Conselheiro Joaquim de Sousa Ribeiro
Sessão Solene Comemorativa do 40.º Aniversário da Constituição da República Portuguesa
21 de abril de 2016
Tribunal Constitucional
Senhor Presidente da República
Senhor Presidente da Assembleia da República
Senhor Primeiro-Ministro
Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça
Senhor Presidente do Supremo Tribunal Administrativo
Senhor Presidente em Exercício do Tribunal de Contas
Senhores Presidentes e Vice-Presidentes dos Grupos Parlamentares
Senhor Vice-Procurador Geral, em Representação da Senhora Procuradora-Geral da República
Senhor Provedor de Justiça
Senhores Representantes da República nas Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira
Senhor Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias
Antigos Presidentes e Antigos e Atuais Juízes Conselheiros do Tribunal Constitucional
Senhores Conferencistas
Ilustres Convidados
Senhoras e Senhores
1. No próximo dia 25 de abril, perfazem-se quatro décadas de vigência da Constituição da República Portuguesa. O Tribunal Constitucional decidiu assinalar esta efeméride, com uma cerimónia comemorativa, a que se digna presidir o Presidente da República. Senhor Presidente, é um privilégio recebê-lo e tê-lo entre nós. Em função do cargo, que tem como múnus cimeiro “defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição” – múnus de tanto relevo que consta da fórmula sacramental da declaração de compromisso – sempre a presença do Presidente da República encontraria, no nobre motivo que aqui nos congrega, pleno sentido justificativo. Mas, no caso concreto, o perfil de vida, política e académica, de VExcia, acrescenta razões pessoais que dão, se possível, um suplemento de força significante à presença do Presidente da República neste ato.
Foi VExcia Deputado constituinte – jovem, muito jovem constituinte, participante ativo na elaboração da Constituição. Mais tarde, desempenhou, de igual modo, um papel influente, em revisões constitucionais. Foi também interveniente destacado na vida político-partidária, tendo exercido funções de dirigente máximo de um partido político – sendo que os partidos políticos constituem – nunca é demais repeti-lo − associações de relevo constitucional, imprescindíveis, em regime democrático, à formação e manifestação da vontade popular. Por fim, que não por último, ensinou a Constituição, durante 40 anos, a sucessivas gerações de estudantes.
Estes dados, reveladores de multifacetadas vivências em torno da Lei Fundamental que, como poucos, conhece, reforçam a certeza de que a Constituição da República encontrará em VExcia, no desempenho das mais altas funções do Estado, um guardião esclarecido e um executante fiel.
Compreender-se-á que destaque também a presença do Presidente da Assembleia da República, já que esta é o órgão de soberania de representação da comunidade de cidadãos e da vontade popular, e detentor do poder constituinte, tão clarividentemente exercido pela precursora Assembleia de que a Constituição emanou. Quero sublinhar igualmente a participação do Primeiro-Ministro e do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça. Num ato, como este, de celebração da Constituição, a presença conjunta destes titulares de órgãos de soberania tem forte simbolismo, pois reúne os representantes máximos dos poderes legislativo, executivo e judicial – os tradicionais três poderes do Estado que à Lei Suprema estão sujeitos.
Os 40 anos da Constituição da República Portuguesa merecem ser celebrados, não apenas como evocação do momento fundacional da matriz normativa do nosso Estado de direito democrático, mas também pelo que significam de duradoura e efetiva conformação, por esta ordem constitucional, do nosso percurso coletivo.
Se a Constituição pôde atingir a maturidade que os 40 anos de vida traduzem, fê-lo porque soube, a um tempo, tanto romper com o passado como ir ao encontro dos anseios do presente. Teve que canalizar normativamente, de modo adequado, o formidável impulso emancipatório e libertador que o 25 de abril de 74 desencadeara. Deu assim corpo à vontade de uma outra Constituição – logo expressa, como um dos seus objetivos nucleares, no Programa das Forças Armadas – vontade alimentada, em primeira linha, pelo desejo de reposição e de incremento das liberdades, individuais e coletivas, civis e políticas, asfixiadas, durante décadas, pelo regime ditatorial deposto.
Em reação e superação dessa experiência muito negativamente marcada na consciência coletiva, a Constituição de 1976, logo no seu texto originário, foi generosa no reconhecimento dos direitos da pessoa, enquanto tal, e enquanto cidadão titular de direitos de participação política. Atesta-o a consagração de um catálogo de direitos, liberdades e garantias, extenso nas previsões e intenso nas medidas tuteladoras.
Mas a Constituição não instituiu apenas um novo regime político e uma nova ordem de liberdade. Desenhou também os traços fundamentais de uma nova ordem social, dando acolhimento normativo a exigências elementares de justiça quanto às condições reais de vida das pessoas – exigências expressas em participados movimentos de massas que o 25 de abril possibilitara. Daí a consagração de direitos dos trabalhadores e a fixação aos poderes públicos de incumbências concretas de atuação prestativa, no âmbito da efetivação de direitos fundamentais sociais, económicos e culturais. Para além do seu significado específico, atinente a cada um dos bens objeto de tutela, esses direitos, no seu conjunto, dão substância aos valores cimeiros da liberdade e da igualdade, procurando assegurar a todos condições minimamente igualitárias de integração e de participação autónoma na vida social.
A própria organização das estruturas económicas foi constitucionalmente concebida como instrumental ao objetivo de promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e da igualdade real entre os portugueses – uma das tarefas fundamentais do Estado, assim expressa em norma própria. A organização do poder político, em termos que plenamente asseguram o funcionamento de uma moderna democracia representativa e participativa, coroa o sistema normativo da Constituição.
No seu todo, o texto constitucional enuncia e desenvolve discursivamente um programa normativo inteiramente condizente com o implicitamente contido na fórmula sincrética e lapidar do artigo 1.º Digamo-la mais uma vez, com toda a ênfase, na redação atual: «Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária».
Esse programa multidimensional não se fechou hermeticamente sobre si próprio, numa rigidez imutável, mas pôde renovar-se, pelo exercício do poder constituinte, em reajustamentos correlativos ao evoluir do processo político e dos seus enquadramentos condicionantes. Mas essas sucessivas revisões, entre 1982 e 2005, se reconfiguraram, por vezes incisivamente, certas matérias, foram executadas segundo as regras e com observância dos requisitos que a própria Constituição prevê, sem ruturas e sem perda de identidade, contribuindo, também elas, para a possibilidade de efetiva transposição da normatividade constitucional para uma realidade mutante.
Transcorridos estes 40 anos, pode incontroversamente dizer-se que a Constituição superou a “prova do tempo”. Afirmou-se, mais do que como limite, como verdadeira dimensão constitutiva do político, com presença real e atuante na vivência comunitária. Certamente que não se apagaram de todo as “querelas constitucionais”, muito vivas e quase permanentes na fase inicial, depois com
alternância de momentos de emergência e mais prolongadas fases de latência. Mas, se persiste, em certos sectores, uma intenção reformista, creio não poder dizer-se que sobreviva, com expressão significativa, uma “questão constitucional”, no que isso significa de rejeição frontal do sistema e dos seus traços essenciais caracterizadores. E, de todo o modo, “só as constituições irrelevantes não são objeto de discussão”, como agudamente observou um dos nossos conferencistas, Dieter Grimm.
Uma Constituição nunca pode estar fechada a aperfeiçoamentos e atualizações, pelo que a hipótese de revisão constitucional, mais ou menos alargada, deve ser encarada com absoluta normalidade, porque em completo acordo com a fisiologia do sistema e das suas previsões adaptativas. Mas os momentos constituintes não podem ser banalizados ou degradados quase como elementos de uma política conjuntural do dia-a-dia e dos enfrentamentos que lhe são inatos – em prejuízo da função estabilizadora e integrativa da Constituição e dos equilíbrios duradouros que só visões de longo prazo proporcionam.
Até porque ficou definitivamente comprovado, pelo desenrolar da nossa história constitucional sob a égide desta Constituição, que, dentro dos seus parâmetros reguladores, cabem diferentes opções políticas, podem afirmar-se distintos modelos e executar-se diferenciados projetos de configuração da sociedade, de acordo com a correlação de forças político-partidárias e os resultados eleitorais por elas obtidos. A uma sociedade plural e democrática, é conatural a existência de conflitos, a confrontação de grupos de interesses e de portadores de valores contrastantes. Não cabe à Constituição eliminar esse permanente dissenso, forjando consensos artificiais, ainda que, naturalmente, não impeça convergências reais, e até as promova, em questões fundamentais. É antes seu papel, atuando como referencial de estabilização e de pacificação, racionalizar juridicamente tais processos, fazendo-os desenrolar por formas e com os limites que torne a sua manifestação reciprocamente aceite, porque abrangida pelo pacto constitucional.
E esse papel tem a Constituição de 76 – cremo-lo bem – desempenhado a contento.
2. “Os 40 anos da Constituição merecem ser celebrados”, disse-o logo de início, e fica agora à vista porque não escasseiam motivos para festejarmos jubilosamente esta data.
À Assembleia da República é de reconhecer um título especialmente legitimante para conceber e levar a cabo um programa comemorativo. Esse programa está gizado, publicitado e em começo de execução, e nele o Tribunal Constitucional e o seu Presidente participaram e participarão, com totais disponibilidade e empenho.
Mas, dentro do conjunto de atos comemorativos, e associando-se a eles, não podia este Tribunal deixar de tomar uma iniciativa própria – como já o fez em comemorações anteriores de aniversários da Constituição. À Constituição deve o Tribunal Constitucional a sua existência; sobre ela, desenvolve-se o seu labor e exercita-se a sua jurisdição, uma vez que lhe compete “dizer” o direito que da Lei Fundamental flui. Mas, inversamente, o Tribunal Constitucional, atuando como instância cassatória das normas em desconformidade com a Constituição, dá a esta a necessária garantia jurídica, assegura-lhe a vinculatividade própria de uma constituição normativa, com efetivo influxo conformador da ordem jurídica. E sendo de textura aberta muitas das normas constitucionais, ganha realce o papel de mediação concretizadora e de densificação de conteúdos prescritivos que cabe à jurisdição constitucional.
No nosso tempo, Constituição e jurisdição constitucional subentendem-se mutuamente, como dois elementos incindíveis de um binómio necessário. A jurisdição protagonizada pelo Tribunal Constitucional “serve” a Constituição, mas, ao servi-la, vivifica-a, em todas as dimensões e projeções aplicativas que o texto
consente. De tal modo que os acórdãos em que essa jurisdição se plasma são hoje elementos imprescindíveis ao conhecimento do nosso direito constitucional, extensamente referidos e comentados em todos os manuais que dele tratam.
Faz, pois, todo o sentido que o Tribunal Constitucional se associe, com esta jornada de reflexão, ao diversificado programa comemorativo que condignamente celebra o quadragésimo aniversário da Constituição da República Portuguesa.
3. Entendeu o Tribunal fazê-lo, não tanto como uma revisitação do passado recente da experiência constitucional portuguesa, mas, numa dimensão prospetiva, dando espaço comunicacional a um pensamento teorético mais geral sobre as inquietações do presente e as interrogações do futuro.
Disse “inquietações do presente”, e a formulação não é excessiva. Na verdade, Constituição e crise são hoje dois termos sistematicamente associados, glosados conjuntamente em múltiplos textos doutrinários e tratados como tema de inumeráveis colóquios e debates.
Crise, desde logo, económico-financeira, que trouxe dificuldades de compatibilização com a tutela dos direitos que importam custos, em particular, mas não só, dos direitos económicos e sociais.
Mas crise, também, dos mecanismos tradicionais de representação política. Os processos de globalização e de integração em instâncias supranacionais reduziram as margens decisionais do Estado. A autónoma ação normativa do Estado não tem, em determinadas matérias, um alcance regulador correspondente à natureza e âmbito das questões a regular. Os centros supranacionais de decisão e de poder, algumas vezes puramente fáctico, nas mãos de sujeitos económicos, e subtraído a qualquer controlo político e a qualquer responsabilidade política, quase sempre
funcionando com evidentes défices de constitucionalidade, atuam sem sujeição aos processos democráticos tradicionais. Por sua vez, as opções democraticamente tomadas, no âmbito e com respeito das constituições nacionais, não encontram, em certos domínios, espaço de realização autodeterminada.
Neste contexto, a declinação, a uma só voz, de Estado constitucional, Estado democrático e Estado social sofre fricções e deixa de produzir-se com a relativa naturalidade do passado. A tal ponto que um Autor como Balaguer Callejón pôde afirmar que já ficou para trás a “época dourada” do constitucionalismo moderno.
Como se isso não bastasse, vivemos hoje, no coração da Europa, uma crise humanitária de enormes dimensões, pelo afluxo de refugiados, devido a causas de todos conhecidas. A amplitude deste fenómeno levanta seriíssimos problemas a vários níveis, dificultando, em extremo, uma resposta adequada por parte das instituições e dos governos europeus. Mas, em vez de uma revitalização e de uma execução tão efetiva quanto possível das garantias constitucionais e internacionais no domínio do direito humanitário, assistimos, em certos casos, à tomada de decisões político-administrativas que as contrariam, em particular no âmbito do direito de asilo e de proteção internacional e da liberdade de circulação das pessoas. Pode dizer-se que a vocação universal dos direitos humanos ficou esquecida, em certos casos, na estéril proclamação dos textos, precisamente no momento em que mais premente se tornou a sua concretização na esfera da vida real. Programas constitucionais inclusivos não obstaram à implantação de fronteiras entre “nós” e os “outros” – os “outros” mais necessitados de proteção, porque desprovidos de quase tudo o que faz a humanidade dos homens…
Por outro lado, no momento histórico em que vivemos fazem-se sentir acrescidas razões de segurança – ela própria um direito fundamental e condição da liberdade. São, assim, compreensivelmente fortes as pressões para novas medidas de prevenção e de reação: as primeiras em fase cada vez mais prematura e de alcance mais
geral; as segundas cada vez mais penalizadoras. E se a eventual composição de novos equilíbrios, de novas soluções de harmonização com direitos de liberdade em oposição, deve ser o resultado de uma ponderação serena, sem ceder à tentação de uma deriva securitária, tal é dificultado pela emotividade gerada pelas dramáticas concretizações de risco a que nos últimos anos temos assistido.
Como se vê, as constituições estão hoje colocadas “sob stress”, como recentemente escreveu Gomes Canotilho. Sofrem tensões e os efeitos erosivos de múltiplos fatores. E no entanto, se assim é, não deixa de, se poder sustentar, quase paradoxalmente, que em épocas de crise mais se faz sentir a necessidade de limitação do poder e de mediação, por critérios jurídicos, dos conflitos sociais. Tem sido esse o papel histórico do constitucionalismo tal como o conhecemos e não se vê que esteja para já a sua superação, por modelos alternativos doutrinariamente propostos.
Nomeadamente quando se trata de distribuir sacrifícios, afetando posições subjetivas tuteladas e já concretizadas, como é da nossa experiência recente, torna-se imperioso, mais do que nunca, que tal se faça com observância efetiva dos princípios supremos da ordem jurídica consagrados na Constituição.
O controlo da atividade legislativa neste campo tem confrontado alguns tribunais constitucionais – entre os quais, como é bem sabido, o português − com questões de alta problematicidade e de grande sensibilidade política, em que se fazem sentir exigências antitéticas. Nesse desempenho, é-lhes certamente requerida uma valoração contextualizada, com atribuição do devido peso de ponderação à natureza, objetivos e período de vigência da legislação em causa. Mas não se lhes pode pedir que suprimam do seu vocabulário jurídico os padrões constitucionais a que estão vinculados e que devem fazer respeitar. Entre o risco de extravasar os limites dos seus poderes funcionais e o risco, não menor, de uma atitude demissionista do seu exercício, só uma autoperceção consolidada e firme do seu papel institucional pode assegurar aos tribunais constitucionais o cumprimento pleno, mas na justa medida,
das funções que lhes cabem. Sempre com total independência dos poderes constituídos. Independência de poderes externos, com um exercício sem tibieza, no seu âmbito de competência, da subsistente soberania do Estado. Independência também das contingentes maiorias políticas, eventualmente tentadas a pressionar infundadas posições colaborantes. Independência, até, de sentimentos emotivos de massas que, por compreensíveis que sejam, podem não encontrar arrimo constitucional.
É este o repto que, em tempos difíceis, foi e está lançado aos tribunais constitucionais. Sendo fieis, na sua prática jurisdicional, à função que constitucionalmente lhes cabe, para além de reforçarem a sua legitimidade de exercício, eles contribuem certamente para radicar, na consciência dos cidadãos, a valia da Constituição, como instrumento de garantia e de defesa.
Assim se incrementa, no sentimento coletivo, o apego à Lei Fundamental.
4. Limitei-me a expor o conjunto de preocupações que levaram a fazer deste momento comemorativo simultaneamente um momento de reflexão.
Essa livre reflexão está a cargo de personalidades da mais alta craveira. Ao pedir a sua colaboração, o Tribunal Constitucional teve em vista reunir uma pluralidade de perspetivas, decorrentes de experiências diversificadas, no universo académico e na prática da jurisdição constitucional, bem como no exercício, ao mais alto nível, de funções políticas do Estado. A somar à maturidade de carreiras feitas e plenamente realizadas, quis o Tribunal dar voz a constitucionalistas de gerações mais jovens, a quem mais caberá perscrutar os caminhos do futuro.
Todos expressaram, de imediato, a sua total disponibilidade para proferirem intervenções. A todos, a Dieter Grimm, a Jorge Sampaio, a Miguel
Nogueira de Brito, a Luís Meneses do Vale e a Cruz Villalón, o Tribunal Constitucional manifesta o seu profundo reconhecimento.
Muito obrigado!
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