidade material, foram várias as questões suscitadas. A questão central (e de natureza prejudicial, em relação às demais) tinha a ver com a viabilidade constitucional da impunibilidade da interrupção da gravidez realizada por vontade da mulher, sujeita apenas à observância de certos procedimentos, sem estar condicionada pela invocação de causas justificativas, taxativamente indicadas e de verificação objectivamente controlável. No entender dos requerentes, a solução de despenalização contenderia com o imperativo constitucional de protecção da vida intra-uterina, decorrente da inviolabilidade da vida humana, consagrada no art. 24.º da CRP. Nem se mostraria idónea a essa tutela a disciplina concreta da consulta obrigatória, uma vez que ela tem um carácter puramente informativo, não implicando o aconselhamento da mulher a não realizar o aborto e a decidir-se pela preservação da vida.
O Tribunal não foi desse entendimento. Reafirmando jurisprudência anterior no sentido de que a vida intra-uterina está abrangida pelo âmbito de protecção do art. 24.º, mas apenas enquanto valor constitucional objectivo, o acórdão salienta que daí se retira somente o dever de proteger, não estando predeterminado na Constituição um específico modo de protecção. Cabe ao legislador fixá-lo, com respeito pela proibição de insuficiência (garantia de um mínimo de tutela), mas também pela proibição do excesso (na afectação de outros bens constitucionalmente protegidos). Sendo a sanção penal o meio mais lesivo desses bens, a sua utilização só está legitimada quando seja de lhe atribuir eficiência, e eficiência que, atingindo um grau superior à de qualquer outro meio alternativo, seja a única capaz de traduzir a medida de protecção constitucionalmente imposta. Ora, estes requisitos de idoneidade e necessidade não estão aqui preenchidos, por razões que se prendem com a especificidade do conflito quanto à decisão de abortar: um conflito interior, de carácter existencial, na esfera pessoal de alguém que simultaneamente provoca e sofre a lesão. Neste quadro singular, é defensável que o Estado valore como cumprindo melhor o seu dever de protecção, numa fase inicial da gravidez, tentando ganhar a grávida para a solução da preservação da potencialidade de vida, através da promoção de uma decisão reflectida, mas deixada, em último termo, à sua responsabilidade, do que ameaçá-la com uma punição penal, de resultado comprovadamente fracassado.
Se o afastamento de instrumentos penais não merece, a priori, censura constitucional, a disciplina do modo operativo, em concreto, dessa opção de base cumpre suficientemente o imperativo de protecção, não deixando de forma alguma transparecer uma posição de indiferença ou de neutralidade perante a decisão que a grávida venha a tomar. Ainda que a finalidade dissuasora não esteja expressamente fixada, só o empenho na tutela, para além da saúde da mulher, da vida pré-natal dá objectivamente sentido à dependência procedimental em que é posta a realização da interrupção voluntária da gravidez. Há que ter em conta, sobretudo, que dos pressupostos de não punibilidade faz parte uma consulta obrigatória, na qual, além do mais, a grávida deve ser informada da condições de apoio que o Estado pode dar à prossecução da gravidez e à maternidade. Esses apoios serão outras tantas razões a balancear do lado oposto ao da interrupção da gravidez, contrariando o peso das motivações que levaram a mulher a iniciar os procedimentos que a ela conduzem.
Salienta ainda o acórdão que a valoração do cumprimento ou não do dever de tutela da vida pré-natal deve ter em conta a globalidade das medidas de direito infraconstitucional e não apenas a disciplina específica da interrupção voluntária da gravidez, nas primeiras 10 semanas. Nessa perspectiva, devem ser contabilizadas como instrumentos de tutela e factores de contenção do número de abortos diversificadas regulações normativas e prestações públicas, no domínio da educação sexual e do planeamento familiar, bem como de apoio à maternidade e à família, objecto de numerosos diplomas, que o acórdão referencia.
O Tribunal rejeitou também as alegações dos requerentes, quanto à insuficiência do período mínimo de reflexão (3 dias), à violação do direito à saúde física e psíquica da mulher, do direito à liberdade e do princípio da proporcionalidade, à não participação do progenitor masculino no processo de decisão, à não participação na consulta obrigatória dos médicos objectores de consciência, e à regulamentação por portaria da informação a prestar na consulta obrigatória.
Quanto ao processo aberto por requerimento do Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira (processo n.º 1186/07), foram objecto do pedido de declaração de inconstitucionalidade todas as normas da Lei n.º 16/2007, excepto a constante do art. 6.º, bem como todas normas da Portaria que a regulamentou (Portaria n.º 741-A/2007, de 21 de junho), excepto as expressas nos arts. 12.º e 20.º
O Tribunal não reconheceu legitimidade ao requerente para fundamentar o pedido na violação da dignidade da pessoa humana e na inviolabilidade da vida humana, uma vez que, nessa dimensão da questão, não está em causa a violação de direitos das regiões autónomas (alínea g) do n.º 2 do art. 281.º da CRP).
Na parte em que dispunha de legitimidade, o requerente arguiu que a normação impugnada obriga à prática da interrupção voluntária da gravidez, sendo essa uma matéria no âmbito da competência regional, uma vez que a saúde está identificada como matéria de interesse regional na alínea m) do art. 40.º do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira.
O Tribunal entendeu que o regime jurídico instituído pela Lei n.º 16/2007 situa-se no plano da redefinição do âmbito de protecção de uma norma incriminadora, incidindo, por isso, sobre matéria reservada à competência da Assembleia da República (alínea c) do n.º 1 do art. 165.º da CRP). A Assembleia Legislativa conserva a sua competência regulamentar genérica, em tudo o que não contenda com as disposições da Lei, pois a imposição de regulamentar dirigida ao Governo, no art. 8.º do diploma não pode ser lida como importando uma reserva de poder regulamentar governamental. Não há, por isso, violação da autonomia regional. Também não há violação do direito de audição prévia das Regiões Autónomas, contrariamente ao alegado, uma vez que não estão presentes os respectivos pressupostos, pois a disciplina jurídica da interrupção voluntária da gravidez, pela sua natureza e objecto, diz respeito, por igual, a todo o País, sem que se possa afirmar a existência de interesses específicos das Regiões Autónomas ou de uma incidência particular dos interesses envolvidos, no seu âmbito territorial.
Votaram favoravelmente o acórdão os Conselheiros Sousa Ribeiro (relator), Vítor Gomes, Ana Guerra Martins, o Conselheiro Vice-Presidente Gil Galvão, Carlos Cadilha, Maria João Antunes e João Cura Mariano, tendo votado vencidos, parcialmente, os Conselheiros Borges Soeiro, Maria Lúcia Amaral, Benjamim Rodrigues, Pamplona de Oliveira e o Conselheiro Presidente Rui Moura Ramos.