Joaquim de Sousa Ribeiro
Tomada de Posse
11 de outubro de 2012
Tribunal Constitucional
A eles me dirijo em primeiro lugar, já que deles me advém o exclusivo título de investidura no cargo em que fui empossado. Para lhes significar que a natureza das funções que vou exercer, mas também a qualidade dos outorgantes, me honram para além do que as palavras podem exprimir. A minha eleição traduz uma confiança tanto mais dignificante quanto é certo ter sido ela espontaneamente gerada na partilha das tarefas a que o desempenho do nosso exigente múnus obriga.
Deixem-me dizer-vos: sinto-me honrado, porque me deram esta honra; sinto-me confiante, porque em mim confiaram. E tudo farei para corresponder a essa confiança.
A presença, neste ato, de um conjunto de qualificadas individualidades, que representam os demais órgãos de soberania, é, para nós, motivo de grande júbilo e de profundo reconhecimento. Vejo nesse gesto um testemunho eloquente de consideração pelo relevo do papel que este Tribunal é chamado a desempenhar, no quadro da delicada filigrana de equilíbrios que, no nosso sistema político-constitucional, se estabelece entre os diferentes poderes do Estado. Cumpre-me, nesta ocasião, assegurar, reiterando uma marcante linha de atuação de todos os que me antecederam, que será preocupação primeira do Tribunal Constitucional a de preservar um relacionamento sem mácula com os restantes órgãos de soberania, vivificado, como é imperioso, pelo escrupuloso respeito, da parte de todos, pelas esferas competenciais de cada um e pelas decisões que nestas são tomadas. É nesse clima de respeito e solidariedade institucionais, que, por nossa parte, nunca perturbaremos, que o Tribunal dará o seu contributo independente ao funcionamento regular e harmónico do Estado de direito democrático.
Consintam-me que destaque a presença do Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, como representante da magistratura judicial portuguesa. É com vivo aprazimento que saúdo Vossa Excelência, bem como os Senhores Presidentes do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Contas, envolvendo nessa saudação todos quantos se dedicam à nobilíssima tarefa da realização judicativa do Direito.
Ao fazê-lo, tenho presente que todos os juízes portugueses são juízes constitucionais, pois a todos incumbe o poder-dever de não aplicar normas que infrinjam a Lei Fundamental.
E pode dizer-se que está hoje instalada na consciência da generalidade dos juízes uma forte “cultura da constitucionalidade”, pelo que é de assinalável relevo o contributo que a jurisdição dos tribunais comuns, nos vários patamares e ordens que a compõem, dá à dinâmica aplicativa dos comandos constitucionais.
Por força da inexistência, entre nós, do recurso de amparo, essa é, mesmo, a obrigatória porta de acesso dos cidadãos à jurisdição constitucional.
Acresce que, do colégio de juízes deste Tribunal, fazem obrigatoriamente parte, por expressa cominação da Constituição, seis “juízes de outros tribunais”. Esta presença permite uma enriquecedora complementação recíproca dos saberes e experiências de magistrados de carreira com os de juristas de outras proveniências, mormente do meio universitário, a benefício de uma melhor garantia de consideração de todas as dimensões problemáticas das questões a decidir e da convocação de todas as metodologias requeridas pelo seu tratamento adequado. Esta é uma diretriz de composição do corpo de juízes deste Tribunal inteiramente feliz, a meu ver, e que tem confirmado, na sua execução prática, todas as virtualidades que possui.
Gostaria ainda de saudar os Senhores Deputados presentes, em particular os Presidentes ou Representantes dos Grupos Parlamentares e da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias.
Permitam-me que, em breves palavras, justifique o profundo significado que atribuimos a esta presença.
Goza o Tribunal Constitucional de um vasto e diversificado leque de competências, todas elas interferentes, a variados títulos, com a atividade dos restantes órgãos de soberania. Destaca-se nuclearmente a de controlo de constitucionalidade das normas de direito ordinário, no âmbito da qual a jurisdição constitucional pode negar eficácia, com força obrigatória geral, ao resultado de atos de produção normativa dos órgãos de soberania a tal democraticamente legitimados. É ainda o Tribunal titular de competências com direta incidência na vida político-partidária, como as referentes aos procedimentos e à justiça eleitorais e as que têm por objeto a constituição, extinção, funcionamento interno e contas dos partidos políticos.
Todas estas intervenções devem ser vistas, não como uma entorse ao princípio democrático, mas antes como a defesa dos seus pressupostos constitutivos e dos seus requisitos funcionais, bem como a garantia da sua substanciação e afirmação num plano mais exigente. Neste plano, o princípio maioritário conjuga-se necessariamente com os princípios constitucionais de justiça e as regras tuteladoras das minorias e dos direitos e liberdades individuais. Cumpre ao Tribunal Constitucional zelar, em última instância, pela observância dessas normas.
Mas, precisamente, a natureza e o alcance destas funções, distintas das que cabem aos tribunais integrados no poder judicial, exigem que, entre os fatores de legitimação do Tribunal Constitucional, se inclua necessariamente uma sólida e indiscutida cobertura democrática. Não surpreende, assim, que um número muito significativo de ordenamentos que adotaram um modelo autónomo de jurisdição constitucional tenham consagrado uma qualquer forma de ligação umbilical ao parlamento, enquanto casa-mãe da democracia.
No caso português, é particularmente forte essa ligação, dado que, quer direta, quer indiretamente, a designação de todos os juízes promana de eleição na Assembleia da República.
Não se veja nisso o pecado original de vinculação a interesses político-partidários. Tal eleição é puramente designativa, que não representativa, estando a isenção e independência da atuação dos eleitos ou cooptados absolutamente asseguradas pelo estatuto de que gozam e também – há que dizê-lo, sem tibieza – pela integridade de que sempre deram mostras.
Este processo de designação pode abonar-se da virtude de satisfazer, no mais alto grau, o que deve constituir a preocupação cimeira, neste campo: a da garantia de expressão equilibrada do diversificado conjunto de sensibilidades e de visões da vida e do Direito presentes, com peso e significado, na sociedade portuguesa. Não se descortina realisticamente melhor alternativa a este modo de intencional salvaguarda de um são e transparente pluralismo, que as regras jurídicas de recrutamento e de eleição dos juízes, mas também convenções não escritas e práticas institucionalizadas, bem-vindas porque a tal dirigidas, visam assegurar. E ainda que a aplicação, com rigor, destas regras exija muito – não custa reconhecê-lo – de todos os atores no processo, em particular dos partidos políticos, ela é absolutamente indispensável à realização, em pleno e sem escolhos, daquela intencionalidade modelar.
Retomando as saudações que devo completar, é devida uma palavra de reconhecimento aos Senhores Membros do Governo que se dignaram aceder ao nosso convite. Cumprimento-os, sublinhando o quanto a presença de todos reforça o sentido institucional desta cerimónia.
Muito nos sensibiliza também a deslocação do Senhor Representante da República para a Região Autónoma dos Açores.
Sublinho igualmente a presença nesta cerimónia de personalidades representativas de instituições do sistema de Justiça e de defesa dos cidadãos. A este título, dirijo-me à Senhora Vice-Procuradora-Geral da República, aproveitando o ensejo para enfatizar a excelência da cooperação que nos têm prestado os representantes, neste Tribunal, do Procurador-Geral da República − sempre, e também na atualidade, magistrados do mais alto mérito. De igual modo me dirijo ao Senhor Provedor de Justiça e ao Senhor Bastonário da Ordem dos Advogados, numa saudação que é devida e faço com muito gosto, porque estas entidades ou, no segundo caso, a classe profissional que representa, se relacionam estreitamente com o Tribunal, no exercício dos poderes que detêm de impulso processual.
Uma palavra ainda para os professores e cultores do Direito, com quem partilhamos o esforço interpretativo das normas do ordenamento jurídico, em particular das constitucionais, e com quem, não raramente, estabelecemos, na fundamentação dos nossos acórdãos, um frutuoso diálogo intertextual.
E quero aqui, num registo mais pessoal, agradecer a presença do Doutor Rui de Alarcão, antigo Reitor da Universidade de Coimbra e antigo membro da Comissão Constitucional, de quem fui colaborador próximo, como assistente, com grande proveito meu.
Não poderei, como seria meu desejo, nomear individualmente os ilustres convidados que ainda não referi.
A todos cumprimento, com um agradecimento muito sincero pelo sentimento que aqui os trouxe.
Lançando agora o olhar para dentro das nossas portas, muito me apraz saudar, por fim, os nossos assessores, verdadeiro escol de juristas muito talentosos e dedicados, bem como todos os funcionários que, com zelo e elevado sentido de responsabilidade institucional, aqui prestam serviço em variadas tarefas de administração geral, judiciária e de secretariado nos gabinetes dos juízes.
O Tribunal Constitucional não é, como já frisei, um tribunal como os outros. Por isso mesmo, a Constituição o regula à parte, em título próprio, distinto do dedicado aos restantes tribunais.
No sistema de controlo normativo da constitucionalidade que é o nosso, os juízes que integram o Tribunal Constitucional não aplicam normas a casos. Antes questionam as próprias normas, procedendo a juízos de compatibilidade entre as normas postas pela vontade política da conjuntural maioria legiferante e as normas pré-postas pela comunidade, ao definir-se constitutivamente a si própria, por via da Constituição, como comunidade política.
Nessa atividade, requerem-se, mais do que em qualquer outra zona do jurídico, ponderações valorativas sensíveis a diferenças extremamente subtis, capazes de desvelarem significações pouco transparentes, mas relevantes para a decisão a emitir. Por outro lado, muitas normas contêm programas de fins e os parâmetros constitucionais, para além de sujeitos a, em concreto, conflituarem entre si, não se oferecem com acabada e precisa determinação prescritiva, convocando amiúde mediações densificadoras.
Por tudo, a racionalidade argumentativa e valorativa, nunca lógico-dedutiva, que é a de todo o Direito, tem no direito constitucional um campo de operatividade particularmente evidente. Daí o imperativo de um discurso fundamentador das decisões sólido, argumentativamente forte, segundo cânones especialmente exigentes.
A melhor jurisprudência constitucional, dos tribunais mais prestigiados, o tem praticado. E o Tribunal Constitucional português, numa apreciação que só ouso emitir aqui por corresponder à opinião largamente dominante, não fica de fora desse retrato, pois tem genericamente sabido observar exigências de fundamentação aptas à sustentabilidade das suas decisões. Só desse modo pôde afirmar-se como um participante qualificado na tarefa de concretização e desenvolvimento do direito constitucional, devendo ser-lhe imputada a estabilização, nalguns casos também por posterior consagração legislativa, de muitas soluções de questões controversas.
Este juízo não é infirmado pela natural manifestação de pontos de vista divergentes e de críticas, no quadro de um salutar escrutínio público, a que as decisões do Tribunal, como as de qualquer outro órgão constitucional, estão e devem estar sujeitas.
Os membros do Tribunal Constitucional encaram com particular à-vontade essa situação de exposição à crítica, porquanto internamente a praticam, sem concessões. As decisões são tomadas, na verdade, após debates muitas vezes acesos e vivos, em que cada um se assume, com lealdade e total liberdade, na inteireza das suas convicções. E aí está, para o comprovar, a multiplicidade de declarações de voto dissonantes, com expressiva carga crítica, algumas das quais se tornaram incontornáveis marcos referenciais da jurisprudência constitucional.
Mas a crítica no espaço público está, ela própria, sujeita a exigências elementares de rigor, verdade e seriedade de propósitos, impostas pela ética discursiva.
Nem sempre essas exigências têm sido observadas. Em vez da análise cuidada e da avaliação objetiva das decisões, assiste-se, por vezes, à ligeireza irrefletida, ou até, ao cálculo estratégico por razões estranhas aos valores constitucionais. O falseamento do real alcance das soluções e sua fundamentação é o resultado quase inevitável de tais atitudes.
Será ilusório pretender contrariar, com inteiro êxito, todas as causas de desinformação que obstam à compreensão plena, pelos cidadãos, das competências e da atividade do “seu” Tribunal Constitucional. Não obstante, o Tribunal não se exime à quota-parte de responsabilidade que, nesta matéria, lhe cabe.
Mas as iniciativas comunicacionais próprias não dispensam o envolvimento dos órgãos de comunicação social, cujos representantes, aqui presentes, também cumprimento. Desempenham eles um papel insubstituível, como mediadores qualificados do fluxo informativo entre os órgãos do Estado e a comunidade. O Tribunal, sem abandono da sua tradicional discrição, que bem quadra ao seu perfil institucional, está empenhado em disponibilizar todos os meios que facilitem, aos órgãos de comunicação interessados, a opção pela via, sempre mais difícil, do rigor profissional e do sentido de responsabilidade pública, no efetivar do direito à informação dos cidadãos.
Excelências
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
As mudanças de pessoas com funções dirigentes são sempre momentos particularmente propícios a que as instituições se interroguem a si próprias, numa suspensão auto-reflexiva, em busca de um novo alento e de novas energias.
Mais do que nunca, necessitaremos dessas energias, pois, no contexto atual, as tensões, sempre existentes, entre a normatividade e a realidade constitucionais manifestam-se com novas e mais fortes cambiantes. Vivemos, na verdade, tempos em que desabam fragorosamente certezas tidas por solidamente construídas e em que as exigências de uma Constituição claramente comprometida com os direitos sociais como direitos de cidadania se confrontam com a necessidade, sentida pelos decisores políticos como imposta por razões de reequilíbrio orçamental, de medidas com efeitos contracionistas de prestações públicas e redutoras de rendimentos privados, em particular os do trabalho.
É esta uma situação em que o Tribunal Constitucional tem sido e será naturalmente chamado a proferir decisões de controlo de constitucionalidade que são aguardadas com redobrada expectativa e provocam um impacto compreensível.
Ninguém espere que, nessa atividade, o Tribunal Constitucional desfigure as linhas do seu rosto, para dizê-lo com palavras de Sophia. Ao falar dessas linhas, desenhadas por uma prática constante de quase três décadas, estou a falar-vos de equilíbrio, de apurado sentido prudencial, de ponderação objetiva de todos os fatores relevantes para a decisão. E por forte que seja a estridência do ruído externo, ela não perturbará a serena fidelidade a estes nossos traços identitários.
Não se peça ao Tribunal Constitucional mais do que institucionalmente lhe compete. Mas, menos ainda, se pode pretender que ele abdique de exercitar, em plenitude, os seus poderes próprios de apreciação da validade das normas, à luz, tão-só, dos autónomos critérios valorativos da Constituição.
Não é outro o legado que recebemos. Por isso mesmo, se uma cerimónia como esta é o início de uma nova etapa, rumo ao futuro, não quero deixar de, nela, celebrar o passado, um passado que tem como rosto humano mais saliente o dos juízes que nos precederam no exercício da jurisdição constitucional. Sob a presidência sucessiva dos Conselheiros Marques Guedes, Cardoso da Costa, Nunes de Almeida, Artur Maurício e, por último, Moura Ramos, esse corpo de juízes, mercê de um labor persistente e esclarecido, deu um contributo decisivo para que a Constituição firmasse raízes como esteio da ordem jurídico-política portuguesa.
A eles fundamentalmente se deve que o Tribunal Constitucional português tenha ganho uma legitimação também pelo exercício ou pelo resultado, como assinalam vozes das mais credenciadas.
A todos os antigos juízes da Comissão Constitucional e deste Tribunal, e em particular aos que nos deram a alegria de comparecer, quero dirigir uma saudação muito calorosa, evocando também a memória dos que já partiram. Todos figuram no presente desta instituição, porquanto a lei do tempo, que os fez sair, é uma que o nosso código de afetos não consagra.
Ilustres Convidados
Senhoras Conselheiras e Senhores Conselheiros
Minhas Senhoras e Meus Senhores:
Manda a cortesia que um discurso de posse se não alongue demasiado. Não quero correr o risco de infringir essa regra, pelo que me apresto para terminar.
Direi mais, apenas, que, ao tomar posse deste cargo, tenho aguda consciência de quão pesada é a responsabilidade que sobre os meus ombros recai. Mas parto para o seu exercício com ânimo forte e com esperança, estado de espírito para que muito contribui a presença a meu lado, como Vice-Presidente, da Senhora Conselheira Maria Lúcia Amaral. As qualidades pessoais que a distinguem em muito facilitarão, estou certo disso, a caminhada agora iniciada.
Os juízes do Tribunal Constitucional não são, seguramente não são, os “Juízes-Hércules” que a imaginação de Dworkin fantasiou. Mas, na sua humana pequenez e falibilidade, todos, tanto os que já exerceram parte significativa do seu mandato, como os que há pouco o iniciaram, darão o melhor de si, irmanados pelo empenho em cumprir, com a máxima proficiência, as tarefas que constitucionalmente lhes estão cometidas.
É este o desafio que hoje nos é colocado, não só por um futuro incerto, mas também pela memória de um passado de que nos orgulhamos. Enfrentaremos coletivamente esse desafio, com espírito de colegialidade, dispostos a dar continuidade à ação dos que, antes de nós, souberam exemplarmente edificar e consolidar uma justiça constitucional à altura das exigências do Estado de direito democrático.
Muito obrigado!