Comunicado de 15 de março de 2021 - Acórdão n.º 123/2021
Processo n.º 173/2021
Plenário
Relator: Conselheiro Pedro Machete
(Conselheira Maria José Rangel de Mesquita)
1. O Tribunal Constitucional acaba de enviar a Sua Excelência o Presidente da República o acórdão que decide o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade de diversas normas do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República com destaque para o n.º 1 do artigo 2.º relativo às condições em que a antecipação da morte medicamente assistida não é punível e à alteração do Código Penal daí decorrente, que o Chefe de Estado lhe submeteu.
2. O Tribunal proferiu, por maioria, a decisão que acabam de ouvir ler, da qual, pela sua complexidade, se passam a referir, da forma mais simples e clara possível, os aspetos essenciais que permitem compreender o seu alcance.
3. Recorde-se que, nos termos daquele artigo 2.º, n.º 1 que é a norma que consagra a opção do legislador de não punir a antecipação da morte medicamente assistida, quando realizada em determinadas condições , uma pessoa só pode recorrer à antecipação da morte medicamente assistida não punível desde que observe todas e cada uma das condições previstas nesse artigo, entre as quais se destaca a de tal pessoa se encontrar «em situação de sofrimento intolerável, com lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico ou doença incurável e fatal».
4. O Senhor Presidente da República, a título principal, suscitou duas dúvidas de constitucionalidade apenas quanto aos seguintes aspetos desta última condição:
1.ª - O caráter excessivamente indeterminado do conceito de sofrimento intolerável;
2.ª - O caráter excessivamente indeterminado do conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico.
5. O Tribunal entendeu, em primeiro lugar, ser indispensável considerar a norma do referido artigo 2.º, n.º 1, como um todo incindível.
6. Em segundo lugar, o Tribunal apreciou tendo concluído pela negativa a questão de saber se a inviolabilidade da vida humana consagrada no artigo 24.º, n.º 1, da Constituição constitui um obstáculo inultrapassável a uma norma, como a do artigo 2.º, n.º 1, aqui em causa, que admite a antecipação da morte medicamente assistida em determinadas condições. A este respeito considerou o Tribunal que o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. Na verdade, a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa. Tal solução impõe a instituição de um sistema legal de proteção que salvaguarde em termos materiais e procedimentais os direitos fundamentais em causa, nomeadamente o direito à vida e a autonomia pessoal de quem pede a antecipação da sua morte e de quem nela colabora. Por isso mesmo, as condições em que, no quadro desse sistema, a antecipação da morte medicamente assistida é admissível têm de ser claras, precisas, antecipáveis e controláveis.
7. Em terceiro lugar, e quanto à primeira dúvida de constitucionalidade referida pelo Senhor Presidente da República no seu pedido de fiscalização preventiva, o Tribunal entendeu que o conceito de sofrimento intolerável, sendo embora indeterminado, é determinável de acordo com as regras próprias da profissão médica, pelo que não pode considerar-se excessivamente indeterminado e, nessa medida, incompatível com qualquer norma constitucional.
8. Em quarto lugar, e no tocante à segunda dúvida de constitucionalidade referida pelo Senhor Presidente da República no seu pedido de fiscalização preventiva, o Tribunal entendeu que o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico, pela sua imprecisão, não permite, ainda que considerado o contexto normativo em que se insere, delimitar, com o indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado.
9. Por causa dessa insuficiente densidade normativa, que afeta uma das condições previstas no artigo 2.º, n.º 1, do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República para aceder à antecipação da morte medicamente assistida não punível, o Tribunal concluiu que a norma constante desse artigo se mostrava desconforme com o princípio da determinabilidade da lei corolário dos princípios do Estado de direito democrático e da reserva de lei parlamentar, decorrentes das disposições conjugadas dos artigos 2.º e 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP, por referência à inviolabilidade da vida humana, consagrada no artigo 24.º da mesma Lei Fundamental.
10. Nestas condições, o Tribunal pronunciou-se pela inconstitucionalidade do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto n.º 109/XIV da Assembleia da República e pela inconstitucionalidade consequente das restantes normas incluídas no pedido de fiscalização preventiva.